2005-10-31

A compota da tia


Antoine de Villiers - Fervor


...então costumavam ficar deitados, nus, a retomar a respiração. Depois a conversa ia-se tornando pausada, serena, interrompida por umas quantas risadas. Um gole de água e mais uma festa percorrendo a pele. Logo a seguir, uma confidência com atenção nos olhos.


E a tarde ia correndo desapercebida.


Ele sentiu fome:


-Vou lá abaixo buscar um pão com aquele magnífico doce de tomate da minha tia.


Levantou-se, procurando o roupão, e lá foi...


Daí a pouco estava de volta de papo seco, recheado de doce, seguro na mão.


Ao passar por cima dela, rumo ao seu lugar na cama, uma gota de doce de tomate caiu sobre a barriga da companheira. Ali mesmo a Sul do umbigo.


-Oh!...Desculpa. Disse o rapaz atrapalhado.


-Agora limpa! Disse ela olhando a gota vermelha.


Ele pegou numa t-shirt, abandonada aos pés da cama. Mas ela interrompeu-lhe o gesto:


-Limpa com a boca!


O jovem, hesitante, cumpriu a ordem da sua amante, usando a língua.


Limpa a barriga, a mulher arrancou-lhe a sandes da mão, apertando-a com força. Várias gotas insidiosas de doce de tomate tombaram mais abaixo no corpo da amante:


-Limpa! Ordenou ela, outra vez.


-Aí?... Perguntou o rapaz.


-Sim! Aí no canteiro das flores malditas. Confirmou ela. E, depois, num gemido: Aaahhh.... Temos que mandar um cartãozinho à tua tia....a agradeceeeer...

_______

Esta é a contribuição do Gaivina para o comPILAções.



E bom Halloween para todos. Que os velhos deuses celtas vos acompanhem em mais uma mudança de estação!

Afectos


aqui


Os afectos não têm incorporada qualquer função "on"/"off". Os afectos são conquistados. Mas, para isso, há necessidade de espaço para a conquista. Uma porta fechada, um corpo fechado, um preconceito induzido, podem ser um inibidor de partilhas maiores. Nada pode ser forçado. Mas também me parece que nem tudo tem de ser dito. No fundo, eu gosto é de ler a linguagem gestual da disponibilidade para a partilha.

2005-10-28

Olhos assustados


Just travelling on a bus
From a friend's house,
And all these people are looking at me.
They're gazing out windows,
In any English country gardens.

But as gazes meet,
Vacancy shows on screen.
But I feel inside
The latent hysteria:
"Why is she looking at me?"

And as I drift from one to one I can see
They're all like me.
They've all got frightened eyes
Saying what they're thinking,
What they are doing tonight.

They've all got frightened eyes,
Saying, "Leave me alone,
I'm perfectly safe here inside.
Please don't surprise me."

Expressionless.
Everyone here loves cheap wine--
We all know good taste,
We just get too busy trying to find
The right games to play.

Impatient, aren't we all?
Watching the time trip by.
And all these people are looking at me.
They're gazing out windows.
They're burning up in there.

And as I drift from one to one I can see
They're all like me.
They've all got frightened eyes
Saying what they're thinking,
What they are doing tonight.

They've all got frightened eyes,
Saying, "Leave me alone,
I'm perfectly safe here inside.
Please don't surprise me.


O passo rápido no dia chuvoso, os ruídos abafados das botas desencantadas à pressa dos arquivos da moda passada, ou os passos periclitantes de tacões de botas de moda nova; os ares cinzentos e despidos, agasalhados em casacos com cheiro a naftalina e a falta de luar; os compromissos fechados, longe do vento sussurrante; os guarda-chuvas que se cumprimentam quando as gotas levam os sorrisos e os olás.

Observo do meu canto o ir e vir. Observo o não chocar. A passagem dos corpos por entre outros corpos, como se passassem antes por entre pingos. Rostos fechados. Olhos assustados.

E, nos braços, intermináveis ramos de gerberas, para pintar de cor e lágrimas os cemitérios.

2005-10-27

Também brinco!


CarTono

Contaste-me segredos durante a noite inteira por entre os meus cabelos. Juraste que me querias mais do que ao sol da manhã. Pediste-me no sufoco de beijos ardentes que fosse o teu ar. Inventaste um futuro a dois enquanto te perdias por entre os meus seios. Disseste-me que a Primavera vivia nos odores de mulher que se desprendiam do meu corpo. E que no meio das minhas pernas estava a tua casa.

E queres agora que não esteja triste quando, com o raiar do dia, me abandonas com um copo vazio, enquanto te espraias no sofá a ver as últimas tristezas da bola?

Lembram-se dos desafios?

legenda:
Porque estás triste? Não te dei já o sumo de laranja que querias?


Gaivina

Contem-nos a história. Têm o desenho. Têm a legenda. Têm a vossa imaginação. Este é o novo desafio da Voz. Digam lá que já não tinham saudades...

Podem escrever no vosso blogue, ou então mandar para aqui, à semelhança do que fizemos com o comPILAções. Que tal?

2005-10-26

Sobre beijos e abraços


[os abraços] Têm até uma vantagem sobre os beijos. Em vez de plantarem fome e desejo, semeiam o aconchego e um calor de ninho.

v-e-l-ü-t-h-a


Estive a ler este post tão lindo e já lá voltei mais do que uma vez. Pelo texto, mas também pela resposta de onde "roubei" o pedacinho acima.

E pus-me a pensar também nuns quantos beijos perdidos na memória. E também lhes recordo ainda os pormenores. Muitos, muitos beijos. Um por cada ocasião; ou mais do que um, se fosse ocasião disso.

