2004-09-30

Precedências

(...) a conquista política do estatuto cívico – da ordem da cidadania, na qual o destino de cada um é definido não pela sua proximidade aos deuses, não pela sua pertença a uma família ilustre, não pela sua fidelidade a um chefe, mas pela sua relação com o princípio abstracto que é a lei – constitui uma primeira etapa.(...)

François Chatelet – História da Filosofia

Suponho que qualquer semelhança com um país que tem um governo que nega à oposição (toda a oposição) e ao país esclarecimentos sobre a nomeação de Celeste Cardona para a Caixa Geral de Depósitos, com a desculpa esfarrapada de "falta de precedentes"; ou qualquer semelhança com um país que tem um Primeiro Ministro que recusa receber abaixo-assinados de sindicatos representativos de enfermeiros, professores ou associações de estudantes entrará, sem dúvida, na categoria das precedências para regimes que fazem tábua rasa da democracia e pisam em cima de todos os direitos cívicos que a lei consagrou.

E viva a ditadura da maioria, de costas viradas para os cidadãos...

2004-09-28

Confusa...

- Fui ao blog, sim; fui a vários, andei a passear por eles, mas o teu achei dos mais confusos, e tinha pouca conversa.

- Dos mais confusos? Porque?

- Não devia ter dito confuso então, talvez, mas tinha logo à partida um texto muito comprido em inglês q eu n percebi o q era; achei q era uma canção e fugi logo, ehehehe

(não vou revelar quem foi o autor, como é óbvio, de tão aprimorados elogios)


Confesso: estou quase em prantos; sufoco baba e ranho neste momento. Estou confusa, pequenina. O meu pobre texto sobre o "Blade Runner" tragicamente confundido com uma canção. E porque este loiro só gosta de coisas que eu não gosto, tenho cá para mim que ainda achou que era uma música inaudível.


Eu bem sabia que devia ter encurtado o tamanho da citação. Mas nem um post só com uma foto do Roy me salvou do epíteto: confusa.

Ora, confusa sempre eu fui...

O que faltou...


Roy Posted by Hello




aqui

2004-09-27

Tears in rain

But, lightening fast, Roy reaches down and catches Deckard at the wrist. With all is strength, Roy slowly but surely pulls Deckard back from the brink, up and over the cornice then throws him down onto the roof.

Deckard, mustering what little strength he has left, crawls backwards on his behind to come to rest against a masonry pillar, expecting the worst from Roy.

But Roy doesn’t attack or even move forward, he simply sits down to eye his counterpart. He, himself is now beginning to fade, his ultimate fate stealing upon him. He still holds the white dove in his hand, Deckard eyeing him warily.

Roy looks at his exhausted opponent saying with a smile, "I’ve... seen things you people wouldn’t believe, hmm. Attack ships on fire off the Shoulder of Orion. I watched C-beams glitter in the dark near Tannhauser Gate." Deckard can only watch in mute fascination as Roy’s life slowly ebbs away as he continues, "all those... moments, will be lost, in time, like tears... in... rain. Time... to die." He smiles one last time at Deckard, then bows his head and expires. Deckard watching helplessly. The captive dove is released from Roy’s hand and flies upwards into the rain-soaked sky.

Blade Runner – Hampton Fancher e David Peoples, baseados em "Do Androids Dream Electric Sheep", de Philippe K. Dick (aqui)


O filme de uma vida? Sim, o filme da minha vida. Um deles, pelo menos.


Recordo até hoje o maravilhada que fiquei perante o imaginário sonhado, experimentado, as premissas que me corroíam todas as certezas. O espanto perante aquele universo escuro, kitsch, molhado. Os mil e um pormenores que só se descobrem à quarta, quinta visualização. A vontade com que corri a ler o conto de Philippe K. Dick, o fiel que fiquei das suas histórias.

Lembro um Harryson Ford muito pouco cabotino, certo para um papel que ficaria bem em uns tantos actores de outrora, com Boggart à cabeça dos nomes que me ocorrem. E um Rutger Hauer que nunca mais esteve tão bem, tão certo, completo, personagem e actor em comunhão.

Mas é este lá de cima o pedaço da história que sempre me fascinou. O prego espetado na mão do andróide, a pomba branca gentilmente presa entre os dedos. O olhar de início aterrorizado do homem que viu a vida salva in extremis e, depois, o olhar condoído ao ver uma vida a apagar-se. Os inimigos finalmente próximos, cada um consciente da sua finitude. Um salvo; um sem salvação.

