2005-01-31

Sem pasmo

Antes viver do que morrer no pasmo
Do nada que nos surge e nos devora,
Do monstro que inventámos e nos fita.


José Carlos Ary dos Santos – Soneto



Não será só para empurrar o post desavergonhado para baixo. Não, nunca seria apenas esse o motivo. Mas também é motivo, como é óbvio. Mas há aquele vício de escrever palavras difíceis e adjectivos, como uma amiga antiga ainda agora me acusava.

E lembrei-me à conta disso como, por vezes, ainda parece mal falar de sexo, como se fosse vergonha ou como se, ao o reduzirmos à esfera do íntimo, do privado, ele não estivesse presente no nosso quotidiano, por vezes de formas muito pouco sub-reptícias.

Suponho que quem me lê é maior de idade. Até porque uso palavras difíceis e adjectivos, motivo bastante para afastar toda a geração smsês. E, depois, há os temas que me interessam, aqueles que me levam a escrever. E, muitos deles, implicam que exponha uma parte do que sou que, a mais das vezes, obriga-me a um esforço consciente de desnudo da alma. E esse sinto-o, sim, como bem mais completo, bem mais complicado, do que o desnudo do corpo.

Talvez por ver a adolescência cada vez mais distante, a nudez do corpo tornou-se bem pouco complicada para mim. Não sinto necessidade de falsos puritanismos na minha relação com o meu corpo ou com o corpo do outro. Na verdade, há várias coisas no meu corpo que não me agradam por aí além; mas também é verdade que já não as entendo como mácula, ou motivo de vergonha, ou sequer como razão para me sentir menor na minha sexualidade ou na minha presença no mundo ou para o mundo.

Como (quase) toda a gente, tive uma relação complexa com o corpo na adolescência, sentindo-me sempre gorda, sempre deformada, sempre mais feia do que os modelos estéticos que, de uma forma ou outra, a sociedade nos impõe. Com os anos, enquanto o corpo amadurecia e perdia parte da frescura juvenil, veio uma interiorização do seu real valor, do seu potencial, bem como uma capacidade para o aceitar e gostar dele só porque sim.

Há muito que deixei de ter complexos adolescentes ou qualquer tipo de impedimento moral que me fizessem desconsiderar o meu corpo, ou o prazer que com ele posso obter, só por força de qualquer tipo de mentalidade limitada e hipócrita. O meu corpo é parte de mim. Gostem dele ou não, seja bonito ou seja feio, é parte do que sou. A minha identidade começa nele. O toque com que meço o mundo, começa nele. O sexo faz parte do que ele pede e sabe dar. Sem vergonha. Porque, quanto a mim, se chego a ter vontade de dar o meu corpo a alguém, quero também receber e, num pas de deux assim, não há lugar, nem espaço, nem tempo, para gestos envergonhados e adolescentes.

A compostura segue dentro de momentos...


e pronto... Posted by Hello


1. HAVE YOU EVER USED TOYS OR OTHER THINGS DURING SEX?

Qual é a interpretação de "during"? Ele há tantos que prometem, prometem e depois nunca "during" nada, não é?


2. WOULD YOU CONSIDER USING DILDOS OR OTHER SEXUAL TOYS IN THE FUTURE?

Homens-objecto serve?

3. WHAT IS YOUR KINKIEST FANTASY YOU HAVE YET TO REALIZE?

Oh pá, se ainda não a "realizei" como é que vou saber?
(Mas há um hotel no gelo, todo feito em gelo, com camas feitas em gelo, que eu bem gostaria de saber se consigo derreter...)


4. WHO GAVE YOU THIS DILDO?

A sacana da madrinha, para me acabar com a compostura do blog.
(Eu bem sei que já tive um nick muito rápido, mas daí até me pores a falar de rapidinhas... )


5. WHO ARE THE ONES TO RECEIVE THIS DILDO FROM YOU?

Caliope
Ocidental
MJ (ihihihih)

os Enresinados Mofo e Cachucho
e já agora o Crominho

2005-01-30

Para a Caliope


Para a Caliope Posted by Hello

E, não, nem foi difícil. E não saiu nenhum todo preto. E este veio à segunda tentativa.

O
site é o do costume, causa de várias dores de cabeça blogueiras...

O Herói Silenciado

Apesar de gentio, apesar de "goi", este Dr. Mendes "is a Mensche", é realmente um Homem.

Rabino Kruger




Aristides de Sousa Mendes Posted by Hello


Não podia eu fazer diferenças de nacionalidades, visto obedecer a razões de humanidade que não distinguem raças nem nacionalidades.

Aristides de Sousa Mendes



Continua adiado o verdadeiro reconhecimento. Se, por um lado, o status quo diplomático português exerceu as suas pressões para evitar que um desobediente recebesse o reconhecimento e mérito há muito merecidos, por outro, há um desinteresse gritante por uma figura maior da história do século XX português.


A história continua silenciada, com teias de aranha, talvez despojada para sempre, como ficou a casa de Cabanas de Viriato, entregue aos porcos e ao esquecimento.

Seria necessário que não houvesse sempre esta vontade de enviar os heróis incómodos para debaixo do tapete do esquecimento, para que um homem como este pudesse descansar no Panteão dos portugueses ilustres.

Mas não! Antes estar lá a Amália, não é? Será?...


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Para quem quiser saber mais...

2005-01-29

Fuga


Fuga Posted by Hello


Hoje não me apetece falar de nada sério, nem sequer falar de mim, ou dos outros, ou da noite de ontem, ou de política.

Hoje queria aqui qualquer coisa levezinha, para contrastar com o texto anterior. E, como não me apetecia escrever muito e como até estava contente por uma certa
desistente ter recuperado a palavra, fui ao site por ela indicado e encontrei o tema certo.

E é isso que está ali em cima: o nome da minha casa desconstruído, colorido, cheio de pinta. Gosto especialmente da pauta de música e da forma como me recorda que escolhi o nome do Blog ao som de uma fuga de Bach...

2005-01-27

Hans Münch

La liberté est plus incompréhensible encore que la visite du médecin
De quel médecin une chandelle dans le désert
Au fond du jour la faible lueur d'une chandelle

Paul Éluard - La fin du monde


Não vou falar aqui da História. Vou contar antes uma estória.

Há alguns anos atrás, tive oportunidade de visitar um campo de concentração. Era já o fim da tarde e o sol teimava em querer esconder-se. Era um daqueles dias de Março em que a Primavera ainda resiste em fazer-se sentir, mas que nos deixa mesmo assim ver o brilho do sol. Penso que a grande maioria dos visitantes já teria partido. Não estava por lá muita gente. Os poucos que ficavam pareciam demasiado perdidos.

O sítio em si era maior do que qualquer fotografia me faria supor. Reconheci-lhe imediatamente alguns dos pormenores, de tantas vezes vistos em imagens de filmes, de livros... Ficava estranhamente desabrigado e, naquele dia de Março, das árvores que estavam à vista, escorriam estalactites de gelo, como lágrimas. Parecia-me tudo cinzento, como se a fuligem se tivesse entranhado nos caminhos, nos edifícios, no próprio céu, nas lápides, nas lajes, naquele tempo parado.