Mas foram os beijos embrulhados em abraços que mais vivos encontrei nos meus arquivos de carinho. Beijos especiais que, assim enovelados no amplexo de braços queridos, plantaram fome e desejo com aconchego e calor de ninho. Foram sempre beijos de "chegada a casa". Beijos completos, pela proximidade de corpos prontos para se darem por inteiro. Beijos que ainda sinto, com a saudade com que recordamos a completude.

As Cartas


Confesso que fui apanhada de surpresa pelo pedido: "Será que posso enviar, de vez em quando um texto, para este Blog, casa tua?"

Que se responde a isto? Que dizer a quem achou o nosso blogue merecedor de um esforço de escrita, que se sentiu tão em casa que quis poder tirar os sapatos e sentar-se na cadeira mais confortável?

Diz-se o óbvio: "força!"

Não sei o que o Gaivina viu na Voz que tanto lhe tenha agradado. Mas, depois de ler o texto que nos deixa, eu só posso dizer: obrigada, Gaivina!

E agora vou escolher uma cor bonita para as palavras do Gaivina. Eu manterei o meu azul cueca.

E deixo-vos então "As cartas".


Gaivina


Não se sabe muito bem, quando Rosa começou a escrever cartas a si própria. A mãe lembrava-se de ter aberto, um dia, a caixa do correio e retirando de lá uma carta proveniente de Buarcos, escrita pela filha e dirigida a ela mesmo. Rosa era ainda uma menina, mas respondera-lhe prontamente “que as tinha escrito para guardar as coisas boas que tinha sentido nas férias”. Tinha medo de se esquecer de tudo quanto vivera naquele areal debruçado sobre o azul e, assim, a melhor forma de guardar aqueles sentimentos era dentro de uma carta.

Eram as cartas de Rosa como pequenos contentores de emoções vividas, preservadas para posterior consulta. Exactamente, como quem não quer perder o pé na vida deixando escapar, sabe se lá por onde, um sentimento precioso habitado no passado. Cada vez que se ausentava, de casa, mesmo que por pouco tempo, escrevia a essa outra leitora que era ela mesmo.

Agora mulher, a sua filha Rosa, anunciara perante toda a família que iria partir pela Europa fora. E, como é bem sabido, não vale a pena contrariar uma mulher que quer trilhar novos caminhos. A mãe e o irmão não tiveram outra alternativa senão aceitar a decisão.

Passadas umas semanas, chegara a primeira carta dirigida à própria viajante. Habituado aos desvarios da irmã, João entregou a carta à mãe que a guardou na gaveta das meias. E as missivas foram chegando espaçadas, tal e qual se sucedem as estações do ano. Ao fim de uns tempos, passaram a chegar todos os meses, algo a que a mãe atribuía a uma densidade de emoções que estavam a ser vividas pela filha, sabe-se lá onde.

Entretanto a saudade e os cuidados foram apertando o coração da velha mulher.

O irmão cuja vida era feita de terra e local, pouco pensava no destino da irmã. Apenas se limitava a entregar as epistolas à mãe, que as reunia em pequenos molhinhos atados por fitas coloridas no fundo da gaveta das meias.

Mas um coração materno tem limites face a uma ausência tão acentuada.

Por essa altura, começaram as cartas a chegar todas as semanas e, ao fim de um tempo, o carteiro trazia todos os dias uma carta destinada à “menina Rosa”.

Os cuidados da mãe, subiram ao coração com uma pressa de maré cheia.

Um dia, de carta na mão, decidiu-se a cometer o mais vil de todos os crimes: violar a correspondência. Angustiou-se com a ideia, mas o vazio uterino de quem espera uma filha falou mais forte. Pegou numa faquinha de prata e abriu o envelope, bebendo com sofreguidão a escrita.

E a filha falava em saudades de casa, da mãe e do irmão, sentindo até falta da geada cobrindo os campos.

A mãe deixou escorregar a carta para o chão enquanto limpava uma lágrima teimosa: Rosa estava prestes a chegar.


Gaivina

2005-10-25

Lista de compras


foto de David Vance


Que o peixinho gosta muito de fotografia já sabia. Que, volta e meia, me oferece umas fotos assim mais... mais... mais a meu gosto, também parece que já todos sabem. Esta estava lá nos Enresinados e eu nem dei conta! Como posso ter deixado passar uma coisa destas? Como? E logo agora que ando a escolher as toalhas de casa de banho novas, que é para poder espalhar os "desejos" por todas as tias e primas antes do Natal?

Assim está mais fácil e é só dizer: tia, é um destes. O jogo de banho, claro!

A 'minha' casa


aqui


As minhas caixas de comentários são um convite a quem vem por bem a esta Voz. Gosto do feed-back que me permitem. Gosto de saber que, por mais sério que seja o tom do post, é nelas que, verdadeiramente, estão os tesouros deste blogue: as tantas e tantas de respostas fantásticas e, muitas delas, imerecidas, que me foram deixando ao longo destes quase quinze meses.

Ali mais em baixo, a Zu dizia que estava confortavelmente instalada num sofá em amena cavaqueira. E podia estar mesmo. Porque também para isso servem estes sistemas de comentários: prolongar, pelo olhar do outro, dos outros, o que vou tentando dizer, nem sempre da forma mais correcta, nem sempre da forma mais clara.

Ao fim deste tempo todo, acabamos por nos conhecer um bocadinho uns aos outros. Nenhum de nós quer passar por santo, suponho, ainda que, como em todo o lado, haja umas personalidades mais frontais do que outras naquilo que dizem e na forma como o dizem.

