2007-07-31

Do chulanço como modo de vida


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Confesso que não sinto pena (quase) nenhuma de quem vê as contas bancárias penhoradas por fuga ao fisco ou à segurança social. É que a mim também me custa pagar impostos e, enquanto trabalhadora dependente, começo a ficar farta, demasiado farta, de ver tanta gente a viver à minha custa. Agora só falta mesmo ver que a treta dos “sinais exteriores de riqueza” dá em alguma coisa e que (algumas) velhacas preguiçosas deixam de fazer filhos como coelhos para receber quase tanto de rendimento mínimo do que aquilo que eu ganho por mês.

II.


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Havia em V. o tom primevo do desabrochar, do desassossego. Era o início, o fogo, a massa informe onde desaguava cada som.

V. tinha um vestido de noite e olhos de estrelas e, no entanto, V. era também o clarão da aurora e dispunha de roupa festiva feita das luzes boreais.

V. era sussurro, mas continha em si o grito. Era suspiro mascarado de explosão.

V. era precoce, incompleto, pleno de força indomada e imatura. Era desafio, provação. Era limbo de energia e compêndio de alternativas.

V. era feito de esperança aprisionada.

2007-07-30

I.


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Os caminhos paralelos cansam-me. Cansam-me na sua simetria, nos passos ritmados que se imitam. Duas linhas simétricas que, irreconciliáveis, nunca chegaram sequer à confrontação.

Os caminhos paralelos não ensinam nada um ao outro. Vivem cada um a sua verdade e a sua mentira, confundem-se num jogo de espelhos e quedam-se paralelos. Não interagem, não comunicam. Não aprendem nem ensinam. Não reagem.

Os caminhos paralelos precisam que uma qualquer linha os corte ao meio ou em viés, que uma qualquer diagonal os apresente.

Cansam-me os caminhos paralelos: podem não saber mudar de rumo...

Xeque-mate


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Há um jogo que todos estamos condenados a perder...

2007-07-26

Liberdade


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- Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre nosso que sabia,
A pedir-te humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.


- Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção,
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.


Miguel Torga


Hoje queria tão só ser livre. Ser um pássaro. Ser uma prece. Voar.


Hoje queria viajar para longe. Estar bem longe da realidade que conheço. Encontrar a minha liberdade algures na Terra, longe.

Hoje queria que a minha fé fosse feita de pó, de barro, de azul e de ausências. Transformar todos os símbolos em caracteres chineses, queimá-los numa girândola de fogo e alegria.

Hoje queria estar tão longe que nem os odores reconhecesse, que o céu fosse diferente. Hoje queria um azul petróleo na linha do horizonte e uma estrela da manhã teimosa num pas-de-deux com o sol.

Hoje queria comprar o bilhete e partir à aventura, cumprir o sonho de viajar, coligir informações in loco.

Hoje queria ser livre e cumprir as ausências e chegar aos sonhos com a sensação de dever cumprido e a paz de estar sem grilhetas.

Hoje queria expurgar de mim aquela tensão que nos pesa entre a vontade de novidade e o elogio do velho, do reconhecido. Hoje queria estar para além dos avanços e recuos de lógicas sucessivas. Ser voz. Ser palavra. Tecer o divino.

Hoje apetecia-me pôr uns sapatos de salto-alto e partir para Goa de mochila às costas. "Não podes." Diz-me a consciência. "Ninguém vai de salto-alto para a Índia." Mas, hoje, o absurdo da vontade de não ter peias expõe o vazio da lógica que me trava.

Hoje não quero delongas em análises aprofundadas aos motivos. Hoje não quero pensar nas construções que elaboro de adaptação entre os desejos e os impulsos que me movem e o que me impõe o real. Hoje queria ser livre. Ser pássaro. Ser prece. Voar.

Hoje apetecia-me ter heterónimos e mandar cada um deles fazer cumprir um apetite.

Hoje queria ser livre. Voar. Como um pássaro. Como uma prece.

"Liberdade, que estais em mim, santificado seja o vosso nome."

2007-07-23

2007-07-21

Ich bin ein Berliner


Museu Judaico de Berlim

(...) sei que sou tão pouco culpado do Holocausto como o Pedro Arroja ou qualquer outra pessoa que nasceu depois de 1945. Contudo, como berlinense e alemão, identifico-me com a cidade e a sua história. É a minha. E quando visito o museu, faço o neste sentimento de pertença, não com culpa que só podia ser individual, mas com a responsabilidade que é colectiva e advém desta pertença.

