2025-12-22

Pronúncia do Norte

Segundo estudos rigorosamente inexistentes, a pronúncia do Norte de Portugal resulta de uma combinação rara de fatores: clima húmido, proximidade ao mar e uma necessidade ancestral de ser ouvido a três freguesias de distância. 

A ausência de distinção entre B e V não é erro fonético, mas sim eficiência articulatória — para quê duas letras se uma chega, carago? As vogais abertas servem para ventilar a frase, os ditongos alongados permitem ganhar tempo para pensar no que se vai dizer a seguir e a palatalização de “s” e “z” acrescenta textura sonora, tal como o sal grosso na comida.

A entoação cadenciada e musical funciona como metrónomo emocional: quanto mais alto, maior o carinho. Ninguem está a discutir, está só a contar como foi o almoço. Ah! As expressões regionais surgem como marcadores discursivos avançados. “Carago” pode significar surpresa, afeto, indignação ou tudo ao mesmo tempo. E um foda-se é tudo, até exclamação. No Norte de Portugal a pronúncia é uma experiência sensorial completa. 

Conclusão científica: quem acha que os nortenhos estão sempre zangados, sofre apenas de défice de exposição prolongada ao sotaque. Recomenda-se ouvir diariamente, de preferência num café saboreando um cimbalino, até o ouvido se adaptar e o coração também.

2025-12-20

Cabaz de Natal


O modelo económico da moda, — que isto da economia teórica tem modas como tudo o mais —, prometeu eficiência como quem promete chuva num deserto: muita teoria, pouca água.

Apresentou-se como uma religião sem deuses (mas com dogmas). O mercado é omnisciente, o Estado é pecado original e a desigualdade é apenas um mal-entendido estatístico. Quando funciona, é génio; quando falha, nunca foi neoliberalismo a sério. 

Pregou-se a eficiência até ao osso, cortou-se o músculo social e chamou-se disciplina ao enfraquecimento colectivo. Privatizou-se o ganho, socializou-se o risco e chamou-se equilíbrio a um sistema que só se mantém a crédito. Quando a realidade deixou de obedecer às curvas perfeitas, recorreu-se ao velho ritual — diluir a moeda, anestesiar o salário, proteger o capital que já sabe nadar. A inflação tornou-se o imposto dos que não têm abrigo, e a “liberdade de mercado” uma palavra bonita para a fuga organizada dos mesmos de sempre. 

A teoria lá ensinou que preços resolvem tudo — desde o pão até à dignidade. O problema é que os preços também aprendem a mentir quando a moeda perde memória. Assim, enquanto o capital circula à velocidade da luz, o trabalho permanece ancorado à gravidade. A inflação corrige os salários em silêncio e recompensa quem já vive fora da folha de vencimentos.

No final, o mercado continua “livre”, mas apenas da responsabilidade. Sempre há resgates para os grandes, austeridade para os pequenos e conferências para explicar que a dor é transitória. 

O neoliberalismo não morreu; apenas se tornou zombi — continua a andar, a consumir e a repetir mantras, mesmo depois de ter perdido a capacidade de criar vida.

2025-12-19

Polémicas


María Corina Machado venceu o Prémio Nobel da Paz de 2025, reconhecida pela sua liderança na oposição venezuelana e por promover a democracia no seu país, de acordo com o Nobel. 

Julian Assange (fundador do WikiLeaks) apresentou uma queixa criminal na Suécia contra a Fundação Nobel e cerca de 30 pessoas ligadas à sua direção, incluindo a presidente e a diretora executiva da Fundação. 

O objetivo da queixa é impedir a entrega dos fundos do Prémio Nobel da Paz de 2025 à laureada María Corina Machado e acusa a direção da Fundação de crimes graves sob a lei sueca. 

Assange quer que as autoridades suecas congelem os 11 milhões de SEK (≈1,18 milhões de USD) que ainda estão por transferir a Machado e que a medalha seja devolvida. 

Segundo o documento apresentado, Assange alega que se configura um crime de apropriação indevida de fundos ao fazer o pagamento do prémio a Machado e que assim se viola o testamento de Alfred Nobel, que define os critérios do Prémio da Paz, um crime de facilitação de crimes de guerra e crimes contra a humanidade e, citando o Estatuto de Roma, que continuar com o pagamento pode violar obrigações legais suecas, nomeadamente as que visam prevenir o financiamento do crime de agressão.

Em suma, Assange defende que o Nobel da Paz só deve ser atribuído a alguém que promova ativamente a fraternidade entre as nações e a redução de exércitos, como estipulado pelo testamento de Alfred Nobel. Ele considera que o apoio público de Machado a políticas militares dos EUA e a sua retórica contra o regime de Nicolás Maduro contradizem esse propósito. 