Os blogues são nossos, ainda assim. De cada um de nós que os abriu e os vai sustentando com o tempo que rouba a outras coisas. Alimentamo-los com as nossas histórias, as nossas palavras, as nossas alegrias e as nossas mágoas. Desabafamos aqui o que nos queima a garganta. Pedimos em silêncio um abraço de amparo e, quase sempre, ele está logo ali, nos comentários que não tardam a chegar. Como partilhamos também a felicidade, os dias bons, a vontade de soltar gargalhadas a despropósito, sem termos de estar a explicar outra vez porque é o nosso sentido de humor tão estranho.

São como as nossas casas. Todas terão o seu feitio, o seu estilo decorativo e pouco importa que uns tenham atacado de assalto o IKEA e outros se ficassem pela Moviflor. É ao gosto de cada um e pretendem-se confortáveis quase todos, polémicos alguns, desbragados uns quantos, antipáticos e caprichosos - e ainda assim com piada e lugares permanentes na bancada - mais uns outros.

Todos os que escolheram ter comentários sabem que estão sujeitos a visitas indesejáveis. Porque há sempre um qualquer filho da puta que aparece onde não é chamado, ou porque não sabe estar quieto, ou porque quer visibilidade, ou porque, néscio, não tem entendimento para mais. Mas até esses já são farinha da casa e quase chegam a ter piada no poucochinho que são.

Agora, pode um ataque concertado, orquestrado, deliberadamente estudado e, suponho, até cronometrado, achar que não vai parar ao balde do lixo? Porque haveríamos nós de dar guarida a quem não vem por bem, a quem não entende o espírito que nos move ao abrirmos estas nossas casas aos comentários de estranhos?

Porque os estranhos entram com cuidado, tomam atenção para não partir logo um bibelô, não conspurcam a casa alheia nem a tentam transformar em esgoto. Os estranhos vêm comentar o que está dito no blogue. Ou o que foi dito noutro comentário. Não vêm atirar merda para as ventoinhas à espera de a ver voar em todas as direcções.

Ora eu nunca gostei de poluidores. E sempre tive cuidado em separar o lixo. E há cagalhões que continuarei a ver desaparecer com as águas da descarga. Afinal, esta é a minha casa e aqui ainda sou eu quem decide o que fica e o que não fica. E a merda vai embora!

2005-10-24

12 anos depois


aqui


A Kate Bush está de volta. Em álbum duplo. E o primeiro single até já anda por aí a rodar.

Oh Pai Nataaaallllll.....

Adeus, tristeza


(recebida por mail)


Sou uma "gaija" afortunada! Há sempre um amigo pronto a mandar-me o presente certo para dizer "até depois" à tristeza.

Como será que adivinhou que eu ia gostar? Hmm...

Bonito par de mãos, não vos parece?


Obrigada, P :)

Sussurros


aqui


Presto atenção ao silêncio e a tua voz diz-me que te falto. Galgo a distância. A tua voz leva-me. Não sei se é só saudade, se esta febre teimosa que não me deixa. Ouço-te. Como se estivesses bem ao meu lado. Quase sinto os teus dedos frios sobre a testa. Quase respiro o teu ar. Sôfrega de ti, como já não ficava há muito tempo. É da febre. É delírio. És tu. Ou apenas a tua voz a percorrer-me os sonhos. Que saudades tenho, às vezes! Assim, de mansinho, quando estou mais frágil e, dos confins da memória, chega-me a tua voz. Baixinho. Bem baixinho. Como se as saudades só se fizessem de sussurros. Como se hoje estivesses aqui de plantão, meu anjo. Como se não tivesses partido nunca. É delírio, por certo. E estas saudades de ouvir a tua voz a dizer-me como te falto... como me faltas.

2005-10-23

Entre marido e mulher…



aqui


Estou para aqui a ouvir os vizinhos de cima a matarem-se aos bocadinhos com gritos e lambadas, sem saber por que cargas d’água acabei eu convidada para um casamento disfuncional.

E a partir de onde fica possível intervir, sem ser ingerência? Depois de um deles estar na morgue?

Slowly goes the night

2005-10-22

Mais um :))

Gueixa

Ele gostava de entrar em jogos de poder, sempre a dominar. Gostava de medir forças mesmo nas relações pessoais. No sexo, também. Nada o excitava mais do que submeter uma mulher ao seu domínio. Queria-a principalmente se ela fizesse tudo o que ele dissesse, se se deixasse subjugar à lei do seu desejo.

Ela era uma mulher misteriosa. Talvez devido à sua capacidade camaleónica de mudança. Era capaz de ser quem quisesse, de se colocar na pele duma personagem que acabara de criar. Era uma actriz de vidas.

Conheceram-se num bar. Trocaram um longo olhar que falava sobre domínio e submissão. O tempo parou e as conversas à volta deles atenuaram-se, concentrados que estavam naquele diálogo silencioso. Ele dirigiu-se à porta e ela seguiu-o. Entraram no carro e ele conduziu-a até a um hotel próximo.

No quarto, estava outra mulher. Nada disseram. Com o olhar, mandou-as despir. Depois, tirou do bolso um rolo de fita preta e amarrou-as como se fossem apenas objectos do seu prazer, corpos sem alma. A que já lá estava, ficou sentada a ver enquanto a outra que tinha vindo com ele, recebia instruções para lhe fazer um fellatio. Ele tinha o pénis erecto de excitação. Ordenou-a que lhe acariciasse os testículos enquanto o ia lambendo e chupando levemente a ponta do sexo. E ela obedecia a tudo o que ele lhe pedisse. Não sentia medo nem estranheza. Entrou no jogo dele por completo...

No final da noite, já vestida, pronta para sair do quarto, ele deu-lhe um cartão com o seu número de telefone. Nunca tinha encontrado ninguém assim que se tivesse submetido completamente a ele sem qualquer resistência e queria repetir a experiência. Saíram todos do hotel. Ele regressou para casa com a sua mulher apagada. E ela? Ela deixou cair o cartão numa poça de água. Regressou a casa a pensar: «Interessante o papel de Gueixa. Amanhã, serei Lara Croft.»


