2013-02-28

Blogocoisa

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Há quase nove anos que tenho um blogue. A vários níveis, é um verdadeiro "blogue de gaja", pejadinho de emoções, com dias de séria evidência de que a PMS bateu forte, outros manso e tranquilo, de vida pouco amotinada. Também foi sempre um blogue de crítica contundente e opiniões fortes. De insultos é que não. Vá, de insultos personalizados quase nunca, tirando a algumas aves raras que me questionaram directamente na caixa de comentários. Crítica (quase) insultuosa a políticos muitas vezes, mas sempre remetendo directamente para qualquer opinião expressa pelas criaturas e, que me lembre, comentário – que pretendi como piada e acho que assim foi entendido – a realçar traços específicos de qualquer figura pública, talvez o nariz do Sócrates, a altura do Marques Mendes, a dentadura de Cavaco Silva e o sapatinho vermelho do agora Papa Emérito. Mas eu também nunca precisei de mais, num blogue marginal que sempre quis ser anónimo e anódino, onde sempre se falou da vida sem pudor, com bastante vernáculo à mistura mas – espero – o mesmo respeito pelos outros que gosto que os outros reservem para mim.

E confesso que me farto facilmente de ver declinações sucessivas de temas e pessoas que querem sempre enfiar tudo e todos em fatos por medida, esquecendo a visão enviesada com que o fazem só para poderem continuar a enfiar-se em determinado figurino onde, por vezes, só cabem esquartejadas e com demasiados rabos de fora. E irrita-me a pose sobranceira de gente ignorante por opção. Quaisquer bons neurónios funcionais vão valer sempre muito mais do que uma carteira Gucci, ainda que vá continuar a haver gente a achar que é a roupa que faz a pessoa, deixando à mostra para lá do figurino o vácuo abjecto, porque promovido "ad nauseum" no sem assunto relevante e alimentado a folclore revisteiro e "calúnias" sociais. 

Não sei se gosto sempre do meu blogue. Ultimamente já nem o tenho nas rotinas diárias. E não sei sequer se gosto sempre de ser quem sou; há muitos dias em que enjoo de mim. Mas já estou demasiado crescidinha para querer parecer o que não sou. E demasiado empurrada pela vida para cá e para lá para reconhecer que, ao publicar e deixar qualquer flanco a nu, o melhor é fazê-lo com respeito, uma pitada de piada, frontalidade e sem olho nas "page views". Há vida e sentimentos do outro lado do ecrã. Sempre houve. E quem não sabe respeitar, não merece respeito. E quem se limita às aparências está, depois de correr toda a tinta necessária, condenado a ser o idiota de serviço, aquele por quem temos apenas uma espécie de vergonha diferida. É que sempre houve na "blogocoisa" um reflexo perfeito do que se passa para lá dela: há as cliques, os ódios, os interesses, as modas, as votações em qualquer coisa, as micro e macro causas e muita, demasiada gente, que encontrou aqui um púlpito onde tentaram fazer-se maiores ou melhores do que os outros. Alguns transitaram para a política activa, outros nela continuaram mas com visibilidade reforçada, outros ganharam os seus quebrados falando do que sabiam e não sabiam e outros só porque eram o exemplo acabada de um certo nicho que, na realidade, nunca deu para mais. Depois, estamos nós deste lado, os que têm e os que não têm blogue, os que já viram demais e conhecem além do projecto apresentado e sabem que, no fundo, uns e outros vivem em função da imagem que projectam e pelam-se de medo de apenas serem o que são. Uns provam-se interessantes; outros ficam reservados a serem "sound bites" ou pixéis supérfluos. No fim, cada um tem o público que merece e mais não se pode esperar.

2013-02-26

Vício



A questão é que uma relação duradoura é, forçosamente, uma relação de dependência; com sorte, de interdependência. Mas, depois, quando o tapete foge de debaixo dos pés, sobra muitas vezes apenas um agarrado com síndrome de privação.