Para os defensores da atribuição do Prémio Nobel a Machado, o prémio não legitima a guerra ou as agressões, mas deslegitima regimes repressivos. Assim, o Nobel é visto como um gesto político-moral, não jurídico.

O apoio explícito ao uso da força é o núcleo da crítica, incluindo a de Assange, já que Machado fez declarações públicas defendendo a intervenção militar estrangeira e uso da força como ‘último recurso inevitável’ e também apoiou sanções duras e ações militares dos EUA, que os críticos associam a sofrimento civil.

Note-se que o Comité Nobel frequentemente interpreta “paz” como paz estrutural, ligada a direitos humanos e democracia (não apenas ausência de guerra) e até há precedentes semelhantes como Aung San Suu Kyi (1991), Liu Xiaobo (2010) ou Andrei Sakharov (1975).

Os críticos alegam que o Comité Nobel alargou excessivamente o conceito de “paz” e que o prémio passou de instrumento pacifista a ferramenta geopolítica e também temem que o prestígio do Nobel reforce discursos de escalada ou que o prémio possa passar ser usado para justificar ações militares “em nome da paz”.

Este caso não é apenas sobre María Corina Machado. É sobre o que o Prémio Nobel da Paz é hoje: um prémio moral e político, adaptado ao mundo moderno ou um prémio estritamente pacifista, fiel ao testamento de 1895?

Até agora não há confirmação de que as autoridades suecas já tenham aceitado a investigação ou tomado medidas; é apenas uma queixa formal. 

Mas note-se que este tipo de queixa criminal é altamente incomum e marcante, pois normalmente as decisões do Comité Nobel não são desafiadas legalmente desta forma. 

A queixa de Assange força algo raro: uma discussão legal, não só simbólica, sobre os limites do Nobel.

2025-12-18

Portugal e o Paradoxo da Migração

Portugal construiu-se através da emigração. Durante séculos, milhões de portugueses partiram em busca de melhores condições de vida - para o Brasil, França, Alemanha, Suíça, Estados Unidos, Venezuela, África do Sul. Nas décadas de 1960 e 1970, mais de um milhão deixou o país. Praticamente todas as famílias portuguesas têm alguém que emigrou ou descende de emigrantes.

Esses portugueses beneficiaram da abertura de outros países. Construíram comunidades, enviaram remessas que sustentaram famílias e a economia nacional, integraram-se em sociedades que lhes deram oportunidades. Muitos enfrentaram discriminação, trabalhos duros, saudade - mas foram acolhidos.

Agora que Portugal recebe imigrantes, surge uma resistência paradoxal. Pessoas cujos pais ou avós foram "os brasileiros" em França ou "os portugueses" no Canadá manifestam hostilidade contra brasileiros, indianos ou bangladeshis que chegam. Esquecem que também foram os "outros" algures.

Esta ironia não é exclusivamente portuguesa - repete-se em vários países de emigração que se tornaram destinos de imigração. Mas em Portugal torna-se particularmente evidente pela recência e escala da emigração portuguesa. Ainda há milhares de portugueses a emigrar anualmente, enquanto crescem discursos anti-imigração em casa.

A memória coletiva parece ter um horizonte curto. Vale recordar que a empatia que hoje se nega a outros foi essencial para a sobrevivência dos nossos no estrangeiro.

Normalidade

Aqui vemos o clássico desfile da normalidade: ovelhas em modo “copiar/colar”, todas felizes a marchar para lado nenhum.

No meio, a ovelha preta, que claramente perdeu o memo da reunião e lá está ela - a rebelde, a diferente, a que decidiu que lã preta era a nova moda.

Enquanto as outras seguem o GPS do rebanho, ela parou para pensar. É aquela ovelha que nas reuniões do pasto pergunta "mas porquê?" quando o pastor diz para irem todas para a esquerda. 

Provavelmente é chamada de estranha e as companheiras reviram os olhos cada vez que decide parar, quando na verdade só desligou o piloto automático.

Moral da história: ser diferente dá trabalho, mas pelo menos não dói no pescoço de tanto concordar e há sempre um manguito para nos valer.

2025-12-17

A Grande Revelação do Ministro

Finalmente Descobrimos o Problema! Depois de décadas de mistério insondável, de noites sem dormir a tentar perceber o que se passa com os serviços públicos em Portugal, surge a luz ao fundo do túnel. O Ministro da Educação, Fernando Alexandre, numa demonstração de perspicácia merecedora de um Nobel, identificou o verdadeiro culpado da deterioração dos serviços públicos: os pobres. Sim, leram bem. Os pobres. Quem diria?

