2004-08-31

Liberdade

- Liberdade, que estais no céu...
Rezava o padre nosso que sabia,
A pedir-te humildemente,
O pão de cada dia.
Mas a tua bondade omnipotente
Nem me ouvia.


- Liberdade, que estais na terra...
E a minha voz crescia
De emoção,
Mas um silêncio triste sepultava
A fé que ressumava
Da oração.

Até que um dia, corajosamente,
Olhei noutro sentido, e pude, deslumbrado,
Saborear, enfim,
O pão da minha fome.
- Liberdade, que estais em mim,
Santificado seja o vosso nome.


Miguel Torga



Hoje queria tão só ser livre. Ser um pássaro. Ser uma prece. Voar.


Hoje queria viajar para longe. Estar bem longe da realidade que conheço. Encontrar a minha liberdade algures na Terra, longe.

Hoje queria que a minha fé fosse feita de pó, de barro, de azul e de ausências. Transformar todos os símbolos em caracteres chineses, queimá-los numa girândola de fogo e alegria.

Hoje queria estar tão longe que nem os odores reconhecesse, que o céu fosse diferente. Hoje queria um azul petróleo na linha do horizonte e uma estrela da manhã teimosa num pas-de-deux com o sol.

Hoje queria comprar o bilhete e partir à aventura, cumprir o sonho de viajar, coligir informações in loco.

Hoje queria ser livre e cumprir as ausências e chegar aos sonhos com a sensação de dever cumprido e a paz de estar sem grilhetas.

Hoje queria expurgar de mim aquela tensão que nos pesa entre a vontade de novidade e o elogio do velho, do reconhecido. Hoje queria estar para além dos avanços e recuos de lógicas sucessivas. Ser voz. Ser palavra. Tecer o divino.

Hoje apetecia-me pôr uns sapatos de salto-alto e partir para Goa de mochila às costas. "Não podes." Diz-me a consciência. "Ninguém vai de salto-alto para a Índia." Mas, hoje, o absurdo da vontade de não ter peias expõe o vazio da lógica que me trava.

Hoje não quero delongas em análises aprofundadas aos motivos. Hoje não quero pensar nas construções que elaboro de adaptação entre os desejos e os impulsos que me movem e o que me impõe o real. Hoje queria ser livre. Ser pássaro. Ser prece. Voar.

Hoje apetecia-me ter heterónimos e mandar cada um deles fazer cumprir um apetite.

Hoje queria ser livre. Voar. Como um pássaro. Como uma prece.

"Liberdade, que estais em mim, santificado seja o vosso nome."

2004-08-30

No Céu dos Suicidas

Às vezes imagino o suicídio do Papá Hemingway. Suponho que naquela manhã de 1961 se viu ao espelho e perguntou a si mesmo: E agora?

Lá fora estavam os montes de Idaho, as árvores, a pastagem, os pássaros e os seus gatos (...), tudo o que resumia a vida de um gigante. E agora?

Então engatilhou a espingarda com a decisão de acabar com a fraqueza que ameaçava acabar com o homem.

Luís Sepúlveda – As Rosas de Atacama


Às vezes imagino os suicidas. Às vezes imagino-os com aquela imaginação envergonhada de quem não teve coragem para o ser. Às vezes imagino o dia seguinte sem amanhã, a dureza de nos vermos frente a frente com o vazio. E o gigantismo da vida do outro lado do dia.


Às vezes imagino o pouco que faltou, a arma que não havia, a indolência para a procurar. Às vezes penso como é mais fácil, outras só como é difícil.

Às vezes temo ter em mim a desesperança, ter os genes carcomidos de um pobre povo suicida que teima em resistir.

Às vezes temo que já nem gigantes haja, que já nada faça sentido, que nem os montes ou as árvores nos apaguem dos olhos os sem-desígnios enlatados que nos serve o quotidiano.

Às vezes queria ser a arma, outras vezes o dedo que se cola ao gatilho. Outras ainda dou comigo a preferir ser os montes, as árvores, os pássaros, até os gatos, assustados pelo tiro.

Trinta e cinco anos depois, Muriel, a neta, foi fazer companhia ao avô no céu dos suicidas. No céu dos que tiveram coragem, não a tendo, para fazer da morte um postulado.

Às vezes penso nos suicidas e em como, algures antes de todo o tempo, antes de toda a história, antes mesmo de ser eu, também desejei ter uma lápide nesse céu, mas não tinha arma, nem engenho, nem a vontade certa.