É quase como se, ao tentar num último fôlego passar o que viveu e viu a um ouvinte – qualquer ouvinte, mesmo aquele que há pouco seria seu carrasco ou sua vítima –, Roy tivesse encontrado um porto para a sua memória. Porque a memória só partilhada faz sentido; só uma voz que se acha, que se faz presente, tem rumo. E uma vida não é desperdiçada se houver quem a conte, quem lhe saiba os pormenores. Mesmo uma vida breve, com fim anunciado, sem esperança e sem sonhos ou miragens de eternidade.

E o homem, o frágil, o extenuado homem, será a partir daquele momento o repositório de uma história, uma breve história, cheia de violência, como pregos espetados nas mãos, mas também capaz da maior delicadeza, a delicadeza com que se segura uma pomba, a tal pomba que, no fim, voa para um céu ensopado de chuva. Gotas, apenas isso, como lágrimas na chuva, lágrimas e gotas imprecisas, confundidas...

E uma história sobre bem mais do que memória, ou sonhos, ou fragilidades, ou vontade de vida, ou finitudes.

O filme da minha vida? Um deles, sem dúvida. Ainda lhe preservo a memória, busco-a nos sons de Vangelis, que tocam agora.

Auroras

Cuando tu apareciste,
penaba yo en la entraña más profunda
de una cueva sin aire y sin salida.
Braceaba en lo oscuro, agonizando,
oyendo un estertor que aleteaba
como el latir de un ave imperceptible.
Sobre mí derramaste tus cabellos
y ascendí al sol y vi que eran la aurora
cubriendo un alto mas en primavera.
Fue como si llegara al más hermoso
puerto del mediodía. Se anegaban
en ti los más lucidos paisajes:
claros, agudos montes coronados
de nueve rosa, fuentes escondidas
en el rizado umbroso de los bosques.
Yo aprendí a descansar sobre sus hombros
y a descender por ríos y laderas,
a entrelazarme en las tendidas ramas
y a hacer del sueño mi más dulce muerte.
Arcos me abriste y mis floridos años
recién subidos a la luz, yacieron
bajo el amor de tu apretada sombra,
sacando el corazón al viento libre
y ajustándolo al verde son del tuyo.
Ya iba a dormir, ya a despertar sabiendo
que no penaba en una cueva oscura,
braceando sin aire y sin salida.
Porque habías al fin aparecido.

Rafael Alberti - Retornos del amor recién aparecido


Porque há sempre uma alvorada.

Porque hoje me sinto menina.

Porque um sorriso me baila nos lábios.

Porque gosto de Alberti.

2004-09-26

Senhora de Rohan


Princesa de Ithilien Posted by Hello


Todas as mulheres carregam em si a valorosa filha dos homens, a mulher criada entre cavaleiros e batalhas, fruto das lutas e empunhadora de espadas. Éwoyin é a defensora da família, a mãe. E se a lenda diz que não há homem capaz de matar um Nozgûl, é porque a lenda sabe que uma mulher será capaz de empunhar a espada, não por ela, mas por quem ama, pela família.

A Dama Branca será sempre a regente da casa, a guardiã dos velhos, das crianças, dos fracos. Será a voz da consciência, trará em si a vontade de amar. Será força destruidora. Será força criadora também. Será o guerreiro disfarçado, o que não desiste e não procurar a fama. Será forte pelos que ama, mais forte do que qualquer sombra, mais forte do que a língua peçonhenta que lhe tenta os dias e lhe armadilha a vida. Será forte nos lutos e nas alegrias.

É a filha dos homens, a filha da terra. Sem poderes mágicos, nem poções, nem encantos de mil anos de vida. Terá de viver a curta existência e fazer dos poucos dias a eternidade. Será mãe, irmã, mulher. Forte.

Mas será tão forte no seu amor, que quase morre por não o ter. E por não querer viver sem amor nem prisioneira dos estereótipos que condenam a mulher à servidão no lar. Porque todas as Damas Brancas, as filhas da guerra e da paz, querem ser livres. E porque todas as Damas Brancas têm um Aragorn no seu destino, um amor tão impossível que a vida se torna impossível também. Mas as valorosas Damas Brancas também têm um Faramir no seu caminho, o resgate. E haverá "casas da cura" no seu destino.