Este é o contributo da
Anukis para o comPILAções.

Obrigada :))

Mundo barulhento

fox.
You are the fox.


Saint Exupery's 'The Little Prince' Quiz.
brought to you by Quizilla



O termómetro marca 39,5°; a voz foi-se; o ruído assombra-me e só me apetece a toca quente onde possa esquecer-me, enquanto me empanturro de chá, bolachinhas e antipiréticos.

(a raposa encontrei via JP e, decididamente, este fim de semana não tem nada a ver comigo)

2005-10-21

No tempo em que os animais falavam


aqui


Começaram assim muitas das histórias que ouvi ler na infância. Histórias sobre um tempo antes de todo o Tempo, um tempo ainda perdido no Paraíso das lendas. Era um tempo em que os animais tinham voz, conseguiam discorrer sobre tudo e sobre nada, faziam valer a sua opinião. Um tempo de magia, de cacofonia babélica. Um tempo em que não se limitavam as fronteiras entre o racional e o irracional...

No tempo em que os animais falavam, os Homens eram por isso menos Homens? Ou seriam os animais menos animais? No tempo em que a voz não marcava a diferença, não era instrumento, não era arma. No tempo em que a palavra não era usava em vão, travestida de plumagens de bom gosto e, no entanto, vã, rota, suja.

No tempo em que os animais falavam, talvez os equilíbrios da natureza se desenhassem em tons mais básicos e fossem contados em tons mais claros, precisos. No tempo em que os animais falavam, talvez a palavra não fosse insulto, medida com a sem medida da veleidade e do despudor.

No tempo em que os animais falavam, será que havia uma palavra brutal para insultar a mãe de alguém? Ou será que os animais se dividiam pelas cores da ideologia? Ou seria antes pela cor dos pêlos? Ou pela vaidade pintada de artifícios?


(Cansa-me já ouvir e ler tanta asneira, que temo que ainda se prove verdade que as vozes de burro chegam ao céu...)

2005-10-20

Actualizando o comPILAções...

A ROSA

Um dia disseste abre as pernas, quero ver-te o sexo. Os joelhos comprimiram-se um pouco mas depois foram caindo, caindo.
Acho que queria exibi-lo e não sabia.
Começaste por olhar, olhar muito, ou não fosse a observação o primeiro passo de todos os métodos.
Depois tocaste com a ponta de um dedo. Foi nessa altura que comentaste que parecia uma rosa. acrescentaste dedos que pianavam, as mãos inteiras que abriam exploravam sentiam.
A rosa ficou com as pétalas cristalizadas. Talvez comovido, beijaste-as, uma e depois a outra, ternamente. E repetiste o movimento. Quando pequenas gotas de prazer começaram a escorrer, lambeste-as. Era mel. Então a rosa amotinou-se, ordenou que a sugasses, que a sugasses. E depois imobilizou enquanto o resto do corpo era varrido por ondas que vinham de longe, de outros nervos e orgãos.
Concluiste que a rosa era apenas a cratera do vulcão. e que continuavas a não conhecer o epicentro. _____mas eu sei que tu sabes que a ciência evolui.

e


PERFUME

Antes que me deite
venho cá dizer-te que hoje quase pus aquele perfume que me dá sorte aos amores e te arrebata beijos.
mas depois pensei não vale a pena. e pus outro. para te desprezar.
é possível isso, sabes?
congeminar, cismar,
ofender, entristecer,
sem que te apercebas.

Encostaste-te a mim e disseste quero trincar-te. se não fossem os teus olhos sombrios dizia-te que sim. e não te desejava. tanto
agora estou quente. e o meu sexo arde. reclama.hesito.
se te convido a molhares-te entre as minhas pernas.
Não me deste tempo para te arrancar possibilidades. as mãos nas mamas cheias. apertadas. até magoar. muito
surpreende-te se depois me calo e te puxo a pele atrás dos joelhos.
Subo e desço, subo e desço, enquanto ouço a secura dos teus dedos nos mamilos.
unta com quebranto e com o meu suor as tuas mãos.
Contra a parede. Contra o chão. Contra, contra, amor.
Diz-me, este é o perfume de que noites?



Os dois da Lilly Rose. E ainda ficou prometido que vinha mais qualquer coisa.

Hoje este blogue está entregue às palavras-desejo de outra mulher. E está muito, mas mesmo muito bem entregue.



(eu vou ali buscar um abanico e venho já...)

2005-10-19

Lá porque a Maria Árvore...


Karl Urban


...apanhou uma virose no PC, eu não me podia esquecer dela nesta "cestinha" de Natal :)

Oh mrf...


Viggo Mortensen

... não faço ideia que tal é o homem na cozinha. Mas... who cares?

Não chores mais, Riquita...


Gary Sinise

... o Gary limpa-te as lágrimas :))

Estranho!


Ao olhar para a selecção abaixo, reparei que não tinha ido buscar "para oferta" nenhum dos "habitués" nestas coisas, talvez com a excepção do Jude Law.

O caraças é que isso parece dizer mais de mim do que aquilo que pensei quando comecei a brincadeira, satisfazendo o pedido da Misty.

Está bem, Vague...


Gael Garcia Bernal


... pega lá um gato.

(eu sei que ainda está bastante tenrinho, mas... nham nham!)

Claro que o Espumante...


Juliane Moore


... leva uma ruiva de olhos verdes. Espero que se sinta bem servido :)

Bastet...


Alan Rickman


... escolhi este para ti.

(é que há gatos sem idade e com cada vozeirão...)

Pronto, pronto, Luna...


Jude Law


... pedi ao Pai Natal para te mandar este. Não te quero tristinha :)

Serve esta, PN?