Às vezes penso no que segura, o que já segurou, tantos de nós, o que nos fez escolher a vida. E às vezes penso que ousamos reclamar em demasia contra a banalidade, as banalidades, que nos resgatam para a vida.

Nem todos podemos ser um gigante como o Papá Hemingway.

Agora não posso. Estou sentada.

Não tenho tempo nem para criar nem para destruir. Não tenho tempo para semear, ou para colher, ou tão só para queimar. Não tenho tempo para ir às compras ou para ir pintar o cabelo. Não tenho tempo para plantar uma árvore, regar as plantas, fazer um bolo. Não tenho tempo para deixar crescer a árvore, ou deixar as flores abrirem, ou ver o bolo crescer. Não tenho tempo para destruir o que criei, nem ver arder, nem ver murchar. Não tenho tempo.

O meu comodismo sentou o meu rabo numa cadeira e não me deixa ter tempo para nada. Sou um simples exercício de preguiça.


fiz um teste aqui


Sorriso

Tenho um sorriso fechado
na palma da minha mão.
Sorriso que foi achado
caído no meio do chão.
Um sorriso que era vento
desenrolado do azul
em que as minhas velas pandas
se enfunaram para o Sul,
rumo a qualquer fim do mundo!
Uma ilha tropical
onde o meu corpo confundo
com vento suor e sal.
Era esse o teu sorriso:
o sorriso que me davas
quando os teus olhos nos meus
eram dois potros com asas.
À tua espera na praia
fiquei pela tarde fora,
no alto daquele rochedo
onde um minuto é uma hora!
E não vi o teu sorriso
surgir da areia ou do mar.
Nem tive um porto de abrigo.
Nem foste um barco a chegar.
Se me disseste que morreste
não acredito. Não posso!
Andavas sempre comigo
e o teu sorriso era o nosso...
Hoje guardo o teu sorriso
fechado na minha mão.
A contrastar com o siso
que trago no coração.


Trovante – 84


Todos temos canções especiais, aquilo que é usual chamar as canções da nossa vida. A maior parte delas, recordam-nos momentos a dois, são a banda sonora de um qualquer romance. Ou de um quase-romance...


Este "sorriso" que ainda hoje adoro, com o seu sabor agri-doce, põe-me um sorriso nos lábios. Lembra-me uma praia com um areal perfeito, uma água quente com a profundidade certa e a clareza das águas das praias ainda semi-virgens. Lembra-me a rota que foi minha, durante anos a fio, até um recanto perdido que já não existe, foi podado, urbanizado, comercializado. Lembra-me o cheiro dos pinheiros mansos, logo de manhã, ou o pão alentejano ainda quente, a acompanhar uma chávena de leite com chocolate amargo em pó. Lembra-me bolas de berlim a serem vendidas na praia. Lembra-me a aventura de ir à noite até à esplanada, de ir ao Kiss e sentir-me, finalmente, crescida...

Mas, em especial, este "sorriso" lembra-me uma das minhas primeiras paixões. Recordo uns olhos verde-água numa cara morena e um sorriso de dentes brancos e os mergulhos espalhafatosos para fazer vista para as meninas. E recordo a quantidade de meninas, quase histéricas, abonecadas. Recordo-as lindas, perfeitas, charmosas e femininas. Como recordo a electricidade que me percorria o corpo com a ideia "dele". Recordo a vontade de parecer bonita, ou como lamentei ter cortado o cabelo ainda mais curto na véspera da viagem. Lembro das ânsias de dizer coisas interessantes. Da forma como fumava um cigarro com ar desligado, perfeitamente artificial, enquanto olhava o mar cheia de vontade de o olhar a "ele". Lembro das tardes ao sol e o cheiro a sal e a maresia e a "ele", deitado na toalha ao lado da minha a falar de The Mission ou dos Clash.

Mas, acima de tudo, esta canção recorda-me o meu primeiro amor falhado. O quanto doeu ver a escolhida e não ser eu. O miserável, feia, que me senti, ao lamentar não ser suficientemente bonita, interessante, para merecer aquele mesmo beijo roubado a que, atónita, assisti. Porque esta é a primeira canção ao som da qual tentei remendar os pedaços de um coração adolescente e sarar a minha primeira, dolorosa, gigantesca, dor de corno.

Mal eu sabia o tanto que ainda estava para acontecer e as tantas das músicas que ainda iam surgir.