Mesmo que, como em todas as linhagens, alguns frutos degenerem, mesmo assim, há em todas nós uma Senhora de Rohan.

2004-09-25

Condenação

Anoche soñé que oía
a Dios, gritándome: ¡ Alerta!
Luego era Dios quien dormía,
y yo gritaba: ¡ Despierta!


António Machado

ou

Estamos sós e sem desculpas.

Jean-Paul Sartre


Pergunto-me se há acaso, se há destino.

Acabo a pensar que a não existência de Deus fica demonstrada perante a incompetência do bonecreiro na regência do Mundo.

A omnipresença chafurda na omnimcompetência e estamos sós e não há desculpas.

Acorda Deus, se ainda existes, se alguma vez exististe!

2004-09-24

Simples

...sem ter defesa ou protecção, as nascentes do céu
ultrapassam os seus limites
ao pressagiar num sorriso o óleo das lágrimas...


Dylan Thomas - A Luz Irrompe Onde Nenhum Sol Brilha


Semeio sorrisos na esperança dos seus frutos.

Um sorriso gera um sorriso, dizem-me.

Um sorriso gera cumplicidade, dizem-me.

Um sorriso é a forma simples de dizer olá ao outro, dizem-me.

Um sorriso é a forma simples de receber um olá de volta, dizem-me.

Semeio sorrisos.

Semeio-os na esperança dos seus frutos.

São sorrisos.

Coisas simples.

Todas as coisas que semeio são simples, espero.

Semeio sorrisos simples para não ter frutos complicados.

Um sorriso.

Basta.

Simples.

2004-09-23

Sem palavras...


aqui



A palavra "vítima" é exacta, dura, inequívoca, e não precisa de adornos para exaltar a sua razão. Mas a banalidade, a versão unilateral de um grupo, acrescenta-lhe hoje a designação de "danos colaterais" e, por artes de berliques e berloques, as vítimas transformam-se em algo de indecifrável, a dor é minimizada e, com isso, o vitimador exime-se de qualquer responsabilidade.

Luís Sepúlveda - Uma História Suja



Desde o início que assumi que este blog seria sobre banalidades, as minhas banalidades. Mas não no sentido de "banalidades", tal como as encara Luís Sepúlveda. Antes no seu sentido etimológico mais profundo, o do "ban", da circunscrição feudal, sendo que eu sou aqui o feudo, o espaço é meu, as minhas palavras são o meu território.


São banalidade com berliques e berloques e, no entanto, por mais ridículo e sem consequências que o possa ser, são banalidades comprometidas. São banalidades com grau de exactidão. As vítimas, para mim, não serão nunca danos colaterais. Os palhaços vitimadores não serão nunca eufemismo.


As palavras estão banalizadas, apupadas nos seus sentidos. As palavras estão escravas de interesses e são armas com gatilhos encravados. As palavras já não explodem, implodem na mentira. As palavras - e os discursos - ganham naftalina, quando se exaurem os seus significados, se enfeitam textos que nada dizem.

Olho os discursos políticos e pergunto-me onde estão as palavras. Vejo lá as letras e os ditongos a formá-las, as sílabas, os sons representados. Mas sinto as palavras sem sentidos exactos, sem contornos de verdade. E são tantas as palavras, tantas, tantas... Em toda e qualquer entrevista, todo e qualquer comunicado à imprensa, nos debates "políticos" que já não querem saber da "polis". E o sem sentido das palavras gastas, que correm o risco de já não dizerem rigorosamente nada, que perdem exactidão, são contaminadas pelas tricas de gente que faz da palavra a arma do interesse mesquinho, comprometido, prostituído.

As minhas palavras são banais. Mas quero-as ainda exactas. Armas puras nos sentidos, capazes de dizer as coisas banais de forma inequívoca, sem vítimas e sem vitimadores. Palavras-armas sem lobbies, contra a indiferença; contra o embrutecimento. Palavras-armas contra a minha voz em fuga e o meu alheamento das causas que as vão motivando ainda...

Mas há dias em que fico sem palavras, porque as histórias são demasiado sujas. Não encontro uma sequer que consiga precisar o que sinto. Que dizer de uma mãe que mata uma filha e desata a dar entrevistas chorosas para os jornais e televisão? Não tenho mesmo palavras. Chamar-lhe "puta" - palavra mais que banalizada - não chega sequer próximo do que sinto.