Fiquei profundamente chocada pelo silêncio. Acho que nunca estive num local tão silencioso. E, como nessas situações a nossa imaginação tende a tomar o freio, pensei que aquele talvez fosse verdadeiramente o silêncio da morte. Das mortes, aliás. Todas e cada uma que ocorreram naquele local. Todos os corpos que se tentaram fazer esquecer, todas as identidades que se tentaram apagar: milhões de judeus e de ciganos, mas também gentios. Deficientes, opositores políticos, homossexuais, testemunhas de Jeová, polacos, russos, criminosos de delito comum... A implacabilidade e a frieza da "solução final" reservava a todos um destino idêntico. Para no fim não restar mais do que silêncio.

Andei por lá, no meio desse profundo silêncio, a tentar imaginar o tamanho da hecatombe e a não conseguir. Porque a minha imaginação não conseguia estar preparada para tamanho horror. Mas, depois, friorenta, lembrei-me dos miseráveis e esburacados fatos de flanela listrados e das socas de madeira. E olhei aquele céu cinzento que nem o sol a fugir para o ocaso conseguia ludibriar. E olhei as estalactites de gelo. E senti-me gelar.

Não fui capaz de conter lágrimas silenciosas por tantas vidas perdidas, enquanto recordava a frase com que, muitos anos antes, uma professora tinha introduzido o tema do holocausto na minha memória: "a única maneira de sair daqui é pela chaminé"; ou pensar no absurdo racionalista da fórmula certa para o extermínio: um miligrama de zyklon por cada quilo de peso...

Foi nesse preciso momento que ouvi o som de um portão a ser fechado e, de súbito, fui acossada por um ataque de claustrofobia em pleno espaço aberto. Porque aquele silêncio assim quebrado me pesou toneladas. E tive de fugir daquele sítio, daquele pesadelo silencioso que não pode – nem deve – ser alguma vez apagado das memórias do Homem. Para que não volte a acontecer. Nunca mais!

Mas foi também nesse momento que me contaram a história de Hans Münch, o bacteriologista que trabalhava sobre as ordens de Mengele e, ainda assim e pondo em risco a própria vida, dava medicamentos e alimentos aos prisioneiros. E essa história ajudou a levantar parte do silêncio que me oprimia, parte da vontade de fuga que me cegava, parte do frio e do cinzento.

Ninguém pode deixar de lembrar o dia de hoje, o que ele significa. Ninguém pode deixar passar em claro o facto de, faz hoje sessenta anos, se terem aberto as portas que mostravam o terror dos terrores, Auschwitz/Birkenau e tudo o que isso significa para a Humanidade.

Mas, hoje, eu prefiro recordar o Dr. Hans Münch, descrito por muitos como "um ser humano dentro de um uniforme das SS". Lembrar o homem que – perante o gigantismo acéfalo da máquina de guerra nazi – fez a sua parte. E é verdadeiramente esta a estória que queria fazer recordar: a do único SS que escapou à morte nos julgamentos por crimes contra a humanidade, realizados na Polónia em 1947. A do médico que inventou experiências falsas para prolongar a vida dos seus prisioneiros. A do ariano que foi de propósito a Berlim recusar-se a fazer a selecção dos que deviam viver e dos que deviam morrer. A do homem que apôs uma das primeiras assinaturas a atestar a real existência dos campos de extermínio quando a História – como quase sempre acontece – tentou lavar a História.

Neste dia em que todos recordarão o holocausto e os milhões de mortos, eu recordo uma vida. Uma vida pouco conhecida de um homem que não foi um santo, que vestiu uma farda SS, que trabalhou em Auschwitz. Um homem que, ainda assim, fez uma pequena diferença, fez a sua parte, no meio da loucura e demência generalizadas que o rodeavam.

Dr. Wilhelm Hans Münch! Porque será que mais pessoas não conhecem este nome?

2005-01-26

Buscas

Só temos que nos sentir derrotados se acedermos ao convite da alienação. Se desistirmos de ser cidadãos. Imagina os 49,9% que votaram contra o Bush. Como é que se devem sentir? Devem emigrar? Eu tenho um blogue em que me apetece falar de tudo menos de política. Se não resisto a falar de política é porque não resisto a ser cidadão. E há coisas que temos de dizer. Porque ficarmos calados, estupefactos, desiludidos e ofendidos mas calados é uma vitória para esses senhores...


Ainda há pouco tempo dizia nos Estranhos Prazeres que coloquei algumas ferramentas extra no blog antes como reacção do que como caminho. Não o fiz para que me encontrassem facilmente. Fi-lo, antes, para me ser possível encontrar outras pessoas.

Não sei se acontecerá o mesmo a outros, mas fico irritada quando tento aceder a um blog e descubro que o profile foi bloqueado pelo seu autor. Porque gosto de ler quem me lê. Porque já encontrei assim muitas das minhas leituras diárias.

Aconteceu-me isso ontem, mais uma vez, com a resposta simpática que me deu
v-e-l-ü-t-h-a. E alegrei-me por ter mecanismos que me permitiram encontrar o tro.blog.dita.

É que encontrei por lá as palavras que nunca soube e/ou consegui dizer. São essas que deixo ali em cima. Mais engenho tivesse eu e já teria feito um post assim. Como não tenho, fui "roubar" as palavras dos outros.

Na verdade, fui mesmo "surripiar" um fabuloso comentário com origem num post magnífico que eu, por desconhecimento, burrice, seja o que for, tinha deixado escapar em Dezembro. Mas não voltará a escapar nenhum!

Escuro

Quando a luz se apaga nas janelas
Perde a estrela d'alva o seu fulgor


Zéca Afonso – Canção de Embalar


Há dias que nos atingem com violência. Dias em que tudo à nossa volta nos causa uma espécie de retorno inevitável para pesadelos antigos. Como se não nos fosse possível deixar velhos fantasmas em descanso, como se a memória não fosse suficientemente funda para que as dores não se manifestassem ainda.

Hoje, para cada lado que olho, surgem temas como punhais. E tenho o corpo (ainda) demasiado em carne viva para tolerar facilmente este descompasso.

Hoje, será um dia de lua negra. Em mim, à minha volta. Já chega de ver lampejos faiscantes de mortalhas e traumas e vazios.

Para meu bem, hoje não estou cá...

2005-01-25

Futebolices


Boavista Posted by Hello


Sempre fui do contra. Bem, quase sempre fui do contra. Mas, no que toca a futebol, sempre tentei ser do contra.

Não tendo nunca entendido a mania de tentarem limitar as escolhas a azuis, vermelhos e verdes, resolvi que seria dos de preto. Ora, como a Académica – mesmo morando no meu coração – estivesse sediada um pouco longe, concedi no preto e branco aos quadradinhos. Assim como assim, eram pequenos o suficiente para causar algum espanto quando lá vinha a pergunta da praxe: "és do Porto ou do Benfica?" (é que, durante muitos anos, o Sporting só estava entre os grandes para fazer número) e eu abria um sorriso para responder: "sou do Boavista".