2013-02-16

Carta aos amigos mortos

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Eis que morrestes - agora já não bate 
O vosso coração cujo bater 
Dava ritmo e esperança ao meu viver 
Agora estais perdidos para mim 
- O olhar não atravessa esta distância - 
Nem irei procurar-vos pois não sou 
Orpheu tendo escolhido para mim 
Estar presente aqui onde estou viva. 
Eu vos desejo a paz nesse caminho 
Fora do mundo que respiro e vejo. 
Porém aqui eu escolhi viver 
Nada me resta senão olhar de frente 
Neste país de dor e incerteza. 
Aqui eu escolhi permanecer 
Onde a visão é dura e mais difícil 

Aqui me resta apenas fazer frente 
Ao rosto sujo de ódio e de injustiça 
A lucidez me serve para ver 
A cidade a cair muro por muro 
E as faces a morrerem uma a uma 
E a morte que me corta ela me ensina 
Que o sinal do homem não é uma coluna. 

E eu vos peço por este amor cortado 
Que vos lembreis de mim lá onde o amor 
Já não pode morrer nem ser quebrado. 
Que o vosso coração que já não bate 
O tempo denso de sangue e de saudade 
Mas vive a perfeição da claridade 
Se compadeça de mim e de meu pranto 
Se compadeça de mim e do meu canto.

Sophia de Mello Breyner Andersen

Hallelujah

2013-02-12

Cair do pano


Eu nunca gostei deste Papa que sucedeu a João Paulo II. Não gostei de quase nada do que fez ao longo do pontificado, dos retrocessos evidentes que lhe encontrei em direcção a padrões de fundamentalismo que pensei que o Catolicismo estaria paulatinamente a abandonar, desde as missas de costas voltadas para os fiéis, passando pelo facto de me ter chamado terrorista aquando dos debates sobre o referendo à IVG, com os escândalos da pedofilia dos padres de permeio e acabando no canto gregoriano. Não que eu tenha alguma coisa contra o canto gregoriano, ou sequer o Latim, mas pareceu-me sempre estranho que o chefe da ICAR se empenhasse em transformar as celebrações de fé em algo em que os crentes permanecessem alheados, como que meros espectadores do evento, em lugar de envolvidos e participativos no mesmo. E, no entanto, em alguns momentos, Bento XVI conseguiu surpreender-me profundamente, eu que sempre fui tão renitente em apreciar-lhe qualquer qualidade. Como agora. Ser chefe máximo da ICAR é ter um tremendo poder nas mãos; será talvez também um fardo impensável. Mas os grandes homens, mais do que saberem persistir, devem saber quando chega a hora de saírem de cena. E agradeço especialmente não necessitar voltar a assistir a uma agonia televisionada, como a de João Paulo II.

2013-02-08

E as crianças, Senhor?

CARTA A MINHA MÃE SOBRE O SNS E OUTRAS COISAS EM PORTUGAL



por Teresa Pizarro Beleza*


«"Mãe, sabes que agora em Portugal mandam uns senhores que estão a dar cabo do Serviço Nacional de Saúde? E que dizem que é por causa de uma tal de troika, que agora manda neles? Lembras-te da "Lei Arnaut", que, segundo ele mesmo diz, tu redigiste, depois de muito pensares e estudares sobre o assunto, com a seriedade e o empenho que punhas em tudo o que fazias?



Lembras-te das nossas conversas sobre a necessidade de toda a gente em Portugal ter acesso a cuidados de saúde básicos de boa qualidade e de como essa possibilidade fizera em poucos anos baixar drasticamente a mortalidade materna e infantil, flagelos nacionais antigos, como uma das coisas boas que se tornaram realidade depois de 1974 e com a restauração da democracia?



Lembras-te de quando eu te dizia que eras tão mais socialista do que "eles", os do Partido Socialista, e tu te zangavas porque não era essa a tua imagem e a tua crença?



E quando eu te dizia que o ministro António Arnaut era maçon e tu não acreditavas, porque ele era (e é) um homem bom - e para ti a Maçonaria era a encarnação do Diabo...