2004-09-22

Uma flor...


rosa Posted by Hello


"Então a sua esposa faz anos?", perguntei. "Faz, sim, menina. Oitenta e sete." "Que idade bonita!", digo eu, com aquela sensação de que já não chego lá e de não saber mesmo o que dizer a quem já por lá passou.

"E já lhe comprou uma prenda?", trato de perguntar. "Prenda? Na nossa idade, menina? Eheheheh. Olhe do que havia de se lembrar..."


"Prenda, claro! Então porque não havia de ter prenda a sua esposa?", digo, sem entender qual era o mal. Se se aturam há setenta anos, o natural é que haja prenda. Mas o homem continua a olhar espantado para mim. "Não me diga que estava a pensar não dar prenda à sua esposa... Vá lá, passe aqui ao lado na florista e leve-lhe uma rosa".

Parece que o homem levou. E parece que fez sucesso. Eu, afinal, no dia seguinte, recebi um bonito ramo de flores e duas beijocas de uma velhinha, chorosa por entre sorrisos, que só dizia: "Ai, menina, menina... Setenta anos e foi a primeira vez que ele me ofereceu uma flor. Mas fomos sempre tão felizes! Só não me tinha dado ainda uma flor."

Isto de deitar conversa fora tem muito que se lhe diga. E as surpresas, às vezes, são mesmo muito agradáveis. E quase me sinto culpada da descontracção com que fiz aquele homem ir comprar uma simples rosa. Como se me tivesse imiscuído nos nós entrançados da eternidade. Setenta anos!

Leva-me a pensar como somos todos mal habituados nestas coisas de relacionamentos e como, facilmente, fazemos de uma data uma cobrança. Setenta anos é uma eternidade. E setenta anos de felicidade parece-me algo inimaginável. Ser ainda capaz, ao fim desse tempo todo, de ver numa rosa um acontecimento, quase me faz ter pena de mim. Ter sido eu a causadora da mudança, quase me faz chorar.

(Não consigo deixar de ter inveja de toda a felicidade que me parece dolorosamente simples...)

Promessas

Às rosas e outras coisas especialmente cheias de promessas...

Rainer Maria Rilke - Primeira Elegia


Há dias em que mesmo promessas não cumpridas nos deixam um sorriso nos lábios. Porque sabemos que, em breve, a desforra trará consigo um doce sabor de mel, ou outras coisas plenas de meiguices...

2004-09-21

Gerações

A VIDA AOS 10 ANOS... O QUE MUDOU ENTRE DUAS GERAÇÕES:


GERAÇÃO HEIDI:

Têm hoje 30 anos, ou à volta disso. Chamavam-se Anas "qualquer coisa..." (especialmente Cristina, Filipa, Rita ou Sofia). As outras eram Carla, Sandra ou Sónia. Os rapazes eram João "qualquer coisa..." (geralmente Pedro, Nuno ou Paulo) ou Luís Miguel. Muitas mães eram domésticas e levantavam-se mais cedo para enfiarem almôndegas à força nos termos da escola. As que não eram, andavam muito ocupadas nas manifestações e davam dinheiro para comer na cantina. Principal preocupação dos pais: que os filhos dessem em doutores. Pequeno almoço: papa de qualquer coisa, se possível com leite gordo e muito açúcar, ou então café com leite. Lanche: uma carcaça mole ensopada em doce de morango ou marmelada. Comida da cantina: carne assada com massa, bife com massa ou jardineira. Levava-se para a escola: uma mochila verde tipo tropa com fechos de cabedal que encaracolavam no segundo dia e com as inscrições dos grupos favoritos: Duran Duran, Spandau Ballet... havia uma régua espetada nos dias das aulas de desenho. Pesavam toneladas. Não se conseguia encontrar os livros escolares. Estavam sempre esgotados porque eram os mesmos para toda a gente. Havia quem os forrasse para passarem para o irmão mais novo no ano seguinte. Na papelaria da esquina comprava-se 1 embalagem de marcadores, 1 afia, 1 borracha, 1 esquadro e era suposto que desse para todo o ano. Na ginástica, usava-se sapatilhas brancas e fatos de treino azuis escuros, encarnados ou verdes com uma risca branca e uns fechos muito desconfortáveis que faziam uma marreca à frente. E andava-se com aquilo o dia todo. Nas aulas: faziam-se cadernos de autógrafos a dizer: "Nas ondas to teu cabelo, ensinaste-me a nadar/Agora que és careca, ensina-me a patinar". Passavam-se papelinhos. Nas férias: iam para a casa dos avós ou eram deixados à balda. Vestia-se aquilo que viesse à mão. Blusas verde-eléctrico com golas de bico, calças de bombazine com joelheiras. As meninas podiam ter aplicações de malmequeres de pano, vestiam saias de pregas sem nenhuma forma e sapatos rasos com lacinhos. Ambos: pull-overs às riscas, camisolas tricotadas pelas mães dois números acima, kispos (que deveriam durar quatro anos, no mínimo) galochas amarelas e botas caneleiras. Não havia a Zara. Era normal ser-se muito feio aos 10 anos. Trocavam-se cromos das Maravilhas da Natureza, da Kate Greenaway ou da caderneta do Benfica. Em casa brincava-se às bonecas, aos carrinhos e com os bonecos dos estrunfes. Jogava-se ao jogo da Glória e ao Monopólio. Batia-se nos irmãos. Com os amigos, andava-se de skate, jogava-se ao elástico, o bate-pé e ao quarto-escuro. Alguns ficavam na rua a tarde toda a jogar à bola e a andar de bicicleta. Lia-se: "A Condessa de Ségur", os "Cinco", as "Gémeas do Colégio de Santa Clara" e a "Patrícia", a "Mónica", a "Mafaldinha" e o "Asterix". Os rapazes liam o "Michel Vaillant". Na televisão via-se a "Abelha Maia", a "Água Viva" e o "Espaço 1999" (em reposição contínua), o Vasco Granja com desenhos animados checoslovacos que ensinavam a atravessar a rua, a "Pantera Cor-de-Rosa" e o "Professor Baltazar". Aos domingos, o Júlio Isidro, o "Sítio do Pica-Pau Amarelo", "Dallas", o "Homem da Atlântida", os "Marretas" e os "Anjos de Charlie". No cinema: "7 noivas para 7 irmãos", "Sissi", o "ET", a "Música no Coração" pela 2934484 vez, e "Os malucos" em outras fases da sua existência. Ídolos: O Chalana, os Queen, Duran Duran, Bruce Springsteen, Brian Adams, Sheena Easton e Bob Geldolf. O que se vai recordar: esfregar a sola dos sapatos novos no passeio. A bola de comida de termo no prato. Verdade ou consequência. Os Porcos no Espaço. A tiara de lata da Supermulher, as barbatanas entre os dedos do Patrick Duffy. Os pacotes de Belinhas.


GERAÇÃO POKEMON:

Têm hoje 10 anos ou por volta disso. Chamam-se Joana, Inês e Filipa. Ou então, Marta, Mariana, Madalena ou Rita, sem falar na Cátia e na Vanessa, claro. Os rapazes são André, Tiago, Bernardo, Fábio ou Marco. As mães trabalham até às 8 da noite, passam duas horas paradas no tabuleiro da ponte a ouvir a Rádio Nostalgia ou a pensar na vida e sabem que descongelar é uma arte. Principal preocupação dos pais: que os filhos não dêem em drogados. Pequeno almoço: qualquer coisa que tenha crocante, chocolate e brinde escrito no mesmo pacote. Lanche: donuts, batatas fritas, tiras de milho frito ou snacks de chocolate. Comida da cantina: carne assada com massa, frango com massa ou bife com massa. Levam para a escola uma mochila de rodinhas. Ou, então, mochilas impermeáveis de marca, pretas ou azuis escuras. Continuam a pesar toneladas. Em Setembro vão ao corredor do hipermercado que diz "Regresso às Aulas" e compram milhares de canetas, aguarelas e lápis de cera. Têm coisas sofisticadíssimas dentro do estojo, principalmente as meninas: borrachas com cheiro a tangerina, elásticos e fitas de cabelo, autocolantes minúsculos e pulseiras. Na ginástica, as meninas vestem tops e calças de lycra. Os rapazes, calções. Ambos: ténis de sola fluorescente e que não digam "Made in Indonesia". Nas aulas: jogam Gameboy e mandam mensagens pelo telemóvel. Nas férias: vão para campos de férias moer o juízo aos animadores ou passam 15 dias em Inglaterra a estudar Inglês. Os mais sortudos vão para casa de um amigo. Ambos vestem calças e sweat-shirts com t-shirt por baixo e ténis de camurça. As meninas usam brincos, pulseiras, borboletas autocolantes para espetar no pescoço, molas, ganchos, malinhas, gel fluorescente. Há calças especiais para as meninas, mais justas em cima. Todos os anos (algumas todos os dias) têm roupa nova. Não é suposto andarem andrajosos, nem no recreio. Conhecem-se as tendências internacionais. Há marcas que usam e outras que só por cima do seu cadáver. Dois anos depois, tornam-se dread. Trocam-se cartas do Pokémon e brindes dos pacotes de batatas fritas. Quem pode, joga computador e fala num chat da Internet até às 4 da manhã. Vê-se televisão. Bate-se nos irmãos (é bom ver que algumas coisas não mudam). Nunca se brinca na rua porque se pode ser raptado por um pedófilo. O tempo que não se está na escola, está-se no inglês, na natação, no taekondo, no kickboxing ou, então, em casa a olhar para o ar. Lêem: a colecção "Uma Aventura" e outros autores portugueses. Os "Arrepios". "O Clube das Amigas". Os mais intelectuais já se atiram ao Harry Potter. Na televisão vêem: tudo o que os adultos vêem. Filmes de terror e desenhos animados (às vezes são a mesma coisa). O "Ranger do Texas", o "Querido Professor", o "Zip Zap" e os programas de videoclips. Há quem ainda veja o "Batatoon" por saudades, embora não confesse. Quem tem TV Cabo ainda vê o Cartoon Network e o Panda. Muitos têm toneladas de cassetes com filmes da Disney. No cinema vêem: "O Professor Chanfrado", "Missão Impossível", e tudo o que tenha um carro a perseguir um camião (os rapazes) e Tom Cruise a perseguir quem quer que seja (as meninas). Ofendem-se quando os querem levar aos desenhos animados, embora depois gostem. Ídolos: o Figo, os Anjos, os d’Arrasar, o Miguel e o André. Também há a Britney Spears e a Jennifer Lopez, os Backstreet Boys e todas as bandas de adolescentes que parecem agricultores suecos do século XVIII. O que se vai recordar: ainda não se sabe. Embora alguns falem no cheiro dos ténis do irmão.



Enviaram-me isto por e-mail aqui há uns tempos, esquecendo-se de mencionar quem escreveu e de que revista é... No entanto, é tão divertido que não resisto a partilhar. Tal como dizia quem me mandou este mail, isto vai directinho para todos os trintões ou os que andam lá perto (27, 28 anos...).


Se alguém souber quem foi o autor desta "pérola", eu agradecia a informação.

Time

Oh yeah
In France a skinny man
Died of a big disease with a little name
By chance his girlfriend came across a needle
And soon she did the same

At home there are seventeen-year-old boys
And their idea of fun
Is being in a gang called The Disciples
High on crack, totin' a machine gun

Time Time

Hurricane Annie ripped the ceiling of a church
And killed everyone inside
U turn on the telly and every other story
Is tellin' U somebody died

Sister killed her baby cuz she could afford 2 feed it
And we're sending people 2 the moon
In September my cousin tried reefer 4 the very first time
Now he's doing horse, it's June

Times Times

It's silly, no? When a rocket ship explodes
And everybody still wants 2 fly

Some say a man ain't happy
Unless a man truly dies
Oh why

Time Time

Baby make a speech, Star Wars fly
Neighbors just shine it on
But if a night falls and a bomb falls
Will anybody see the dawn

Time Times

It's silly, no?
When a rocket blows
And everybody still wants 2 fly

Some say a man ain't happy truly
Until a man truly dies
Oh why, oh why

Sign O the Times

Time Time

Sign O the Times mess with your mind
Hurry before it's 2 late
Let's fall in love, get married, have a baby
We'll call him Nate... if it's a boy

Time Times


Prince - Sign O the Times


Passada uma série de dias, esta é a música, a letra, que não me sai da cabeça.

Tenho mesmo de parar de ver as notícias...

2004-09-20

Insónia


Espera-me uma insónia da largura dos astros,
E um bocejo inútil do comprimento do mundo.

Álvaro de Campos – Insónia


Olhos de mocho cegos pela luz, iludem-se de sombras e negrume. Esgueiram-se pelos espaços da penumbra, buscam o brilho lamparina, os rosas da alvorada. As horas sucedem-se. No escuro.