Os amores de verão enterram-se na areia e numa canção. Depois, muito depois, recordamo-los com um sorriso...

2004-08-29

Em Paz

Acordo e sinto pelas frestas da persiana que o dia se prepara para nascer. O quarto começa a ficar na penumbra, consigo distinguir as silhuetas dos móveis, das cortinas, a cadeira ao canto, a televisão depois, os pés da cama... As cortinas de gaze vermelha aligeiram os contornos provocados pela luz branca que se escoa pela janela.

Mais do que pressentido, vejo agora o teu corpo entregue ao sono. A cabeça na almofada, o braço que ainda me envolve, os olhos fechados, o cabelo em desalinho pelo sono e pelo tanto que os meus dedos o percorreram. Sinto o teu calor contra a minha pele, o nosso cheiro misturado, a tua respiração cadenciada.

Soergo-me no cotovelo e fico assim a contemplar-te, tão entregue, quase menino, muito homem. Não quero acordar-te. Gosto de te ver assim. Gosto de imaginar que povoo os teus sonhos. Gosto do ar relaxado, quase me sinto orgulhosa por o ver.

O peito enche-se-me de um carinho imenso, uma quase dor, uma sensação tão forte que não resisto ao suspiro que já se me escapa pelos lábios. Ergo a mão lentamente e de leve, muito de leve, afasto uns poucos cabelos que te caem sobre a testa. Encosto-me mais a ti, ao teu corpo adormecido. Muito de leve ainda, que não te quero acordar, beijo um olho fechado, depois o outro. Mexes-te de repente e eu paro. Fico só a olhar-te. E o dia nasce e eu tenho vontade de agradecer este dia, a Deus, ao Diabo, ao Infinito, seja ao que for. Agradecer a dádiva de te ter aqui assim, tão entregue, tão morno, tão em paz. E agradecer este calor que se espalha pelo meu corpo, pelo carinho que me controla os gestos, pela paixão que me faz enrolar agora o meu corpo, enfiar-me outra vez no quente dos teus braços e adormecer de novo. Em paz também. Hoje estou em paz...



Sei que me vais ler e quase pressinto o supetão com que reagirás a ver este texto aqui. Ainda é a nossa busca, o nosso eterno mito, a nossa meta feita para o dia-a-dia. Será sempre o encontrar nas pequenas coisas o paraíso que, um dia, nos prometeram. Aquele que tardamos a encontrar e, ainda assim, não podemos - não podemos mesmo - permitir-nos deixar de visualizar. Temos de continuar a sonha-lo, a quere-lo com toda a força que ainda nos reste, nos sobre, depois de tantas lutas inglórias, tantas mágoas, tantas mazelas.

Chegaremos algum dia a ficar realmente mais fortes? Eu queria fazer-te acreditar que sim. Dar-te num beijo tudo o que já aprendi; sorver noutro tudo o que já aprendeste. Fazer da nossa estranha partilha o caminho para encontrar o caminho verdadeiro. Lavar da alma o feio, o dolorido, secar todas as lágrimas, as choradas e as que nos sufocam de tão contidas. Calar a dor, todas as dores. Dores novas e dores antigas, dores suportáveis e aquelas que nos rasgam. Escoar da memória cada slide sem sentido, cada frase que se repete, ecoa, nos amordaça e nos mirra por dentro...

De certa forma, teria sido tão bom, teria sido tão perfeito estar em paz nos teus braços e tu nos meus. Mas não me canso, não desisto. Não quero que te canses. Odeio a ideia de que desistas. E agradeço-te a "quase paz" que me sabes dar.

Voz em Fuga

Com Copérnico, o homem deixou de estar no centro do Universo. Com Darwin, o homem deixou de ser o centro do reino animal. Com Marx, o homem deixou de ser o centro da história (que aliás não possui um centro). Com Freud, o homem deixou de ser o centro de si mesmo (que também nem sequer existe, é apenas um lugar vazio, uma brecha, uma voragem).

Eduardo Prado Coelho


No centro de mim está a voragem, está o vazio. Povoo-me à volta. Povoo-me em torno. Descentro-me. Espremo limites. Dedilho acordes de memórias banais. Não tenho história. Não tenho reino. O meu Universo é um tecto baixo e as estrelas vão fugindo.

Há em mim um esforço cansado para encontrar na magia de outros a minha voz. Tenho a imaginação a tingir-se de rouquidão e a voz a apagar-se. Foge-me... Não sei como dar a volta ao vazio. Não sei como reclamar contra o sem mistério da existência que se arrasta.