Lutz Brückelmann


É a História que se encarrega de fazer os seus heróis e os seus algozes. E a História dos vencedores é sempre tendenciosamente vesga. Nada a fazer: sempre foi assim e sempre assim continuará a ser. Depois há aquela coisa de ser necessário distanciamento e de haver subjectividade e dos preconceitos do sujeito que engole e debita os factos.

Aliás, eu nunca teria grandes problemas em dizer (os historiadores que me perdoem) que a História (pelo menos enquanto disciplina) é profundamente preconceituosa. E também não me custa nada admitir que vou ser sempre um sujeito anónimo na grande História e até na pequena história do tempo que me calhou viver. Mas eu estou confortável com o meu ban, este meu pequeno feudo feito de banalidades e egos domesticados onde insiro tudo o que realmente faz parte do meu mundo e do que nesse mundo é importante para mim.

Não tenho perfil de herói. Espero, sinceramente, não ter também perfil de monstro e transformar-me, por qualquer revés do destino, numa sociopata assassina, capaz de matar outro ser humano como se a humanidade não valesse nada. Mas uma coisa sei: todos somos capazes do bom e do mau; todos temos em nós o potencial para criar e para destruir. E todos somos demasiado iguais, para além do tempo histórico que nos calhou viver, das fronteiras artificiais desenhadas no chão do Planeta, das ideologias amuralhadas, da cor da pele, da religião, ou até da quantidade de poder e influência que fomos capazes de amealhar e a forma como escolhemos utilizá-lo.

A História - a verdadeira - é feita de gente anónima, gente vulgar, gente capaz de pequenos gestos de heroísmo, gente capaz de virar as costas, gente apanhada num turbilhão que não entende, gente que sobrevive, gente que morre, gente que mata. Julgar é um acto posterior, feito tendo em conta premissas profundamente difusas no momento em que a escolha se apresenta como um acto reflexivo. E é por isso que julgar sem entender e sem alguma dose de tolerância e muita capacidade de auto-contenção pode ser profundamente perigoso. Quem se julga sempre melhor do que o vizinho nunca deveria ser autorizado a abrir a boca para julgar fosse o que fosse.

A minha dúvida é esta: tivéssemos nós vivido na Berlim dos anos 30 e 40, ou na Lisboa do pogrom de 1506, em que seríamos diferentes de tantos outros? Temos realmente a certeza de termos estofo de herói, de que seríamos capazes de reagir, em lugar de ser apenas gente vulgar, levada na corrente? Eu não me acho melhor do que ninguém. Sou mesmo demasiado banal. Tão banal que, provavelmente, também teria fechado os olhos, encolhido os ombros, ou até participado nas chacinas.

No entanto, sei bem como custa não julgar. Fazemo-lo todos os dias. Não se costuma é usar a História como desculpa. E o espantoso é como cada um desses julgamentos pode ser profundamente corrosivo, especialmente quando nos confronta com a imbecilidade, quer a alheia, quer a nossa. De qualquer forma, parece-me sempre bem menos pernicioso este meu julgamento pequenino, individualizado, que me faz considerar um fulano, que por acasos do destino calhou ser meu compatriota, um perfeito idiota e lamentar profundamente vê-lo a fazer figuras tristes quando se lembra de abrir a boca para julgar as opções históricas de outros.

2007-07-19

O menino dança?



Acho que me apetecia dançar. Acho que só me apetecia dançar. Ter par para um passo de dança e uns braços com o ritmo certo.

Dançar nos teus braços, embrulhar o meu reflexo no teu, trepar-te lentamente como se me fizesse hera verde, ou então um maracujeiro perfumado.

Apetecia-me dançar bem devagar e ficar ali enrolada, a fazer o corpo nosso no que antes tinha sido apenas teu, apenas meu…

Corpos desaguados de tempo e de ritmo e deste estar para aqui longe e sozinha e cansada e com tanta vontade de dançar, dançar-nos, dançar-te.

2007-07-18

Maleitas




E estamos tramados!...

Impressões


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Um blogger antigo abre novo blogue. A blogosfera em peso corre ao beija-mão… Em peso? Bem, em peso não diria, que a desproporção entre homens e mulheres a picar o ponto é tal que…

(Pronto, ok, vou portar-me bem, que afinal nem ando com vontade disto, nem para isto, nem para tudo o que vem de arrasto disto.)

2007-07-17

(...)