Bem sei que o meu clube tem fama de caceteiro, tem uma equipa que ninguém entende e um treinador que é uma anedota. Até sei que às vezes o árbitro apita de dourado e que, noutras, só se safam porque, do outro lado, estão uns ainda mais pernetas.

Mas eles ainda são dos pequeninos. Ainda. Mesmo depois do bonito na UEFA e do campeonato em Portugal. Mesmo depois de dizerem não aos dinheiros do Estado para terem um estádio à Euro. Mesmo que a Avenida dos Aliados não se encha para dar vivas às panterinhas. Mesmo que a minha equipa de eleição ainda seja mais do contra do que eu. E mesmo que já estejam de uma dimensão demasiado balofa, prosapiamente institucionalizada. Eu continuo a vê-los como pequeninos e deve ser por isso que as vitórias ainda são doces e as derrotas facilmente esquecidas.

Não há cá lenços brancos, nem sotaques estrangeiros a desconversarem as técnicas de balneário. O sotaque é outro, arruaceiro, chamando a todos os bois todos os nomes. E lá vai levando a água ao seu moinho. O resto é letra. Viva o grande de entre os pequeninos!

2005-01-24

Aposentadoria


Aposentação Posted by Hello


Com as eleições à porta, quase se torna inconcebível não questionar uma série de atropelos que, a torto e a direito, são propostos e/ou implementados.

Em certos casos, não questiono sequer a ideia subjacente, toda ela cheia de uma lógica numérica e evidente, esgotado que está o modelo de país procriador, que isto está mau para se ter muitos filhos e já não há quem sustente uma população a envelhecer a olhos vistos.

Mas que nos faz pensar nas consequências, lá isso faz. Assim como nos faz pensar nas reformas gordas de um certo grupo restrito, apaniguado.

Para todos os outros, sobra o resto. E, quando o resto chegar, será que ainda teremos forças para fazer o tal manguito?
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thanks pela foto, Babs

O Esquema

Esboço sobre os tiques dos políticos

Não é bem que a gente não acredite neles, o que a gente não acredita é que eles acreditem. Talvez o problema seja apenas de cariz patológico, uma doença profissional adquirida ao longo dos anos, durante a escalada, no interior do aparelho partidário. A surdez, a cegueira, o autismo e a compulsão do discurso generalista. Como disse, uma doença profissional.


Os portugueses, quais extremados budistas, não são de extremos, nem à direita nem à esquerda, acomodando-se ao virtuoso “caminho do meio”, e votando ao centro. Naturalmente não tardou aos profissionais da política adaptarem-se ao luso-budismo, posicionando-se por forma a recolher o filão dos votos, ao centro. Temos assim um sistema onde a alternância democrática se dá entre o centro-centro-ligeiramente-esquerda e o centro-centro-ligeiramente-direita. A gente volta ligeiramente à direita quando nos dizem que as finanças públicas estão num caos, a gente volta ligeiramente à esquerda quando os ordenados sobem menos que a inflacção, a gente dança o vira, dando voltas sempre no mesmo lugar.

E porque a gente, por mais voltas que dê, vota sempre ao centro, criou-se no centro uma maioria acomodada: os profissionais da política ao centro, os da meia-direita mais os da meia-esquerda. Para estes profissionais da política é já um pouco indiferente o eleitorado português no seu todo. Digamos que interessa apenas convencer aquela meia dúzia dos “mais budistas que o buda”, teimosamente ao centro, que hora votam centro-centríssimo-ligeirissimamente-direita, hora votam centro-centríssimo-ligeirissimamente-esquerda, e de forma alternada, para que o cômputo geral seja um puríssimo centro, “o caminho do meio”.

Uma classe profissional acomodada e sem lutas sérias no exterior, uma vez que o ganha pão do partido está garantido ao centro, volta-se inevitavelmente para o ganha pão individual, que depende exclusivamente das lutas internas para subir dentro do partido.

Aqui temos o problema, tal como nos têm chamado repetidas vezes a atenção: uma avaliação externa é condição sine qua non para garantir a qualidade de um serviço. Sem uma avaliação externa, as políticas de promoção acabam inevitavelmente por cair no compadrio, ou pior, tendem a compensar quem se dedica à promoção interna da sua carreira, em detrimento de quem se dedica a cumprir e melhorar a missão original do serviço. Se as pessoas a quem o serviço serve são irrelevantes para o ganha pão, não sobe quem melhor serve, sobem os carreiristas.

A surdez, a cegueira, o autismo e a compulsão do discurso generalista? Sintomas de passar mais tempo preocupado com o que se pensa no interior do partido do que com o que pensa a gente cá de fora. Como disse, uma doença profissional.



Ontem pedi licença e hoje estou a cumprir o mais que merecido elogio. Porque há textos que apetece plagiar. Porque há quem diga muito melhor do que nos seria possível aquilo em que acreditámos. Porque o Draw merece mais visitas, mais comentários.

Porque me apetecia ter sido capaz de escrever este brilhante texto.

2005-01-23

Solidariedade

O morto
abre a terra: encontra um ventre

O vivo
abre a terra: descobre um seio


Mia Couto - Pequeninura do morto e do vivo


Tinham-nos pedido casa cheia. Porque só uma casa cheia faria sentido. E respondemos: três mil lugares, que às tantas eram mais. Três mil vozes. Três mil vontades. Três mil ritos solidários.

Há espectáculos que são mágicos. Que geram laços apertados entre o palco e a assistência. Como ontem.

Tantas vozes. Vozes solidárias, amigas. Por pessoas tão longínquas quanto pontos imperceptíveis em mapas mundi. Mas ontem eram irmãos. Nossos irmãos sofredores por quem se cantou uma noite.

Por dinheiro, sim. Bendito dinheiro assim angariado que permitirá à AMI permanecer na Ásia quanto tempo for preciso.

O meu bem haja a todos quantos subiram àquele palco. O meu bem haja à organização, ao Coliseu. O meu bem haja a todos quantos partilharam comigo esta noite na assistência.

Fomos muitos. Fomos. Saímos de alma limpa, melhores. E não custou nada dar o preço deste bilhete. Será sempre o pouco que nos é permitido. Dar! Só isso: dar a quem precisa.

E na terra, os vivos ainda encontram seios. E alguma fome será mitigada...

Dar música...


funpic Posted by Hello

Como não arranjei um burro, levas um gato.

Parabéns, M.J.

2005-01-22

Cinema

With the key in your hands
It's time you walked that naked stage

Of glass from hot sands
Where a sound within your heart
Will rage

And it rocks in the head moving ever on
Life is an unforgettable opera


Daltrey Roger – Unforgettable Opera


Que me faz correr para o cinema? O que me faz sentir a falta de um bom filme? Que magia me prende às vidas de outros, às tragédias, alegrias e às pequenas coisas do faz de conta? Um vício, um prazer, uma magia...