Mãe, tu, que te dizias e julgavas convictamente monárquica, católica, miguelista, jurista cartesiana (isso era o que eu te dizia e que penso que eras, também), que conhecias a Bíblia e Teilhard de Chardin como ninguém e me ensinaste que Deus criara o homem e a mulher à Sua imagem, quando pronunciou o fiat, porque assim se diz no Génesis...



Tu que dizias que o problema dos economistas era que não tinham aprendido latim... e me tiravas as dúvidas de português e outras coisas, quando me não mandavas ir ao dicionário, como agora eu mando o meu Filho...



Tu que foste o meu "Google", às vezes renitente, quando este ainda não existia... Sabes que agora manda em Portugal gente ignorante e pacóvia, que nem se lembra já de como se vivia na pobreza e na doença, que julga que o Estado se deve retirar de tudo, incluindo da Saúde, e confunde a absoluta e premente necessidade de controlar e conter o imenso desperdício com a ideia de fechar portas, urgências claramente úteis social e geograficamente...



Sabes que fecharam o Serviço de Urgência e o excelente Serviço de Cardiologia do Hospital Curry Cabral sem sequer prevenirem ou consultarem o seu chefe? Onde irão agora todas aquelas pessoas tão claramente pobres, vulneráveis e humildes que tantas vezes lá encontrei e que não pareciam capazes de aprenderem outro caminho, outro destino, de encontrarem outros dedicados e pacientes "ouvidores"?



Sabes que um ministro qualquer disse que o edifício da Maternidade Alfredo da Costa não tinha qualquer interesse urbanístico ou arquitectónico, para além de condenar ao abate essa unidade de saúde, com limitações já evidentes, mas que tão importante foi para tanta gente humilde ter os seus filhos em segurança? Será mesmo que não a poderiam "refundar", como agora se diz? Ou quererão construir um condomínio fechado, luxuoso e kitsch, no meio de uma das minhas, das nossas cidades?

Lembras-te de me ires buscar à MAC quando nasceu o meu Filho e de como te contei da imensa dedicação do pessoal médico e de enfermagem e da clara sobre-representação de parturientes de origem social modesta, imigrantes, ciganas, ou simplesmente pobres?


Sabes que há muita gente que pensa que a iniciativa privada, incontrolada e à solta, é que vai salvar Portugal da bancarrota, e que ignora o sentido das palavras solidariedade, justiça, igualdade, compaixão?



Sabes, Mãe, eu lembro-me de ver pessoas que partiram de Portugal para o mundo em busca de trabalho e rendimento a viver em "casas" feitas de bocados de camioneta, de restos de madeira, de cartão e outros improváveis e etéreos materiais, emigrantes portugueses que foram parar ao bidonville em St Denis, nos arredores de Paris, num Inverno em que a temperatura desceu a 20 graus Celsius abaixo de zero (1970). Nas "paredes", havia toda a sorte de inscrições contra a guerra colonial e contra o regime que então reinava em Portugal.



O padre Zé, o nosso amigo da Mission Catholique Portugaise que me acompanhava e me quis mostrar o bairro, proibiu-me de falar português e de sair do carro enquanto ali passávamos... e aqui em Portugal eu vi tanta miséria envergonhada, homens de chapéu na mão a pedir emprego, mulheres e crianças a pedir esmola, apesar de todas as leis e medidas que o Estado Novo produziu para as esconder, como já fizera a Primeira República.



A pobreza e a vadiagem não se eliminam com Mitras e medidas de segurança, mas com produção e distribuição de riqueza e de justiça social. Com a promoção da igualdade e da solidariedade, como manda a Constituição.



E a Saúde, Mãe, que vão fazer dela? Da saúde dos pobres, dos velhos, das crianças, dos que não têm nem podem ter seguros de saúde de luxo, porque não têm dinheiro, porque já não têm idade, ou porque não têm saúde?