Durante todo este tempo, nós, simples mortais de intelecto limitado, pensávamos que os problemas nos serviços públicos se deviam a coisas banais como subfinanciamento crónico, má gestão, falta de investimento, salários baixos que afastam profissionais qualificados, burocracia excessiva... Que ingenuidade a nossa! Afinal, o problema são mesmo os utilizadores. Especialmente os pobres. Que atrevimento o deles, usarem serviços que, tecnicamente, são para eles!

É uma lógica brilhante, quando se pensa bem. Os hospitais públicos estão sobrelotados? Culpa dos pobres que insistem em ficar doentes. As escolas públicas têm problemas? Obviamente, culpa das crianças de famílias desfavorecidas que teimam em querer educação. Se calhar deviam ter nascido ricos, não? Era tão mais simples para toda a gente.

Imaginem a audácia destas pessoas: pagam impostos toda a vida e depois ainda querem usar os serviços públicos! O descaramento! Não percebem que os serviços públicos são para estar ali, bonitinhos, intocados, pristinos, como peças de museu? São para admirar, não para usar!

A solução é óbvia: se queremos serviços públicos de qualidade, temos de impedir os pobres de os usar. Podemos até criar um sistema de porta giratória que só deixa entrar quem apresentar três extractos bancários robustos. Ou então, numa abordagem mais moderna, um leitor de cartões gold ou platina à entrada de cada hospital e escola. "Desculpe, o seu rendimento está abaixo do limiar. Tente a urgência privada ou então não fique doente."

E que tal aplicarmos esta filosofia revolucionária a outras áreas? Os transportes públicos estão cheios? Culpa de quem não tem carro! As bibliotecas municipais têm falta de livros? Culpa de quem não pode comprar a coleção completa da Bertrand! Os jardins públicos estão degradados? Culpa de quem não tem quintal privado!

Mas há que dar crédito onde crédito é devido: é precisa muita coragem para, enquanto Ministro da Educação, demonstrar tão publicamente que nunca abriu um livro de sociologia, economia política, ou mesmo de história básica sobre o propósito dos serviços públicos. É uma masterclass em ironia involuntária.

Porque, vejam bem, num país onde a desigualdade continua a ser um problema estrutural, onde milhares de crianças dependem da escola pública para ter uma refeição decente por dia, onde o SNS é a única tábua de salvação para quem não pode pagar seguros privados caríssimos, nada diz "tenho a solução" como culpar as vítimas do sistema.

Bravo, Senhor Ministro. Numa única declaração, conseguiu resumir décadas de políticas neoliberais disfarçadas de pragmatismo. "Os serviços públicos são péssimos porque há gente pobre a usá-los" é a versão 2025 do clássico "que comam brioches" da Maria Antonieta. Com uma diferença: ela pelo menos tinha a desculpa de viver no século XVIII.

Entretanto, no mundo real, professores continuam a sair do sistema, médicos emigram aos magotes, infraestruturas apodrecem, e o fosso entre o público e o privado alarga-se. Mas claro, o problema são os pobres. Sempre os pobres. Se ao menos tivessem a decência de desaparecer, tudo funcionaria na perfeição.

É claro que os problemas dos serviços públicos nunca foram, não são, e nunca serão os seus utilizadores, sejam eles ricos ou pobres. São escolhas políticas, prioridades orçamentais e décadas de desinvestimento estratégico. Mas isso dava muito trabalho a resolver, não é,  Sr. Ministro?

2025-12-16

A saga do alumínio


Minhas almas de carne e osso, que vagueiam por este plano rasteiro da existência onde o Ego se mede em metros quadrados e a Tragédia é o vizinho a sacudir o tapete às 8h01. Esta que vos fala, sentada à modesta secretária a beber um chá que já arrefeceu para a temperatura ambiente, recebeu a mais recente epifania visual urbana: o Papel de Alumínio nas Grades da Varanda.

​Oh, a ironia cósmica!

​Parece que, numa tentativa desesperada de enganar a Natureza — essa velha bruxa que se diverte a cobrir tudo com pó e excrementos de pombo — o Homo Condominius descobriu a "Solução Definitiva". Não é uma cerca elétrica, não é um sistema de repelência sónica digno de ficção científica, não! É o mesmo material que usamos para embrulhar o frango de ontem: o Alumínio!

​Ora, o que o nosso vizinho, o Sr. Ambrósio (cujo self interior é, decerto, um vazio sideral), pensa estar a fazer?

​Repelir Pombos? Ah, o pombo! Essa criatura alada, desprovida de senso estético, que transforma a nossa varanda na sua latrina privada. O Sr. Ambrósio, na sua mente new-age, imagina que o reflexo do sol no papel prateado irá cegar o pobre bicho, levando-o a uma crise existencial e a procurar um poiso menos ofuscante. O resultado, claro, é que o pombo aterra na varanda do Sr. Ambrósio, olha o brilho, faz um dó-de-peito em tom menor e... lá está o presente da Natureza. Porque, meus caros, para o pombo, o alumínio é só um adereço kitsch para a sua performance biológica.