Há muito que enjoei as noites repetitivas de batida feroz, sem tempo nem para falar. Há muito que o tempo da estroinice se esfumou, enquanto as amizades se comprimem entre os casamentos e filhos que ocupam cada vez mais o tempo que sobra do trabalho e do trânsito. Mas há sempre tempo para um cineminha. Um ritual partilhado, à guisa de chá das cinco, cada actor um scone, cada historia um torrão de açúcar mascavado.

Corro para o cinema fugindo das segundas-feiras; corro para o cinema fugindo dos horários nocturnos. Adoro matinés sem pipocas e sem espalhafatos, salas quase vazias, partilhar noventa minutos com desconhecidos e ousar, à saída, sorrisos ou esgares cúmplices.

E, confesso, há dias em que adoro um bom dramalhão, daqueles que só não chora quem não tem coração. É uma espécie de fetiche privado, como se na desgraça alheia exorcizasse os meus demónios e saísse do cinema de alma lavada e capaz de mais sorrisos.

2005-01-21

Manguito




Crescido, Zé Povinho correspondeu perfeitamente às esperanças que n'elle depositaram os solicitos poderes do reino. Como desenvolvimento de cabeça elle está mais ou menos como se o tivessem desmamado hontem. De musculos, porém, de epiderme e de coiro, endureceu e calejou como se quer, e , cumprindo com brio a missão que lhe cabe, elle paga e súa satisfactoriamente. De resto, dorme, resa e dá os vivas que são precisos. Um dia virá talvez em que elle mude de figura e mude tambem de nome para, em vez de se chamar Zé Povinho, se chamar simplesmente Povo. Mas muitos impostos novos, novos emprestimos, novos tratados e novos discursos correrão na ampulheta constitucional do tempo antes que chegue esse dia tempestuoso.

Por tudo pois, ao resumirmos n'estes leves traços, a interessante historia de Zé Povinho, o nosso parabem cordeal a seus sabios e carinhosos paes ós Publicos Poderes.

João Ribaixo (Ramalho Ortigão)


Faz hoje aninhos o Zé Povinho. E está tão jovem! Está tão actual! Ainda é o povo a tentar fazer manguitos aos políticos e a ver que, como de costume, ainda é o povo a pagar todas as facturas. O Zé Povinho, o das calças rotas, da juba farta, do garrafão do tinto e da impertinência rebelde do manguito, a eterna vítima.

E ele é, ainda, cada um de nós...

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Texto do Ramalho Ortigão aqui e a imagem aqui.

2005-01-20

Iridescência





Estou para aqui em silêncio a olhar para a página em branco, a pensar como a imagem de ontem ainda faz hoje tanto sentido. A ver as cores misturadas, confusas, gloriosas. E o estranho é que acabam por ser as cores predominantes no meu quarto, os tons quentes que me vestem os sonhos, a luz coada que me aquece a alma.

Por isso estranho a forma como nem hesitei em escolher uma imagem daquelas para falar de caos, para falar de dúvidas, para fazer das palavras questões. Porque não sinto dúvidas em cores que me são reconfortantes.

Gosto de vermelhos e laranjas, de amarelos suaves, de dourados pouco opulentos. Gosto dos verdes discretos e esperançosos, nem que se escondam numa jarra, ou na capa de um livro sempre perdido na cabeceira. Gosto dos azuis profundos, aveludados, para acalmar chamas incendiárias. E gosto dos negros porque sim, porque o escuro me permite contrastar tudo, a mim, com a luz e porque adelgaça as sombras que me limitam e me fascinam.

Talvez esta mania cromática seja uma forma desencantada para tentar ainda recomeçar, fazendo do corpo escala para um reencontro com uma qualquer pureza há muito desaparecida. Talvez esteja às vezes demasiado perdida, talvez às vezes sinta que já vivi demais. Talvez me sinta só demasiado embrulhada numa vida feita de estímulos sensuais e pressinta uma certo vazio na alma. Talvez as cores quentes sejam uma forma para reencontrar o toque, a pele, todos os sentidos, transformando-os no único caminho para um eu maior, um amor maior e, de certa forma, para a sabedoria.

As dúvidas de ontem são as mesmas de hoje. As cores que as representam também. Então, a imagem de ontem imigrou hoje para aqui. E aqui faz muito mais sentido...

Quanto às minhas dúvidas, vou levá-las, provavelmente, até à morte. Lá chegarei ainda a questionar-me sobre tudo e nada, sobre banalidades sem sentido. Será, talvez, a minha peculiaridade, a minha fuga, o meu caminho. E, quando lá chegar, espero ter conseguido viver as incertezas plenamente, desejando que a minha diferença seja o suficiente para que eu afirme, como um dia disse Augusto Hilário, "eu quero que o meu caixão / tenha uma forma bizarra". Mas não precisa ter a forma de um coração ou de uma guitarra. Basta que seja bem colorido e, se possível, se enovele em línguas de chamas iridescentes...


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Foto
aqui

2005-01-19

Dúvidas

Os grandes eixos modernos, a revolução, as disciplinas, o laicismo, a vanguarda, foram desafectados à força da personalização hedonista; o optimismo tecnológico e científico desmoronou-se, enquanto as inúmeras descobertas eram acompanhadas pelo envelhecimento dos blocos, pela degradação do meio ambiente, pelo apagamento progressivo dos indivíduos; já nenhuma ideologia política é capaz de inflamar as multidões, a sociedade pós-moderna já não tem ídolos nem tabus, já não possui qualquer imagem gloriosa de si própria ou projecto histórico mobilizador.

Gilles Lipovetsky - A Era do Vazio



Se a ideia de progresso está em crise e os conceitos operativos com que encarávamos o real vão perdendo sentido, será que podemos assumir que esta ideia de crise tenderá a estender-se a toda a realidade humana?

Então, será que enfrentamos uma era dominada pelo caos, enquanto nos empenhamos numa busca para encontrar maneiras novas de dizer e pensar a realidade, bem como novas formas para a estruturar?

2005-01-18

Conceitos de Beleza


Ralph Fiennes Posted by Hello


Confesso que não tenho uma relação muito saudável com os conceitos de beleza. Gosto de escalpelizá-los e, a mais das vezes, fico-me antes com o nariz torto, desde que o olhar seja ladino, com a cicatriz, em vez da cara perfeita. Nada como uma pequena mácula para tornar interessante, apelativo, aquilo que poderia ser apenas belo.

Sempre me pareceu que todos os conceitos de beleza se esgotam facilmente na multiplicação desmedida em tom de fotocópia ou, actualizando conceitos, de clones. Fácil, por isso, procurar a novidade no que, não sendo o belo do cânone, atrai pelos outros motivos. Não será à toa que nós, mulheres, nos delongámos a falar de "charme", porque não há análise que perdoe tamanho conjunto de imperfeições no sujeito. E mesmo o mais delicioso dos bonecos só o é porque a beleza apregoada não resiste a um olhar à lupa, mas o charme permanece e o conjunto vale por si.