Natalie Portman


É que eu não gosto de discriminar ninguém...

Luís, espreita aqui :)))


Ashley Judd

Eu para pedir, sou umas mãos largas...

Caracolinha...


Stephen Dorff


... serve este para levares para a tua conchinha?

Oh Zu...


Ben Chaplin

...pedi ao Pai Natal para entregar este directamente em Coimbra ;-)

E este já está encomendado para a J.P.



Clive Owen


Parece que chega a tempo da ceia de Natal. Falta só saber o que ela lhe vai dar de comer...

2005-10-18

Para a Misty


aqui


Se o Pai Natal não dá, eu dou...

Para um dia de chuva


aqui



Your hands and my words trace circles,
lines, volutes, assonances, fragrances,
of sonorous abstractions, atmospheric nuances,
tenuous impalpable motions of springing chords;
cerulean, overseas-blues hover and
hover and hover and twist in
floating constellations.

2005-10-17

Pode ser desembrulhado


Gerard Butler


Querido Pai Natal,

Este ano venho mais cedo apresentar o meu pedido. Fui uma mocinha bem comportada e nunca fiz nada que tu, ainda que santo, também não fizesses ou tivesses vontade de fazer. Comi sempre a sopa, até porque era só sopa que me permitiam numa das refeições à conta da merda dos rins. Não disse mal de ninguém que não merecesse, nem enganei ninguém que não quisesse ser enganado.

O ano passado pedi-te o Johnny Depp, mas acho que escrevi tarde a carta, porque não mo entregaste, como combinado, embrulhado em fita vermelha à guisa de laçarote. Provavelmente, já estava esgotado.

No ano anterior, tinha pedido o Ralph Fiennes, mas parece que também já não havia em Novembro.

Por isso, Pai Natal, este ano escrevo-te em Outubro, para ver se não te esqueces de mim. Também já limpei a chaminé, juro! Podes vir descansado.

Quero um Gerard, Pai Natal. Sempre quis um escocês para lhe perguntar pelo poleiro. Este ainda não é muito famoso e, por isso, deve ser mais fácil de arranjar. Bem sei que a Angelina já andou por lá a tirar uma casquinha, mas depois tentou matar o bichinho, Pai Natal. Não o merece! Eu mereço mais, porque o prefiro ao Brad, percebes? E nem me importo se ele trouxer a máscara do Fantasma da Ópera. Um bocadinho de fantasia nunca fez mal a ninguém e não me importo nada que ele me cante ao ouvido, de meia máscara branca a tapar tão belo trombil, com aquela voz de barítono.

Mas, Pai Natal, prefiro-o mesmo como o Desconhecido que dá um pouco de carinho a um puto de nove anos. Importas-te muito de mo trazer com aquele casaco de couro e as calças de ganga bem apertadinhas no traseiro? O laçarote este ano pode ser preto e branco aos quadradinhos. Assim fazias o pleno, Pai Natal.

Obrigada e leva lá um beijinho quente o suficiente para aquecer o Pólo Norte.

Maria Hipatia Ludovina da Silva, uma menina bem comportada.



Dear Frankie

2005-10-16

Insustentável Leveza



aqui

Outra vez ela... tão leve, tão leve que nem rasa a superfície. Na dependência do olhar, de cada olhar. Só os olhos com que vemos o mundo encontram o profundo e nos afastam do vazio de levezas superficiais elevadas a qualquer expoente. Olhares sem idade. Superfícies como tábuas rasas onde procuramos no óbvio os sentidos mais profundos para qualquer significado.

Parabéns, AR


aqui



Estás vivo? Ouvi dizer que fazes anos...

Parabéns, pazinho :)

Que contes muitos!



(por acaso, estava a apetecer-me uma sopinha... como é?)

2005-10-15

Que é esta merda?!?!


aqui


De cada vez que tento abrir mais do que uma página ao mesmo tempo, o "bicho" pendura.

Vou ali telefonar ao meu "112" particular e volto logo que possível.


(Eu é que bebo e o cabrão do computador é que ressaca? Ora foda-se!)

2005-10-14

Mimo


Bibi Mesquita, "Banho de Lua"


Sem gelo, que não gosto, deito um pouco de Glen Ord para dentro do copo e tento lembrar o que estaria a fazer há doze anos.

Esforço inútil da memória; guerra perdida contra o cansaço de mais uma Sexta-feira.

Bebo um golo e decido que hoje preciso de mimo...

Que faríamos então?


aqui


Pergunto-te o que faríamos, quando os silêncios já movem mundos com a energia que transmitem e um rubor faminto se espalha pelos corpos partilhados. E sinto o teu sorriso dizer-me que sopraríamos sussurros sobre as peles quentes, espantando a madrugada. Então - depois das palavras estarem todas ditas e depois dos olhares coscuvilharem as almas -, construiríamos laços de silêncio.

2005-10-13

Mulher emancipada





(recebidas por mail)


Valham-me os Deuses!

Os homens são tão fáceis de assustar...

ruiva

Your Hair Should Be Red

Passionate, fiery, and sassy.
You're a total smart aleck who's got the biggest personality around.


Logo agora que andava a pensar mudar de cor...


(vi
aqui, claro)

2005-10-12

Bah!!!

Mas não o olhes na cara enquanto fodes
E as asas, rapaz, não lhas amarrotes.

Bertolt Brecht - Da Sedução dos Anjos

Cansa-me o casamento "tipo" de trazer por casa e todas as suas ligeiras variações. O casamento pequeno-burguês e os seus frutos: os meninos e meninas burguesinhos, conservadorzinhos, equilibradinhos, a caminho de divorciosinhos.

