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Nesta hora limpa da verdade é preciso dizer a verdade toda
Mesmo aquela que é impopular neste dia em que se invoca o povo
Pois é preciso que o povo regresse do seu longo exílio
E lhe seja proposta uma verdade inteira e não meia verdade
Meia verdade é como habitar meio quarto
Ganhar meio salário
Como só ter direito
A metade da vida
O demagogo diz da verdade a metade
E o resto joga com habilidade
Porque pensa que o povo só pensa metade
Porque pensa que o povo não percebe nem sabe
A verdade não é uma especialidade
Para especializados clérigos letrados
Não basta gritar povo
É preciso expor
Partir do olhar da mão e da razão
Partir da limpidez do elementar
Como quem parte do sol do mar do ar
Como quem parte da terra onde os homens estão
Para construir o canto do terrestre
- Sob o ausente olhar silente de atenção -
Para construir a festa do terrestre
Na nudez de alegria que nos veste.
Sophia de Mello Breyner Andresem - Nesta hora (20 de Maio de 1974)
Porque há sempre o dia que vem depois da festa e tenta pôr fim à celebração.
2 comentários:
Voltámos hoje ao cinzento dos dias... como em 1973.;)
Não será preciso que várias gotas de água atinjam a maioria das famílias deste país para transbordar de novo o copo?... ;)
Li uma vez um artigo que chamava ao 25 de Abril a revolução impossível. Não lembro agora sequer o nome do autor, nem me apetece ir "googlar" acerca disso. Mas havia uma parte que tentava associar as gentes que fizeram Abril acontecer com o mais tradicional (ia dizer puro, mas nem é bem isso) que existe no sentir português: esse sebastianismo utópico que nos leva a acreditar que tudo é possível e, depois da obra feita, a enfeita de melancolia, tristeza e fado. Mas há sempre uma pulsão escondida, saudosista, pelo que fomos. E se fomos o País que Camões cantou, somos também o País que fez sair os militares à rua num Golpe de Estado e galgou as avenidas para que viesse a Revolução. Estamos mal sim, em muitas coisas. Abril ainda não está cumprido. E até sabemos aguentar décadas de opressão. Mas não acossem o povo, que o povo pode estar calado, mas não está morto. E o impossível pode ainda voltar a ser.
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