E as crianças, Mãe? Vão de novo morrer antes do tempo porque o parto foi solitário ou mal assistido, porque a saúde materno-infantil passou a ser de novo um bem reservado a alguns privilegiados, ou porque a "selecção natural" voltará a equilibrar a demografia em Portugal, recolhidas as mulheres a suas casas, desempregadas e de novo domesticadas, e perdida de novo a possibilidade de controlo sobre a sua própria fertilidade?



O planeamento familiar, que tu tão bem explicaste que deveria segundo a lei seguir a autonomia que o Código Civil reconhece na capacidade natural dos adolescentes - tu, católica, jurista, supostamente conservadora (assim te pensavas, às vezes?)...



Sabes que aqui há tempos ouvi uma jurista ignorante dizer em público que só aos 18 anos os jovens poderiam ir sozinhos a uma consulta de planeamento familiar, quando atingissem a maioridade, sem autorização de pai ou mãe? Ai, minha Mãe, como a ignorância é perigosa... Será que nos espera um qualquer Ceausescu ou equivalente, dado o progressivo estrangulamento político e social a que a necessidade económica e a cegueira política nos estão levando?



Os traços fascizantes que são visíveis na repressão da liberdade de expressão e de manifestação, em tudo tão contrários à Constituição da República, serão só impressão de uns "maníacos de esquerda", como dizem umas pessoas que há tão pouco tempo garantiam que essa coisa de esquerda e direita era coisa do passado?



Mas as crianças são o futuro, Mãe, que será deste país sem elas, sem a sua saúde e sem a sua educação, sem o seu bem-estar, sem a sua alegria? Eu lembro-me tão bem dos miúdos descalços e ranhosos nas ruas da minha infância... e da luta legal, tão recente ainda, quem sabe se perdida, contra o trabalho clandestino, ilegal e infame das crianças a coserem sapatos em casa, a faltarem à escola, a ajudarem as famílias, ainda há tão pouco tempo, ou dos miuditos com carregos e encargos maiores que eles, à semelhança das mulheres da carqueja a subirem aquela rampa infame que Helder Pacheco, o poeta-guia do nosso Porto, tão bem descreve...



"Que quem já é pecador sofra tormentos, enfim! Mas as crianças, Senhor, porque lhes dais tanta dor?!... Porque padecem assim?!..."



Mãe, se agora cá voltasses, ao mundo dos vivos, acho que terias uma desilusão terrível. Melhor que não vejas o que estão fazendo do nosso pobre país.



Da tua Filha, com muita saudade,



Maria Teresa"



Ericeira, Portugal, Europa, dia 31 de Dezembro de 2012»



* Professora de Direito Penal, directora da Faculdade de Direito da
Universidade Nova de Lisboa. tpb@fd.unl.p



2013-02-02

Inverno

2013-02-01

meus dias quebrados na cintura

Os navios existem, e existe o teu rosto 
encostado ao rosto dos navios. 
Sem nenhum destino flutuam nas cidades, 
partem no vento, regressam nos rios. 

Na areia branca, onde o tempo começa, 
uma criança passa de costas para o mar. 
Anoitece. Não há dúvida, anoitece. 
É preciso partir, é preciso ficar. 

Os hospitais cobrem-se de cinza. 
Ondas de sombra quebram nas esquinas. 
Amo-te... E entram pela janela 
as primeiras luzes das colinas. 

As palavras que te envio são interditas 
até, meu amor, pelo halo das searas; 
se alguma regressasse, nem já reconhecia 
o teu nome nas suas curvas claras. 

Dói-me esta água, este ar que se respira, 
dói-me esta solidão de pedra escura, 
estas mãos nocturnas onde aperto 
os meus dias quebrados na cintura. 

E a noite cresce apaixonadamente. 
Nas suas margens nuas, desoladas, 
cada homem tem apenas para dar 
um horizonte de cidades bombardeadas. 

Eugénio de Andrade - Palavras Interditas, in Poesia e Prosa