2005-10-11

Teaser


recebida por mail


Já usei o nick. Acho que me ficava bem. Tem o seu quê de toca e foge, assim um bocadinho como até sei que sou. É uma outra forma de bater a pestana, o sorriso a meio gás. Ou a ponta do dedo mindinho que me foge, por vezes, para os dentes entreabertos. Ou o botão da camisa que esqueço de fechar. Ou o cruzar de pernas que não deixo de exibir.

Já usei o nick. Mas só porque me ficava bem. E nem sequer o usava sempre. Só naqueles dias em que me sentia, verdadeiramente, armada para seduzir. E isso tem, quase sempre, muito pouco de artifício. Basta-me estar de bom humor.

Claro que me sujeito a que depois me digam que só dou letra. E dou, como é óbvio. É o desenho lúdico possível de uma postura descomplexada, brincalhona, sem sonsice. O proveito é que já não está à discussão. É meu e apenas meu para partilhar em segredo, naqueles instantes em que já se toca e não se foge, em que somos caça e caçador.

Rosto

Rosto desfeito,
Rosto sem recusa onde nada se defende,
Rosto que se dá na duvida do pedido,
Rosto que as vozes atravessam.

Sophia de Mello Breyner Andresen - Rosto


Pela primeira vez, debato-me seriamente com a questão de postar uma imagem minha ou não.

Tentei "aparar" da imagem tudo o que reconhecia como "eu". Mas, recortando, perde-se a força e grande parte da magia, por entre as nuvens de um cigarro que mal se reconhece. Porque aquele cigarro é o meu cigarro e está na minha mão. E porque são os meus olhos que se vêem logo atrás. E a ruga no meio da testa, quando me concentro nas palavras de alguém.

Quem estaria a falar? Já não lembro. Mas aquela ruga é sinónimo em mim de atenção. E a força com que sugo a nicotina. E o olhar quase zangado.

Não dá para aparar a imagem. Perde-se tudo. E não sei se dá para me postar assim. Há tantos dias em que prefiro não ter rosto...


(Mas é que me mandaram uma foto minha tão linda, tão linda e eu queria tanto dizer "obrigada, Susana!")

2005-10-10

Sobre o furacão


aqui

Ide ler! Em passo de corrida :)

(antes que o
Espumante deixe uma ventania varrer o post lá do tasco)

Engarrafamento sonoro


Rob Thomas


Mas porque cargas d'água tem o gajo a mania que canta? Fica tão melhor de boca fechada!

Nada de novo...

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.

Miguel Torga – Comunicado


O povo trabalha, pois então. Que mais há-de fazer o povo? O povo que vê as anedotas das reformas dos outros, que vê as cunhas em debandada, sem rédeas. O povo que paga os aumentos de gasolina ou suporta os aumentos do pão. O povo que resiste, resiste e vai levando, continuando a tentar não cair. Vai gemendo. Geme cada vez mais este povo. Um povo a que impõem os fardos, mas não se lembram de dar migalha, só sermão.

Vai gemendo, povo, enquanto trabalhas. Sol a sol, que ainda há disso. Mais as horas que passas no trânsito, povo, a remoer o que não tens. Tu povo, que sustentas o país. E se não tens como te sustentar, povo, cada vez mais pobre e sem quinhão da fartura das elites, como sustentarás todos os outros, os comedores, os arrivistas?

Resiste, povo. Mais não te sobra. Geme e resiste.

Nada de novo na frente ocidental, povo. Já conheces bem esta cantiga, povo. Trabalha e geme e resiste.


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(repostando, porque a merda é sempre a mesma)

2005-10-09

Polis

Sempre senti que devo um romance ao meu irmão. Na vida há poucos homens com um verdadeiro sentido de honra e integridade política. O meu irmão é um deles. Salvou muitas vidas durante a ditadura. Viveu a mais dura clandestinidade talvez porque, marcado pelos ensinamentos do meu avô Gerardo, desde muito novo soube que não lutava para ser livre. O meu irmão lutou porque era um homem livre.

Luís Sepúlveda - Uma História Suja


Não caímos de pára-quedas na vida. Caímos num qualquer lugar. E esse lugar é, normalmente, uma família. Eu caí numa. E a vida caiu assim em mim também.

Por ter sido criada numa família específica, numa família de gente livre, que sempre soube que era livre, mesmo quando o poder lhes dizia que não, também fui educada nas velhas noções de direitos e deveres. E é meu direito protestar contra esta democracia franzina e raquítica, cada vez mais uma anedota, mas apenas enquanto exercer os meus deveres de cidadã.

E é por isso que voto. Que vou lá de todas as vezes. Que hei-de continuar a ir. Ou então não poderia protestar e fazia tábua rasa de todos os direitos que conquistaram para mim, homens e mulheres como os da minha família, que nunca se calaram, que sempre lutaram, porque sabiam que, enquanto o fizessem, eram Homens livres.

Ainda que muitos dissessem que combatiam para serem livres, na minha família a liberdade era o dado adquirido. O que importava era lutar para preservar esse direito. E isso implica sempre responsabilidades, das tais que me ensinaram desde cedo: um voto, uma escolha.

Fui politizada à nascença, muito mais do que por ter nascido no seio da polis. Fui politizada porque a Política (com letra grande, apenas aqui) sempre foi parte do caminho no meu posicionamento na vida e na sociedade. Porque os grandes arquétipos doutrinários sempre condicionaram as minhas escolhas, mesmo quando os via transformados em discursos ocos nas mãos de farsantes bem pagos a viver à custa de quem ainda quer acreditar.

Ser cidadão é não esquecer que se faz parte. É não ousar ficar de fora. Mesmo que seja uma anedota corrompida. Mesmo que já quase não queira dizer nada. Mesmo que pareça já não mudar nada.

E vou. Vou sempre.

2005-10-08

Tardes mansas

Quem vê T.V.
Sofre mais que no W.C.

