2025-11-12

Quem tem amigos não morre à míngua

Há quem diga que a amizade é coisa simples — um café, umas gargalhadas e uns apupos, uma mensagem fora de horas. Mentira. A amizade é engenharia fina, alquimia rara, pão quente saído do forno da vida.

Porque, convenhamos, viver é um desporto radical. E sem amigos, a queda é livre. Mas quem tem os seus pares por perto — mesmo que longe — nunca desaba de vez. Pode tropeçar, pode reclamar do mundo, pode até pensar em mudar de planeta, mas alguém há de aparecer com uma frase torta, um meme duvidoso ou um “bora?” salvador.

Amigo é o tipo de gente que entende o silêncio sem precisar de legendas. É aquele que não te deixa morrer à míngua nem quando o inventário de esperança está no fim da validade.

E não se trata só de dividir o último pedaço de pizza (embora isso conte pontos). É saber que há braços invisíveis a segurar a corda quando o coração escorrega.

Porque, no fundo, “quem tem amigos não morre à míngua” quer dizer isso mesmo: não há miséria possível quando se é rico de gente boa. E, cá entre nós, é esse o verdadeiro tesouro — um que não se guarda no banco, mas na alma.

2025-11-11

Arbitragem

A arbitragem em Portugal vive aquele estado curioso em que todos garantem que está péssima, mas cada um acha que está péssima por motivos opostos. Os árbitros juram que fazem o possível, os clubes juram que eles fazem o impossível e o VAR aparece apenas para confirmar que a tecnologia também sabe gerar confusão com elegância.

No relvado, cada decisão vira tese de doutoramento, com repetições de todos os ângulos menos aquele que realmente interessa. Fora dele, dirigentes discutem como quem disputa o último pastel de nata — com convicção, pouca lógica e muito açúcar e canela por cima.

No meio disto, diz-se que a solução está “em melhorar a comunicação”. O problema é que, quando finalmente comunicam, ninguém acredita neles. A crise mantém-se, inflamada, circular, quase artística. E Portugal segue, semanalmente, a viver o seu desporto favorito: reclamar do árbitro, mesmo quando o jogo ainda nem começou.

2025-11-09

Maus sapatos

Um par de sapatos maus é sempre mais eloquente do que parece. Fingem elegância, mas carregam uma vocação dramática que faria tremer qualquer palco: apertam onde ninguém pediu, deslizam quando tudo exige firmeza e, no auge da ousadia, estalam como se anunciassem os nossos segredos. Caminhar com eles é negociar tréguas breves com cada esquina. E seguimos tropeçando com graça estudada, como quem aprende a rir da própria escolha duvidosa. É que, afinal, são muito giros!

2025-11-08

Sobrevivência

A rosa de Jericó é um desses enigmas que o deserto inventa para provar que nada permanece morto o suficiente. Fechada em si, parece apenas um punhado de raízes crispadas, uma lembrança sem água. Mas basta um fio de humidade para que a planta desdobre o seu gesto antigo e volte a abrir, lenta e teimosa, como se recusasse o fim. Há quem a use como talismã, quem nela procure promessas de renascimento. Eu apenas a observo, essa pequena teologia vegetal, ensinando que a sobrevivência às vezes não é mais do que saber esperar pela próxima chuva.

2025-11-07

Sinusite

A sinusite é aquela visita inconveniente que ninguém convida, mas que aparece mesmo assim, trazendo mala, cuia e um congestionamento digno de um feriado prolongado. De repente, a tua cabeça tranforma-se numa câmara de eco onde cada espirro ressoa como um trovão. O simples acto de respirar passa a desporto radical, digno de medalha. E, claro, o nariz decide praticar a sua impressionante habilidade de alternar entre “completamente entupido” e “escorrendo como uma fonte”, sempre no pior momento. No fim, resta apenas a esperança de que este hóspede indesejado se canse rápido e vá atormentar outra morada. É que já me tem ocupada há mais de três semanas!

2025-11-06

Domingo à semana

Os condutores azelhas são uma fauna própria, espécie que prolifera sempre que o semáforo fica verde. Arrancam como se perseguidos por fantasmas, travam como se tivessem visto o fim do mundo e usam piscas apenas por acidente. No trânsito, transformam cada rotunda num ritual misterioso, onde só eles conhecem as regras e mesmo assim mal. Observo-os como criaturas que navegam o asfalto com a elegância de um pato manco, certos de que a estrada é deles e de que todos os outros estão claramente enganados. E fujo! 

2025-11-04

Ventania

Há dias em que o vento não sopra — grita. Vem rasgando o silêncio das janelas mal fechadas, entrando em nós como quem procura abrigo.

A ventania remexe papéis, despenteia os cabelos, e, num gesto só, arranca o que ainda fingíamos segurar.

É assim que o ar se faz espelho:
revela o que precisa ir, o que insiste em ficar e o que já partiu há muito, mas ainda faz barulho cá dentro.

2025-11-02

Os meus mortos

Os meus mortos vivem comigo. Às vezes sentam-se à mesa, em silêncio, a escutar o rumor dos dias que continuam sem eles. Trazem-me memórias como quem oferece flores colhidas no tempo. Não pedem nada, apenas presença. Falam através das sombras, dos cheiros antigos, das canções que insisto em repetir. Aprendi a não temer o que não volta, apenas a acolher o que permanece. Porque os meus mortos não partiram: transformaram-se em voz, em gesto, em brisa. E sei que a eternidade possível passa por um pequeno exercício que, cada um de nós, pode fazer à sua maneira: lembrando.