Tua será também a certeza de que o Tempo se esquece dos seus ontens e de que nada é irreparável, ou a contrária certeza de que os dias nada podem apagar e de que não há um acto, ou sonho, que não projecte uma infinita sombra.

Jorge Luís Borges


(Colecciono farrapos de alegrias, brilhos nos olhos, sorrisos a caminho de gargalhadas. Tenho medo das sombras, de alguns sonhos, e desgasta-me esta rotina…)

2007-07-16

Alfaces e outras saladas


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Mas se nem os Lisboetas se decidiram a dar importância ao sufrágio, porque cargas de água terão as televisões feito o povinho do resto do País gramar com a pirosada do costume? E ainda me queixo eu do clister das missas ao Domingo… Apre!

(no entretanto, claro que ver a cara de cu do Paulo Portas ao admitir que o Telminho-que-era-suposto-lá-ir-e-afinal-já-lá-não-vai foi impagável, eheheh)

Parabéns, Corpo Visível :)



Put your pretty dress on
it's time for you to go to the dance

Rosie Thomas - Pretty Dress

Ouvi dizer que é só mais um...

2007-07-14

We'll just keep on trying



Be free with your tempo, be free be free
Surrender your ego - be free, be free to yourself

Quatro anos? Já? Tens a certeza?

Os púdicos desesperam...



Oh inclemência! Até a UE já põe destas coisas do demo nos anúncios institucionais.

Oh martírio! Um dia destes ainda alguém descobre que foder é subversivo!

2007-07-13

Os meus botões


Scott Helmes - Conversation

E, sim, apetece-me vir de vez em quando aqui deixar um pedaço de conversa. Quase como se houvesse conversa ainda e a tivesse apenas interrompido para sorver mais um golo de chá gelado ou uma dentada pequenina numa bolacha de manteiga. E chega quase a ser esquizofrénico este diálogo de mim para mim, mas a loucura nunca foi algo que temesse. Bem menos do que a pose empertigadinha e certinha, pronta a explodir em contra-mão do roteiro ensaiado. Ou talvez seja só porque já não me sobra nada de jeito para ir buscar ao clube de vídeo, ou porque o cinema está que não se pode de pipoca e fedor a sovaco, ou porque não há ordenado que alimente o preço dos espectáculos onde parecem estar sempre e só os convidados do costume, ou porque já me cansa o trânsito do final da tarde, quando todos parecem afinal correr para o mesmo destino. Porque para correr já basta a manhã e o durante o dia; o final da tarde deveria ser de pausa. Uma pausa simples, para sorver mais um pouco de chá gelado, dar mais uma dentadinha na bolacha e continuar uma conversa…

2007-07-12

Pedras, pedrinhas e calhaus


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Esta gente de carreira já devia saber que, se quer fazer política chafurdando no esterqueiro, o mais certo é alguém se lembrar de lhes atirar com um cagalhão à testa…

Parabéns, Vague



It’s not that unusual when everything is beautiful
It’s just another ordinary miracle today

The sky knows when it's time to snow
You don’t need to teach a seed to grow
It’s just another ordinary miracle today

Life is like a gift they say
Wrapped up for you everyday
Open up and find a way
To give some of your own

Isn’t it remarkable?
Like every time a raindrop falls
It’s just another ordinary miracle today

Birds in winter have their fling
And always make it home by spring
It’s just another ordinary miracle today

When you wake up everyday
Please don’t throw your dreams away
Hold them close to your heart
Cause we are all a part
Of the ordinary miracle

Ordinary miracle
Do you want to see a miracle?

It seems so exceptional
Things just work out after all
It’s just another ordinary miracle today

The sun comes up and shines so bright
It disappears again at night
It’s just another ordinary miracle today

It’s just another ordinary miracle today

Todos os dias nos trazem um pequeno milagre a que não prestamos qualquer atenção. E no entanto ambas sabemos que, por vezes, basta estar vivo para não duvidar de que ainda há milagres. Milagres simples, feitos de coisas simples. E a vida aparece engalanada, feita presente embrulhado em laçarotes coloridos. E o dia voltará a nascer e o sol voltará a brilhar e a vida continuará a acontecer. E afinal é só mais um dia, um qualquer dia sem nada de extraordinário. Mas é um milagre, caraças! E hoje este é o teu milagre; o teu dia. E por isso cá está o meu beijo de parabéns.

2007-07-10

A ver o mar...