Táxi – T.V.W.C.


Há filmes a que preciso voltar de quando em vez. Um deles é já um cliché de quase todas as histórias e será também um em muitos blogues. Mas não deixa ainda de ser o meu cliché, pelo tanto que me faz sentir de cada vez que o vejo. Resgato-o sempre que tenho necessidade de opor à míngua da televisão a grandeza projectada noutros écrans. Mesmo que, como hoje, seja na minha televisão que, mais uma vez, o contemplo.

E parece-me sempre certo escolher o "Cinema Paraíso" para mote de tardes mansas. Pela forma bela e completa como faz um exercício de memórias, as nossas e as do cinema.

Lembram-se do “La Nuit Americaine”, do Truffaut? Também é um elogio ao cinema e, no entanto, o tom é completamente diferente. Mas há uma cena, um sonho, em que o realizador (Truffaut "himself") recorda uma escapada na escuridão da noite para roubar um poster do "Citizen Kane" da parede em frente a um cinema... E eu sempre imaginei que o Tornatore podia ter feito o mesmo, com o mesmo carinho, saudade e amor pelo cinema, que deixa transparecer no imensamente belo "Cinema Paraíso". Aquela cena final, com um realizador de cinema envelhecido e desencantado, sentado na escuridão de uma sala de cinema a ver uma colagem de beijos censurados, tem o peso das nossas memórias e quem ama o cinema consegue imaginar o que está a sentir a personagem de Jacques Perrin...

O cinema Paraíso foi derrubado; o Toto cresceu e deu origem a um homem desencantado; o Alfredo morreu; a televisão impôs-se e tomou o lugar que era reservado noutros tempos às salas de cinema... E, no entanto, lembro-me de ter lido uma crítica ao "Cinema Paraíso", em que se fazia referência àquela maravilhosa cena da projecção para as paredes da praça, referindo que o que é verdadeiramente lamentável não é o facto de o écran ter minguado mas sim o facto dos écrans não continuarem a crescer para conseguirem reflectir cabalmente a grandeza de alguns filmes.

Tudo o que é de facto espectacular devia ser visto a uma escala semelhante: alguns filmes, alguns livros, vários poemas e partituras, algumas vozes.....

Mas é cada vez mais difícil encontrar o encanto certo. Então volto aos encantos já antigos, portos seguros para tardes mansas, em dias em que já não há reflexão possível para o tanto de nojo com que pinto o quotidiano.

Estou velha!


aqui


Meia noite e meia e já em casa? E de manta nos joelhos?


(isto só pode ser azia... devo ter engolido outro discurso político estragado)

2005-10-07

Runas


In my garden
Behind a bolted door
With our lady,
And Balder and Thor

No one sees, what we see
No one believes, what we believe

Tony Wakeford - No One


E isto vem a propósito de quê? De tudo e de nada: da música que estou a ouvir e da minha necessidade de acreditar hoje que ainda é possível invocar a magia. Porque a realidade não me chega; porque estou demasiado farta.

É que as runas nunca foram mais do que os caracteres de antigos alfabetos. Só que sempre nos abriram as portas para outros caminhos...

Que Hemdal, Thor e Balder nos guardem, que já só sobra um dia de reflexão antes da merda voltar a ser da cor do costume!


2005-10-06

Uma questão de cor


aqui


Eu sei que devia estar a pensar em coisas sérias. A pensar, por exemplo, em deixar alguns comentários aqui e acolá, que já ninguém deve ter pachorra para o meu sem assunto...

Mas hoje até tenho desculpa: estou traumatizada por me ter (finalmente) apercebido que há mais de um ano ando a escrever em tons azul-cueca.

Isto só pode mesmo dar merda...

Les Voix du Silence


Percorreu cada espaço. Sentia-o vazio agora, um refúgio oco. Olhou os livros caiados de pó de casa antiga e com visitas retardadas pelos afazeres longe demais. Em cada espaço, uma memória salta-lhe ao caminho, um sorriso empoeirado de quando era tão mais fácil sorrir. Percorreu cada espaço, cada quarto. Sentou-se nas cadeiras do costume, como se nunca tivesse partido. Respirou os cheiros, cheiros familiares e antigos, de madeira verdadeira e linhos amarelados. Percorreu cada espaço, como quem percorre de mansinho uma vida inteira.


Naquela cadeira de braços florida, ao lado da lareira, tinha-se sentado, primeiro ao colo do avô, depois ao colo do pai, depois sozinho, para ler um qualquer livro; na gaveta daquele aparador escondeu primeiro rebuçados, depois cigarros roubados dos bolsos do pai, por sob os panos dos enxovais de cada mulher que habitara a casa. Podia traçar a história da família em linhos e algodões, em rendas e chitas, em bordados minuciosos ou em simples pontos-cruz.

Olhou os corredores onde tinha perfilado soldados de chumbo e carrinhos de lata. E encontrou o sítio certo onde o pião fizera a cicatriz. Viu marcas de dedadas perto dos lambris, impressões digitais da sua longínqua infância.

Mas eram os cheiros da estante dos livros que mais apelavam aos sentidos. Eram as encadernações antigas, as folhas de papel amarelado, o cosido das páginas que se abriam sorrateiras sempre nas mesmas velhas marcas. Naqueles livros estava tudo o que alguma vez soubera ou quisera aprender, estavam as diferentes vozes que partiram, estavam os silêncios confortáveis e as zangas, estava ele.

Preciosos livros onde abrira horizontes na infância e se escondera na adolescência. Livros com mil vidas sonhadas, desejos de futuro, miragens. Livros que lhe pertenciam, da mesma forma que ele lhes pertencia a eles. Livros de palavras silenciosas que gritavam ainda uma nova leitura, que não calavam o que precisava ser dito e o que doía dizer. Livros amarelos onde estava ele ainda aprisionado nas suas palavras silêncio, no vazio dos seus silêncios, no tanto que tinha sonhado e não tinha sabido ser. Livros enrugados, como ele enrugara também.