E depois há as mãos.... nada como um lindo par de mãos a despontar à frente dos meus olhos e a engrandecer uma conversa deliciosa com um bailado de gestos. E há os olhos, com o brilho certo e a textura do veludo.... Eu vou mesmo por pormenores!

E os pormenores parecem-me, de facto, ser o que mais importa naquilo que, cada um, tem como o seu conceito de beleza. E há tantos destes conceitos que não chego sequer a compreender...

2005-01-17

Pausa

Basta pensar em sentir
Para sentir em pensar.
Meu coração faz sorrir
Meu coração a chorar.
Depois de parar de andar,
Depois de ficar e ir,
Hei de ser quem vai chegar
Para ser quem quer partir.

Viver é não conseguir.


Fernando Pessoa – Basta Pensar em Sentir para Sentir em Pensar


No momento em que me recosto para avaliar o dia, esgoto o tempo que tenho para o fazer. E tenho sono e estou cansada. Acho que vou dormir uma sesta para ver se recupero alguma vontade para mais, incluindo vontade de estar sentada, a olhar para palavras. Vou antes alienar-me em frente à TV, ou pegar num livro e fazer de conta que leio. Talvez ficar a olhar para a lareira, a ver as labaredas dançantes e a sentir o aconchego do cheiro da madeira e do bafo quente do borralho. Vou esvaziar a cabeça, deitar fora todos os pensamentos, encher-me de calma, de paz. Vou esquecer esta Segunda-feira, vou esquecer o dia do mês. Vou esquecer-me de mim, por instantes.

2005-01-16

Parabéns, D. Quixote

Quem tu és não importa, nem conheces
O sonho em que nasceu a tua face:
Cristal vazio e mudo.
Do sangue de Quixote te alimentas,
Da alma que nele morre é que recebes
A força de seres tudo.

José Saramago - Dulcineia


Faz hoje quatrocentos anos. Ou, de outra forma, há quatrocentos anos que faz parte do nosso imaginário. E é jovem ainda. Tão jovem quanto pode ser um velho decrépito que se recusa a ver a realidade feia.

Há quatrocentos anos que corteja a Dulcineia, cavalgando o seu Rocinante. Há quatrocentos anos que Sancho Pança o acompanha, ancorado no real, mas percorrendo ainda os trilhos do sonho, da magia.

Faz quatrocentos anos o jovem D. Quixote, o Cavaleiro de La Mancha, o Cavaleiro da Triste Figura. E cavalga ainda, hoje como ontem, em direcção ao mistério interior de cada um, refúgio de tormentas, pincel de magia, paleta de tons mirabolantes que nos seduzem para longe da realidade miudinha.

São gigantes! São mesmo. Não há moinhos.

Parabéns Cervantes. Parabéns D. Quixote.

Por um triz...

Onde é que as Parcas Fúnebres estão?
- Eu vi-as na terceira encruzilhada
Com um pássaro de morte em cada mão.

Sophia de Mello Breyner Andresen – Encruzilhada


Quem foi que disse que, se não reconhecemos o perigo, o perigo somos nós?

2005-01-15

Do Arquivo...

I’ve... seen things you people wouldn’t believe, hmm. Attack ships on fire off the Shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near Tannhauser Gate (...)

...all those... moments, will be lost, in time, like tears... in... rain.


Blade Runner – Hampton Fancher e David Peoples
(baseados em Do Androids Dream Electric Sheep, de Philippe K. Dick)



...é quase como se, ao tentar num último fôlego passar o que viveu e viu a um ouvinte – qualquer ouvinte, mesmo aquele que há pouco seria seu carrasco ou sua vítima –, Roy tivesse encontrado um porto para a sua memória. Porque a memória só partilhada faz sentido; só uma voz que se acha, que se faz presente, tem rumo. E uma vida não é desperdiçada se houver quem a conte, quem lhe saiba os pormenores. Mesmo uma vida breve, com fim anunciado, sem esperança e sem sonhos ou miragens de eternidade.

2005-01-14

Tss, tss!

O sexo parece ter sido inventado há cerca de 2 mil milhões de anos. (...) Com a invenção do sexo, dois organismos quaisquer podiam trocar parágrafos, páginas, livros inteiros do seu código de ADN.

Carl Sagan – Cosmos

Tss, tss!... e ainda foi preciso mais uma porra de anos para que se inventasse o cyber-sexo e viesse a moda de mandar só livros assépticos em branco...

2005-01-13

E eu que ia ganhar um doce...

Se, por qualquer milagre, o dono dos Estranhos Prazeres que são tão, mas mesmo tão estranhos, que os comentários não funcionam, resolver vir espreitar a minha tasca, é só para saber se ganhei um doce....

http://vozemfuga.blogspot.com/2004/09/o-que-faltou.html

Estrelas

Do ponto de vista de uma estrela, um ser humano é um minúsculo relâmpago, uma dos milhões de vidas breves que bruxuleiam de maneira ténue na superfície de uma esfera de silicato e ferro, estranhamente fria, anomalamente compacta, exoticamente distante.

Carl Sagan – Cosmos


Gosto de estrelas. Sempre gostei. Gosto de me perder no meio dos montes, com aquela temperatura certa das noites de verão, e ficar a olhar para o brilho intermitente de sóis distantes.

Gosto de imaginar que, lá longe, há uma hipótese de vida. Uma outra vida. Talvez a cometer os mesmos erros que a nossa, talvez a cometer outros mais graves ainda, talvez a solucionar umas quantas interrogações misteriosas.

Gosto de olhar o céu ponteado de luz. Sabê-la distante. Sonhar um dia em que as distâncias sejam transponíveis num suave piscar, em que o tempo e o espaço se curvem a nosso favor. Imaginar que há mundos paralelos. Pensar em buracos negros como caminhos, em lugar de sorvedouros sem fim. Pensar a hipótese de outras rotas, descobrimentos sem encobrimentos das verdades, viagens ancoradas em astróides, encontrar a medida certa para um espaço sem fim, ou curvo, ou em expansão, ou em regressão. Imaginar o estrondo silencioso de todos os big bangs iniciais.

Hoje queria ter estrelas para olhar. Mas o céu cinzento da chuva miudinha esconde-me os seus brilhos. E imagino esta nossa Terra que se aplanou à conta de um maremoto, esta Terra que se deslocou centímetros do seu eixo à custa de uma convulsão, ainda mais estranha, mais parada, mais bela, contra a velhice brilhante de luzes que, às tantas, já se extinguiram...

2005-01-12

No feminino

(...)
No conozco la astucia,

no soy como la hoja del chopo
que en oruga se oculta y arracima
antes de dar su tierno cuerpo al viento,
soy clara y sin pudor,
soy entera y tajante,
y no sé seducir.