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No próximo sábado, faz mês e meio que deixei de fumar. Desde então, todos os dias me apetece acender um cigarro e ficar a fumá-lo devagarinho, saboreado. E de todas as vezes levanto-me e vou fazer outra coisa, qualquer coisa, que me faça esquecer que há cigarros e que sabem bem. Paga o tempo que antes perdia sentada em frente ao écran do computador. Paga o tempo que antes reservava para o blogue e para a net. Aqui – especialmente se for depois de comer – a vontade dos cigarros parece triplicar. Por isso vou passear. Tenho ido passear devagarinho. Tenho ido ver o mar, lá para os lados do mar onde não tenho nem computador nem me lembro dos outros vícios.

Há um ano havia o Mundial para nos divertir; este ano há apenas terroristas, guerras e as eleições de Lisboa. E se o terror e a guerra já se banalizaram de tal forma que só nos sobra um encolher de ombros, a política nacional provoca apenas um bocejo. É que a política já não diverte ninguém. E se não é a política à moda alfacinha, então é a política salgalhada à moda de Sócrates e companhia. Ou então à moda da oposição e da poeira que tenta transformar em facto político. E já não há cu para os egos dos politiqueiros carreiristas e os seus (des)mandos. E não há mesmo pachorra nenhuma! E só me apetece sacar de um cigarro e fumá-lo irritada. E não me apetece deixar-me irritar assim nem sequer estragar mês e meio num impulso raivoso. E vou antes passear devagarinho. E vou antes ver o mar. E vou para longe do computador e dos vícios. E estou cada vez mais vazia e destreinada.

A sorte é que ainda não se esgotaram os caranguejos…

2007-07-07

Cinco pétalas de saudades


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Não queres mandar-me esta palavra apenas?
Olha, manda então...brandas...serenas...
Cinco pétalas roxas de saudade...

Florbela Espanca - Escreve-me


Parabéns,
José.

2007-07-05

Relaxa, Espumante



Estás cada vez mais novo!

(um bocadinho rabugento e coisa e tal, mas isso agora também não interessa nada).

Beijo de parabéns :)

2007-07-03

No 52...já ninguém mora!




E, sim, era como um suspiro esta coisa de lhe bordejar a porta pela noitinha e tentar ainda sentir o cheiro a leite-creme queimado com um velho ferro de passar a ferro. Como no tempo em que nos abria a porta de mansinho, puxando o nagalho ao cimo da escada que destrancava a velha fechadura enferrujada. Ou de quando lhe saltávamos ao quintal atrás dos magnórios e das peras e ela fazia de conta que não sabia que estávamos lá. Ou de quando nos contava histórias do fantasma que habitava a casa, morava lá no sótão e só descia pelas vésperas para ajudar a pôr a prece em dia. Ou então de como tinha sido o tempo em que ali havia uma família e gente que se beijava e abraçava pelo correr das horas, enquanto pelos velhos corredores ainda havia passos pequeninos a dizer que a vida havia de continuar para além das vidas que partiam. Ou de quando enfim deixou de poder estar sozinha e afinal parecia que já ninguém tinha espaço para ela e como foi mirrando ao cimo das escadas, à espera que pela noitinha alguém viesse espreitar-lhe as cores e o estado e as maleitas. E depois, quando partimos a estudar longe e já ninguém lhe bordejava a porta, deixou-se ficar cada vez mais sozinha e já nem o velho fantasma lhe fazia companhia nas ladainhas. Morreu sozinha ao cimo das escadas, amparando a solidão de tia velha. E foi quando ela nos faltou que a casa pareceu pesar-nos uma tonelada de mágoas e já pouco importa que seja nossa. Era nossa antes, quando ela lá estava, com os seus fantasmas e as suas histórias. Agora é uma casa que nos tem, mas onde não pertencemos. A casa que herdamos, mas não merecemos. E mesmo quando puxamos o nagalho ao cimo da velha escada rangente para deixar que a porta se abra, ainda assim a escada queixa-se como se nos dissesse que não somos de lá. E é por isso que voltamos a fazer leite-creme queimado – que nunca vai saber ao mesmo – e replantamos a nespereira e a pereira do jardim. Mas até os frutos sabem diferente. E não há vésperas, claro: nenhum de nós aprendeu a rezar de forma a que até os fantasmas nos seguissem as preces. E a tia-avó partiu e não deixou fantasma. E mesmo que haja gente pela casa, no 52 já ninguém mora.



(espero que gostes, Finúrias, desta minha resposta ao teu desafio)

Parabéns, Luís


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Leva lá um beijo enorme!