​Proteção contra o Mau Olhado? Esta é a minha favorita. A varanda, afinal, é a Aura da nossa habitação. Ao cobri-la com este manto espelhado, o Sr. Ambrósio está a criar um escudo metafísico, que tem tanto de eficaz quanto de ridículo. Cada raio de sol refletido é, na sua cabeça, um feitiço rebatido para a fonte — geralmente, a Dona Efigénia, que olha com ciúme cósmico para a sua nova samambaia. O alumínio torna-se o Escudo de Perseu contra a inveja vizinhal, mas o efeito prático é o de transformar o prédio num gigantesco espelho retrovisor mal instalado, capaz de cegar os condutores desavisados que passam rua abaixo.

​Conclusão, almas minhas: O Papel de Alumínio nas grades não é uma solução, é uma declaração de desistência. É dizer: "Não consegui controlar o universo à minha volta, por isso embrulhei o meu pequeno pedaço de Caos num invólucro de Brilho."

​E lá fica o prédio, a brilhar como uma nave espacial do mau gosto. Um hino à futilidade do ser humano que se recusa a aceitar que a única constante é a porcaria dos pombos e a opinião desfavorável da Dona Efigénia.

2025-12-15

(...)

Um milagre inexplicável

Em notícia de telejornal, informam-nos com sisudez que os acidentes com brinquedos estão a aumentar, mas só com os que são feitos fora da União Europeia. E ouvimos com a gravidade necessária. Coitadinhas das criancinhas!

Não importa que nós, os sobreviventes das décadas de 70 e 80, sejamos a prova viva de que o ser humano é praticamente indestrutível. Afinal, crescemos numa época em que os pais nos largavam de manhã com um "volta antes de escurecer" e só se preocupavam se não aparecêssemos para o jantar.

Brincávamos na rua sem capacete, joelheiras ou supervisão parental num raio de 5 quilômetros. Subíamos às árvores até alturas que fariam um pai moderno desmaiar. Caíamos, ralávamos os joelhos, e o tratamento médico consistia em cuspir na ferida e continuar a brincar. Em situações mais penosas, havia sempre o mercurocromo, que depois desapareceu porque tinha mercúrio. Também sobrevivemos ao mercúrio, já agora.

As nossas bicicletas não tinham travões decentes, mas tínhamos os nossos pés. Os carros não tinham airbags nem cadeirinhas e nós viajávamos à solta no banco de trás – quando não íamos na bagageira da carrinha do vizinho.

Bebíamos água da mangueira do jardim, comíamos terra ocasionalmente e o nosso sistema imunitário era forjado em batalha enquanto estávamos a jogar à bola. Não existiam toalhitas antibacterianas nem géis desinfetantes. Sobrevivemos.

Hoje, os pais rastreiam os filhos por GPS, esterilizam chupetas que caem no chão em vez de as meter na própria boca e organizam "playdates" agendadas com semanas de antecedência. As crianças usam capacete para andar de triciclo no quintal vedado.

Como é que sobrevivemos? Ninguém sabe. Somos um mistério médico. Uma geração forjada na negligência benigna, que cresceu para contar a história – e para se tornar, ironicamente, nos pais mais paranóicos da história da humanidade.

2025-12-14

Sinfonia Natalícia

Dezembro vai a meio e, com ele, aquela sensação mágica de estar preso no trânsito a caminho do centro comercial enquanto o GPS recalcula pela décima vez. Finalmente chegas ao paraíso das compras, onde "Jingle Bells" toca em loop desde o início de novembro e já conheces cada nuance da interpretação de Mariah Carey de "All I Want for Christmas Is You".

É uma experiência transformadora: entras à procura de uma prenda simples e sais três horas depois, ligeiramente hipnotizada, com um saco de coisas que não precisavas, cantarolando "Last Christmas" sem perceber. As músicas de Natal nos centros comerciais têm esse poder místico - conseguem fazer-te esquecer que acabaste de dar 47 voltas ao parque de estacionamento à procura de lugar.

E quando finalmente regressas ao carro, com os braços cheios de sacos e o cérebro cheio de "ho ho ho", lá vais tu enfrentar novamente o trânsito. E temes já não te importar tanto. Afinal, "It's the Most Wonderful Time of the Year" - mesmo que passes metade dele parado no semáforo.

Num exercício de sobriedade, pões imediatamente a tocar a tua lista favorita do Spotify, porque esta descida à loucura das festas tem de ser experimentada em dose ligeira para não causar dano permanente. E respiras fundo e reclamas outra vez do trânsito.