Clara Janés – No Sé (in, Eros, 1981)


Não sei se escrevo de forma feminina. Talvez escreva. Talvez diga as coisas de uma forma cuidada (mas nem sempre) e que isso possa ser entendido como uma escrita feminina.

Há uns dias atrás, a
miga chamou-me aqui o nome que me deu lá na casa dela: umbigo. E talvez afinal seja isso. Esta minha disposição para falar do meu umbigo. Talvez seja uma forma feminina de vir falar, dizer qualquer coisa, depois de ter andado a cirandar pelos blogues e ficar a achar que não tenho nada novo para dizer. Mas ainda assim – e de forma que suponho seja bem feminina – sou teimosa o bastante para escrever qualquer coisa.

O Frogas, por outro lado, acha que eu nunca conseguirei
enresinar o bastante, ainda que queime as pestanas a ler o que os quatro vão postando por lá. E às tantas é porque não sou gajo e não sei escrever de outra forma. Mas o Cachucho, após várias reclamações à gerência face à sobre-abundância de nus femininos, hoje lá me deu uma guloseima e eu, femininamente, trouxe-a para a minha voz para melhor me deliciar.

Pelos vistos, vou conseguindo discutir em mil pormenores estranhos as virtudes da horticultura à portuguesa e, suponho, esta brincadeira tem toda uma lógica de toca e foge de que acusam muitas vezes as mulheres no geral e a mim, em particular. Talvez também seja uma forma feminina de lidar com outros temas, sem os aprofundar particularmente e o
abf tem-me divertido com o troco que me vai dando e com a quantidade de comentários que passei a ter aqui nesta tasca perdida. De forma bem feminina, sinto-me lisonjeada.

Depois, ainda vem a
Catarina pôr-nos o George Clooney em t-shirt e a perguntar-nos se não está mesmo a jeito para que lhe saltemos à espinha e, de bom grado, de forma também ela toda loucura-hormonal-feminina, não tenho quaisquer pruridos em confessar que sim. Claro que sim!

Mas, depois disto tudo, ouço alguém a dizer-me – quase com aquele jeito de um "toma cuidado" paternalista – que esta minha casa é como espreitar à minha fechadura. Que até o fundo escuro é intimista, feminino. E aí já me dá para pensar. Não é que não saiba bem que me desvelo por cá. Não é que não tenha consciência que vou falando de coisas que me atingem, me preocupam, me deliciam. Mas assusta-me que vejam para além do umbigo que quero mostrar. Ou que achem que vêem.

O meu blog é um par de calças de cintura descida. Deixa ver o umbigo. O resto... bem, o resto espero não mostrar demais.

Talvez seja só mais uma daquelas paranóias femininas de querer preservar algum mistério...

Tentações 2




Quem tem amigos, não morre à míngua e é bem certo. Ora vejam lá o que me ofereceram.

Vejam. Vejam bem!

(mas é meu, ficam já avisados, meninas e meninos com gostos requintados!!!!)

Aliás, estou de rastos. Tenho febre pela certa. Já não estou de mau humor. Só muito quente. Muito, muito quente.

E eu que achava que já tinha visto a maior das tentações. Afinal, não. Tinha que esperar pela oferta do Cachucho.

Cachucho, com um peixinho destes eu juro que me meto à cama e não saio mais de lá!



(Dentro de momentos, o blog segue com a compostura possível...)

2005-01-11

Mau Humor


Irra! Posted by Hello


Depois de um dia inteiro à espera que a TV Cabo se decidisse a funcionar, estou pelos cabelos. Já não há nem pachorra, nem paciência para nada.

Hoje não é um bom dia para me pôr para aqui a escrever. Melhor também não responder. Ainda redireccionava o mau humor para quem não tem culpa nenhuma. Quem me conhece sabe bem que é mesmo melhor eu hoje estar quietinha.

Por isso, amanhã também será dia para responder a quem por aqui veio. Esperemos que o meu humor se tenha composto, até lá.



(hoje vou beguincag com outga coisa e sonhag que tenho cem mil eugos paga ig passeag paga uma pgaia tgopical)

2005-01-10

Love Is A Battlefield

We are young, heartache to heartache we stand
No promises, no demands
Love Is A Battlefield

Pat Benetar – Love is a Battlefield
(escrito por Mike Chapman & Holly Knight em 1984, acho)


OK, OK... estou a ficar velha, só pode. Mas isto de ver DVD’s ao fim de semana paga-se caro. Quando estava na moda, não gostava. Nunca gostei do género. Mas hoje, o raio da musiqueta não me saiu da cabeça o dia inteiro. Deve ser mesmo da idade...

Pois levei para casa o 13 Going on 30 (Gary Winick, 2004), com a Jennifer Garner, da série Alias.

O filme em si é só mais uma comédia romântica sem conteúdo e várias estórias que ficam por explicar. Mas a banda sonora apoderou-se de mim. É toda ela muito "eighties" e a Pat Benetar tem direito a destaque. Pelo meio, aquelas roupas inconcebíveis que até tivemos coragem de usar: as saias de folhos com meias de licra sem pés e as sabrinas pavorosas; os penteados, com um totó do lado da cabeça ou no topo; as franjas; as maquilhagens exageradas; a bijuteria horripilante. Fui uma década pavorosa em termos de moda. Só olhando para trás é que vemos quanto...

E a música para consumo MTV, com os video-clips a serem gravados em Beta, para depois passarem repetidamente até à exaustão. E a coreografia do Thriller, do Michael Jackson, de que todos chegamos a saber um passo ou dois...

O filme levou-me numa viagem pela minha memória e foi estranho e ridículo e, ao mesmo tempo, muito saboroso. Como são as coisas que já estão esquecidas e que, num lapso, se fazem de novo presentes. É certo, é bom, quando as conseguimos recordar com um sorriso...

O amor continua a ser um campo de batalha. Cada vez mais. Há medida que os anos passam, ficamos cada vez com mais cicatrizes de amores falhados, outros nem sequer tentados. Até já não haver espaço nem para promessas, nem para exigências. Só espaço para egos magoados que se enfrentam ainda.

Há muitos anos atrás, quando a Pat Benetar cantava, eu nem sonhava ainda com o amor. Tentava tão só lidar com os complexos adolescentes que me desmotivavam, que me faziam sentir inferior, sempre feia, sempre gorda, sempre desajustada. Há muitos anos atrás, eu também esperava pelos 30 anos para que tudo fosse bom, fosse possível, fosse diferente. Agora olho com um sorriso envelhecido – o mesmo sorriso que me fez reconhecer nas miúdas de 13 anos do filme – e preparo-me para os próximos embates: já não tão jovem, com o coração (diversas) vezes partido, sei ainda que o amor é um campo de batalha. Mas hoje sei que não há melhor lugar para ir à luta, sem medos. O triste é já não termos aquela ingenuidade, aquela capacidade para o amor, que só os corações jovens parecem conservar.

Ainda estou pronta para muitas batalhas. Venham elas. E seja eu capaz de as reconhecer...