Naquela casa onde se escondiam e empoeiravam todas as suas memórias, ficava nu perante ele. Nela, era impossível fugir aos tantos de erros, às tantas de fugas, ao desconforto da rotina. Voltou a sentar-se na velha cadeira e rodeou-se das memórias que, mais uma vez, lhe tinham conduzido os passos à casa de onde antes, muito tempo antes, quisera fugir.

E reconheceu que estava, finalmente, no momento certo para voltar a casa, para voltar aos panos amarelados das suas avós, aos papéis desprezados do seu pai, à dor da perda da sua mãe.

Pegou da estante no Les Voix du Silence, de Malraux. E pensou como a sua vida tinha sido construída em silêncios e ausências. Pensou nos filhos distantes, que não conhecia nem o conheciam a ele. Pensou na solidão que o levava a percorrer, dia após dia, o caminho até à casa quase abandonada onde só viviam os seus fantasmas. E pensou nos netos…

Talvez estivesse na hora de lhes ler histórias, de os sentar no colo e lhes mostrar como é imaginar o futuro em palavras mudas. Talvez os conseguisse trazer para longe dos seus jogos, dos seus brinquedos, da televisão. Talvez afinal ainda fosse dele a possibilidade de construir a ponte que desse vida nova àquela casa, que a voltasse a aquecer de brincadeiras e gargalhadas. Talvez os linhos servissem ainda para enfeitar mesas e os armários se abrissem para que as porcelanas voltassem a respirar. Talvez houvesse novamente música no ar. E ruído. E esperança. E poeira de sapatos pequeninos depois das brincadeiras no jardim.

Talvez fosse ainda possível tirar o pó a tudo. Tirar o pó dele mesmo. Arejar as memórias.

Então, lesto, levantou-se da cadeira que já lhe abraçava o corpo confortavelmente, e dirigiu-se à janela que abriu de par em par. Agora… bem, agora só faltava deixar a família entrar na sua casa, esperando assim conseguir deixá-los reentrar na sua vida.




Para o III Concurso do Escritor Famoso, que já tinha um link naquela Fuga Especial ali do lado esquerdo.

2005-10-05

Outono



Este fim de semana voltaram os incêndios, voltou o fumo.

Ontem, tudo à minha volta cheirava a cinzas e borralho.

Tenho saudades da chuva e dos cheiros do Outono, quando apetecem as meias nos pés, as mantas nos joelhos e as castanhas acabadas de assar...

Anseio agora pela intimidade que só o fim da exuberância estival pode trazer. O conforto intimista dos silêncios recolhidos nos calores das casas. A quentura partilhada de canecas de chá e biscoitos, ou torradas quentes besuntadas de manteiga e compota. Mas também pode ser queijo, daquele que descobriste, com o vinho tinto na temperatura certa. Ou pode até ser boroa. Ou apenas os tantos de cafés que não nos cansamos de beber.

Apetece-me o Outono tingindo de cinzentos, verdes secos e quentes castanhos raiados de vermelhos e laranjas. Procuro o aconchego do lar, a partilha do morno, do confortável. O sentir o macio de uma gola alta de lã virgem e umas meias trazidas da Estrela num qualquer passeio já perdido na memória. E as botas quentes, confortáveis, a abraçarem os pés que já vão reconhecendo o frio que nos traz a manhã e o anoitecer.

E tenho necessidade de partilhar tudo o que vou sentindo com quem gosto e em quem confio. Com aquela confiança implícita de saber que se comungam segredos e que há limites de tolerância para o meu e para o nosso. A confiança que não trai com frivolidades dores antigas ou histórias memorizadas. A confiança respeitosa que só sei dedicar a uns quantos: aqueles que, como eu, sabem onde estão pequenos limites que não se atravessam por coisa pouca só para derramar notoriedade e um pouco de estilo.

Um dia destes, em tua casa ou na minha – talvez na tua, que tem lareira – haveremos de continuar a partilhar pequenos segredos e grandes perspectivas, sabendo que no respeito mútuo, nos pequenos gestos triviais, se fundamentam as amizades fadadas para crescerem.

Este é para ti, amiga :)

2005-10-04

Sobre trapos


aqui


Hoje vesti uma saia nova, bem gira, por sinal. Preta, mas isso já nem é novidade. Com rendas e, por baixo, uma outra saia azul fosfato. Uma saia compridona, memória para guardar de uma ida às compras com uma amiga.

E a minha amiga também comprou uma saia, mas não igual à minha. Esteve para ser, mas não foi. E não havia mal nenhum se tivesse sido. Ou, pelo menos, eu não veria nunca mal algum em que tivesse sido.

É que essa coisa de uma mulher ficar irritada só porque outra mulher traja de igual, pode ser uma grande treta. Porque é uma generalização abusiva que pretende meter todas as mulheres no mesmo saco.

Se a minha amiga tivesse comprado uma saia igual à minha, eu ia até ficar contente: era sinal de que ambas temos muito bom gosto!

E não me venham com tretas: as amigas só saem à rua de roupa igual se antes não perguntarem o que a outra vai vestir. E eu costumo perguntar...

Depois, se por acaso estivesse no mesmo lugar que outra mulher com uma roupa igual à minha, nunca faria um drama: se ela fosse minha amiga, não me importaria e provavelmente até brincava com o assunto; se não conhecesse a gaja de lado nenhum, tenho a certeza que a roupa me ficava a mim muito melhor do que a ela. Ou, pelo menos, a minha postura assim o haveria de dizer.

Luta contra o terrorismo


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