Estou cansada de mim. Estou cansada de quantos, antes de mim, me roubaram o meu lugar no espaço e no tempo. Estou em rota de colisão contra quem me rouba os mitos, quem teoriza a minha sem importância no mundo, no meu mundo.

Quero encher os meus sonhos das formas e dos signos de uma existência de dignatária. Quero ser a bruxa, a feiticeira, o feitiço. Quero ver o Planeta pelo lado de fora e a alma dos outros pelo lado de dentro. Quero baptizar uma estrela, faze-la minha. Quero fazer um filho e quero voltar ao útero. Quero bocejar e assim fazer as asas de uma qualquer borboleta, tremeluzente em torno de uma qualquer luz, baterem mais rápido e provocarem a transformação da essência das coisas do outro lado da Terra. Quero ser roda e quero ser o pedal que move a roda. Quero um lugar que seja só meu, uma música que seja só minha, um sonho nunca antes sonhado.

Quero correr atrás do céu e do inferno; quero fazer as coisas acontecerem. Quero encontrar a minha voz, segurá-la, travar-lhe a fuga...

2004-08-24

Eu e as máquinas

Creio que o automóvel é hoje o equivalente bastante exacto das grandes catedrais góticas: quero dizer, uma criação que faz época, concebida com paixão por artistas desconhecidos, consumida na sua imagem, senão no seu uso, por um povo inteiro, que através dela se apropria de um objecto perfeitamente mágico.

(...) É preciso não esquecer que o objecto é o melhor mensageiro do sobrenatural: há facilmente no objecto, ao mesmo tempo, uma perfeição e uma ausência de origem, um acabamento e um brilho, uma transformação da vida em matéria (a matéria é muito mais mágica do que a vida), numa palavra, um silêncio que pertence à ordem do maravilhoso.

Roland Barthes - Mitologia


Como quase toda a gente que conheço, tenho um carro. Um carro não muito velho nem muito novo. Um carro que ainda anda e me leva onde quero ir. Um carro que gosta de óleo, adora óleo, gosta quase mais de óleo do que de gasolina. Acho que tenho um carro oleólico. Um bêbado!.

Gosto do meu carro. E, no entanto, trato-o mal. Não o lavo muitas vezes, nem esfrego, nem trato de o polir. Mas ele leva-me, sem reclamar. Vai onde me apetece ir. Dá-me liberdade. Dá-me tempo de fuga. Dá-me um horizonte.

Sim, eu sei. Devia começar a tratar melhor do meu carro. O Barthes tem razão: é uma catedral. E é, sem dúvida, onde rezo, onde me inspiro, onde ponho os pensamentos em ordem. A máquina e eu em comunhão. O meu sagrado sobre quatro rodas...

Perguntas de Um Operário Letrado

Quem construi Tebas, a das sete portas?
Nos livros vem o nome dos reis.
Mas foram os reis que transportaram as pedras?
Babilónia, tantas vezes destruída.
Quem outras tantas a reconstruiu? Em que casas
Da Lima dourada moravam seus obreiros?
No dia em que ficou pronta a Muralha da China, para onde
Foram os seus pedreiros? A grande Roma
Está cheia de arcos do triunfo. Quem os ergueu? Sobre quem
Triunfaram os Césares? A tão cantada Bizâncio
Só tinha palácios
Para os seus habitantes? Até a legendária Atlântida
Na noite em que o mar a engoliu
Viu afogados gritar por seus escravos.

O jovem Alexandre conquistou as Índias.
Sozinho?
César venceu os gauleses.
Nem sequer tinha um cozinheiro ao seu serviço?
Quando a sua armada se afundou, Filipe de Espanha
Chorou. E ninguém mais?
Frederico II ganhou a Guerra dos Sete Anos.
Quem mais a ganhou?
Em cada página uma vitória.
Quem cozinhava os festins?
Em cada década um grande homem.
Quem pagava as despesas?

Tantas histórias.
Quantas perguntas.

Bertold Brecht


Existe em mim a necessidade de questionar cada história, de fazer de cada pergunta uma ponte para uma nova história. Em Brecht está a primeira ponte...

E, se o Alberto Caeiro tem razão e a nossa única riqueza é ver, então eu escrevo o que vejo. Reconto o que vivo, o que sinto, o que espero, o que quero esquecer. E, aqui, deixo a minha voz em fuga contra a cegueira...