2005-01-09

Tiro em mim


tiro Posted by Hello


Às vezes, sinto-me a perder-me numa espiral negligente, que me afasta do que sou, que me afasta do que fui, que me afasta do que quero ser.

Tenho andado um bocado perdida.

Tenho andado a pensar em fazer tiro ao alvo a mim.

Talvez acerte em alguma coisa…

2005-01-08

Godot

Todos nascemos loucos. Alguns de nós continuam a sê-lo.

Samuel Beckett – À Espera de Godot


Todos os dias espero que a inspiração não me falte, regresse de mansinho para me ajudar. Nestes dias em que o absurdo se instala, corrosivo, e não sei como escapar-lhe.

Todos os dias! Talvez falando de tudo e de nada, esperando. Esperando que as palavras se alinhem, ao final do dia. Esperando que a loucura se esconda, vagueie para longe. Esperando, esperando, esperando...

Todos os dias espero a inspiração que me permita baixar ao ninho, baixar à minha condição, escorraçar o patético e o desesperado, vagabunda de mim.

Todos os dias espero a espera, vagando no tudo, vagando no nada, procurando um caminho nas existências banais, sem sentido, quando a voz me foge ainda mais um dia.

Todos os dias espero o meu Godot, um vazio que não chega se o amordaço em mil palavras, esconjuro em coisa nenhuma. Uma qualquer banalidade que se faz esperança, quando ainda há mais um dia em que a espera é a rota possível para longe do nada, para perto da inspiração, para mais perto ainda de um renascimento possível.

Na invenção das palavras, construo a espera. E fico esperando, esperando, esperando. Meu Godot, minha inspiração, meu caminho.

2005-01-07

Balelas!

Defende o teu direito de pensar porque pensar errado é melhor do que não pensar.

Hipatia


(Estou farta de gente que diz que pensa muito, a quem pagamos para que pense muito em nós. Estou farta dos faz-de-conta em prime-time e dos blábláblá sem resultados. Estou farta de ignorantes armados em espertos a atirarem-nos areia para os olhos)

Em Portugal, provam-se Uniões de Facto com o IRS ou pouco mais. Só que o imposto não foi feito para isso. Mas se nem a sua função o imposto sabe cumprir, pois que até uma Polícia Fiscal se viram na necessidade de inventar, por que raios havia de ser prova de União de Facto? Que mal trará ao país e aos portugueses que quem vive em União de Facto passe pelo registo civil? Que mal haverá se os gays o poderem fazer também? Deixam de existir só porque lhes roubamos direitos à espera de os ver desaparecer para debaixo do tapete do esquecimento para onde os falsos pudicos os tentam empurrar?

E, já agora, que mal vem ao mundo se um casal gay poder fazer uma criança feliz? Será melhor perpetuarmos Joanas só porque perpetuamos o preconceito?

Estamos a ficar um país atrasado, cada vez mais atrasado. O pior é que o atraso nas mentalidades estende-se a toda a realidade social. Somos um dos países da Europa onde a infecção por HIV mais cresce e, espanto (será?), cresce especialmente entre a comunidade hetero, cinquentona, que às tantas até vai à missa ao Domingo e votou no Paulo Portas, frequentadora de patíbulos ou prostitutas de rua. Mas a mesma mentalidade tacanha que impede tantos de usar o preservativo, preferindo arriscar a própria vida e a dos companheiros, traduz-se também numa certa moralidade para o outro ver, que os faz defenderem princípios que não entendem nem cumprem. E acabam por ir votar no preconceito...

Depois, olhamos aqui para o país vizinho e temos de corar de vergonha. O país onde as portuguesas com dinheiro podem fazer livremente um aborto. O país onde, cada vez mais, não há cidadãos de primeira e cidadãos de segunda.

E esta nova Espanha decidiu alargar os Direitos – sim, porque eu acho que são Direitos mesmo, daqueles verdadeiros, inalienáveis – à comunidade gay, cidadãos como quaisquer outros, não fossem as palas de tanta gente tacanha a fazer achar que não.

Como é óbvio, o debate não foi pacífico. Até à queda de Franco, a homosexualidade em Espanha era crime com direito a pena de prisão e mais um processo daqueles bafientos que punham uma Letra Escarlate na ficha civil de muitos homens e mulheres, impedindo-os do livre acesso ao mercado de trabalho e à própria cidadania, condenando-os às franjas da sociedade.

Mas a velha Espanha onde os Tugas iam comprar caramelos, a Espanha em que se vivia pior do que em Portugal, a Espanha do Caudilho, há muito que desapareceu. A Espanha moderna é, a muitos níveis, o exemplo que Portugal não soube seguir.

Quanto a nós, cá nos quedamos com leis que não mudam ou não mudam o suficiente e políticos sem tomates para terem coragem de as mudar... E ainda ficamos sem a Helena Roseta no Parlamento...

O gap que nos separa da Europa é bem mais complexo do que a economia pode explicar. Eu chamaria mais depressa um sociólogo para fazer a análise e um coveiro para levar tanto político plastificado para longe dos lugares de decisão.

Mas isso sou eu. Uma gaja. Nem percebo nada do assunto. E até gosto de gajos, imagine-se. Só que gosto é deles com os tomates bem no sítio e, para isso, não são necessárias leis, felizmente.

2005-01-06

Vai pela sombra!


Foto Reuters (11/12/04) Posted by Hello



...quanto ao PSL, parece-se, de facto, confrangedor o espectáculo em que se transformou, virando bobo da corte onde antes posava como rei.



(Há uns dias atrás, devidamente inspirada pelo fabuloso texto que li por , dei por mim a fazer este comentário que – sem falsas modéstias – me saiu bastante bem. Tanto que não resisto a pô-lo aqui...)

O Nosso Mundo


Fonte: Grande Reportagem Posted by Hello

Brasil:

Pessoas que vivem com menos de 10 dólares por mês
Pessoas que vivem com menos de 100 dólares por mês
Pessoas que vivem com menos de 1000 dólares por mês
Pessoas que vivem com mais de 100 000 dólares por mês




Fonte: Grande Reportagem Posted by Hello

Angola:

Pessoas infectadas com o HIV
Pessoas infectadas com o virus da Malária (virus da Malária)
Pessoas que têm acesso a cuidados médicos





Fonte: Grande Reportagem Posted by Hello

Burkina Faso:

Crianças que morrem antes de completarem um ano
Crianças que morrem antes de completarem três anos
Crianças que alcançam a idade adulta




Fonte: Grande Reportagem Posted by Hello


China:

Menores de 14 anos que trabalham
Menores de 14 anos que estudam




Fonte: Grande Reportagem Posted by Hello


Colombia:

Exportação de Bananas
Exportação de Café
Exportação de Cocaína





Fonte: Grande Reportagem Posted by Hello

Somália:

Mulheres que sofrem mutilação genital
Mulheres que não sofrem mutilação genital



Fonte: Grande Reportagem Posted by Hello

União Europeia:

Consumo de Petróleo
Produção de Petróleo



Fonte: Grande Reportagem Posted by Hello

Estados Unidos:

A favor da guerra no Iraque
Contra a guerra no Iraque
Não sabem onde é o Iraque


2005-01-05

Oásis


Terra Posted by Hello


Diz José Saramago, num poema perdido algures neste blog, que "cada um de nós é por enquanto a vida" e que isso nos deveria bastar.

A nossa Terra, este pulmão pulsante, azul e branco, verde, com laivos de areia, é um pedaço de paraíso perdido no negro vazio do espaço. Mesmo quando se zanga...

Somos um milagre.

A vida é um oásis.

E nós, poeira das estrelas, presos a miragens, descartamos os sonhos de futuro, a grandeza da existência, na mesquinhice dos dias.

Somos pó. Ao pó voltaremos. Até lá, que cantem os ribeiros da esperança que enchem os oásis da vida.




(não quero continuar amarga...)

2005-01-04

Bem vindos à barbárie!

(...) este século [séc. XX] nos ensinou, e continua a ensinar, que os seres humanos podem aprender a viver nas condições mais brutalizadas e teoricamente intoleráveis, [pelo que] não é fácil apreender a extensão do regresso, por desgraça cada vez mais rápido, ao que os nossos antepassados do século XIX teriam chamado padrões de barbarismo.

Eric J. Hobsbawm – A Era dos Extremos


O século XX foi o século mais assassino de que há memória, quer na dimensão das tragédias, quer no número de vítimas. Mas também na precisão cirúrgica com que passou a ser possível matar à distância, tornando viável ao algoz distanciar-se da vítima, das vítimas, já que não mais precisava fitar os olhos de quem morria.

O final do século, transformou as guerras em jogos de playstation, com maquetas animadas e alvos a verde fluorescente. As vítimas são desumanizadas e o assassino livra a consciência dos corpos decepados, dos esgares moribundos.

Os jogos políticos são dominados por figuras intelectualmente vazias, sem qualquer réstia de convicção, puppets de sondagens e de especialistas de marketing. O dinheiro domina tudo e lava valores, demite crenças, subjuga a moral. Os bêbados, os drogados, os incompetentes, deixaram as franjas da sociedade e instalaram-se nos poisos desta nova política casada com a mais velha profissão do mundo.

Como o Mundo é cada vez mais só um, a podridão espalha-se à guisa de pandemia. E, enquanto os vários Estados se vão alinhando em função dos seus interesses, as posições vão-se extremando em lógicas compulsivas e diferentes jogos dicotómicos dificilmente permitem qualquer tipo de cedência. O endurecimento das posições faz temer pelos próprios resultados.

Quanto ao "Zé Povinho", esse parece não ser tido nem achado, ainda que a tal democracia que tantos ousam invocar o tivesse feito acreditar que era senhor do seu destino e que a sua vontade contava mais do que no tempo em que os totalitarismos eram mais a regra do que a excepção.

Talvez seja mesmo necessário repensar todas as nossas percepções do mundo e da convivência entre os Estados e entre as gentes a partir de agora. E talvez pensar na necessidade de criar uma figura de "cidadania planetária", para que a voz de todos não seja anulada pelos interesses de alguns.

Mas ontem e hoje dei por mim a temer sobre que parte dos fundos disponibilizados para ajuda aos países asiáticos será desviada para favorecer uns poucos, para comprar armas, para comprar influências.

E o meu ideal de cidadania planetária quedou-se carcomido, enjeitado, simples demagogia. Porque cada vez me parece mais que esse era o ideal a cumprir mas que, no entretanto, só nos resta dar as boas vindas à barbárie...

2005-01-03

Silêncio

Suponho que em toda a sociedade a produção de discurso é, ao mesmo tempo, controlada, seleccionada, organizada e redistribuída por um certo número de processos que têm por fim conjurar-lhe os poderes e os perigos, dominar-lhe o acontecer aleatório, evitar-lhe a pesada, a temível materialidade.

Michel Foucault - A Ordem do Discurso


Hoje olho ali para baixo e apenas sei temer a demagogia. A minha demagogia.

Hoje não quero ver as notícias e a demagogia de outros.

Hoje vou ficar em silêncio.


(Porque hoje não tenho voz para conjurar nenhum dos meus demónios.)

2005-01-02

Vermelho Sangue

Dançai ó Parcas vossa negra festa
Sobre a planície em redor que o ar empesta
Cantai ó corvos pela noite fora
Neste areal onde não nasce a aurora

Zeca Afonso – Coro dos Caídos



Se a imensidão do drama e o aumento exponencial de vítimas torna a hecatombe tão grande que não conseguimos sequer imaginar a imensidão da tragédia, então que se imagine um mar: um mar vermelho sangue, com a acalmia da morte; um mar negro-luto, sem ondas de esperança.

Que se imagine uma onda rubra de lágrimas. Que se imagine um lago de mágoa. Que se imagine um holocausto em martírio. Que se imagine a dor calada nos silêncios defuntos e pestilentos.


Não custa ajudar. Não custa dar qualquer coisa. É gente como qualquer um de nós, nossos irmãos de sangue, nossos eus do outro lado do mundo. Mas sem um copo de água, sem um pedaço de farinha, sem um naco de pão.

Nem que seja só isso: o preço de um pão. Se todos dermos assim tão pouco, chegaremos a fazer verdade o milagre da multiplicação e o nosso pão será um milhão.

Procurem as contas bancárias da AMI, da Cruz Vermelha, de todas as organizações humanitárias que, neste momento de tragédia universal, se mobilizam para salvar os que ficaram sem nada, os que já nem a esperança têm.

Por eles hoje. Talvez também seja necessário ser por nós um dia.

Que se façam verdade todas as mensagens que, à conta do Natal e do Ano Novo, soubemos proferir, imbuídas de nobres sentimentos. Que não sejam palavras ocas, que não sejam votos vãos.

Há um mar vermelho sangue de morte e moribundos e é possível ajudar.

O preço de um pão, de um cigarro, de um café...

2005-01-01

1º do Ano

A esperança (...) que se manifestou só depois de todas as outras pragas e tristezas terem escapado da caixa de Pandora, é a melhor e a última de todas as coisa. Sem ela, apenas existe o tempo.

Ian Caldwell e Dustin Thomason - A Regra dos Quatro


Uma das coisas que gosto na forma como aguardamos, ansiosos, pelas doze badaladas que põem fim ao ano velho, é a capacidade com que conseguimos concentrar, apenas num minuto, todas as esperanças, todas as frustrações, que acumulanos durante um ano inteiro. E, no espaço desse minuto, nessa breve fracção de tempo, toda a esperança é concretizável, tudo é provável, as possibilidades são infinitas.

Já é o primeiro dia do ano. Ainda tenho bem vivos na memória cada um dos doze desejos, das doze esperanças para 2005. E o tempo ainda é breve para conseguir contaminar com a sua implacabilidade todas as centelhas de esperança que ontem acendi...