Na TV, um qualquer sorriso pepsodent sujeita a mente a ser infiltrada e iludida de chamamentos de compras fáceis e inúteis, promessas fast-food com digestões inacabadas. O livro para onde se salta queima-nos os olhos; e sentem-se as palavras a bailarem por entre linhas cada vez mais borrões, soletram-se ideias com inferior perícia que um rato de laboratório, esquece-se o início da frase no permeio da cefaleia atordoante.


O relógio estancou na madrugada. O Sol esqueceu-se da caminhada que nos prometeu. A Lua é um traço envergonhado no céu.

As voltas sucedem-se entre lençóis enrodilhados, almofadas que ganham gumes, o silêncio que nos golpeia os tímpanos com o clamor da noite, os pensamentos absurdos que não se conseguem amordaçar, o latejar de todos os fantasmas nas têmporas.

Exaustão, por fim. Estendem-se os braços, estendem-se as pernas, estende-se o silêncio... O relógio volta a encontrar passo. Rasgos de luz comecem a irromper pelo meio dos espaços. A penumbra ganha volume. As sombras retraem-se. O dia recomeça por entre a neblina.

(É hora de acordar. E não dormi. E a neblina instala-se em mim.)

2004-09-19

Pés cansados

Are you ready, boots?
Start walkin'


Nancy Sinatra – These boots are made for walking


Estava aqui a pensar como temos as diferentes partes do corpo como que assumidas. A língua quase se esquece, até uma afta nos recordar que também ela tem terminais nervosos. Os braços são olvidados, até não podermos usar um deles e a troca de roupa passar a ser um pesadelo. O nariz é algo que não existe, até uma constipação nos demonstrar como só respirar pela boca é complicado. As pernas viram instrumentos negligenciados, até nos prenderem a um sofã e nos condenarem a ver todos os Gouchas da TV made in Portugal...

Contamos com que as partes que fazem o nosso corpo lá estejam, funcionais. Usamos e abusamos delas, sem lhes prestar realmente atenção. Até que, por um mero acaso, algo acontece e nos obriga a ponderar o seu real valor. Os pés serão, julgo, uma das partes mais desprezadas. Sustentam-nos, levamo-nos e, no entanto, quase não lhes damos importância. Admito que, muitas vezes, só me lembro deles quando penso que sapatos quero calçar. E que, outras tantas, os sapatos que escolho, têm muito pouco a ver com as necessidades dos pés e muito mais a ver com a restante toilette.

Depois, de surpresa, temos de passar a inclui-los no quotidiano. Os pés passam a reclamar para si o quinhão mais que justo da nossa atenção. Assim, uma semana caótica, recordou-me demasiadas vezes que tenho pés, que preciso deles, que existem. Ainda continuo à espera para saber como lhes agradar, que concessões vão passar a impor ao meu quotidiano. E serei obrigada a faze-las. Eu preciso mais de uns pés funcionais do que de uma série de vícios mais ou menos assumidos. Ainda que custe. Ou que vá custar. Dois cafés a menos serão um pesadelo. Mas os pés merecem. Largar o tabaco talvez seja impossível, mas farei, pelos meus pés, o esforço hercúleo de controlar o vício. E tratarei de ser racional na comida, mesmo que ache que o médico está louco quando me manda comer ao pequeno-almoço. Já vejo no horizonte o pronuncio da dieta. E se me recuso a ela para alinhar pelo padrão bulímico do prêt-à-porter, não tardarei a segui-la com mais fidelidade do que um discípulo do Islão convertido ao fanatismo à Ben Laden para resgatar os meus pés.

No entretanto – e enquanto a obrigatoriedade não me é imposta – vou abusando com o frenesim de quem gasta os últimos cartuchos. Ontem foram cigarros acendidos em cigarros, um maduro tinto de fazer água na boca, o molho, o queijo, as azeitonas. E foram, especialmente, cinco horas em cima dos meus pés, a dançar. A dançar à moda antiga, quando se ia sair para dançar. Quando havia onde ir dançar, em lugar de deixar que um som pastilha nos moa os ossos até ao tutano. Cinco longas, fantásticas horas, de boa música, muito boa música.

Quase desejava não ter pés. Não os sentir assim, por inteiro, a mandarem-me hoje no resto do corpo. Mas ontem, no Triplex, com os Zig Zag Warriors a combinarem os sons de forma a fazer inveja a qualquer antro que abre as portas pelas madrugadas, pedi por uma vez mais perdão aos pés e larguei-me na aventura de abusar e voltar a abusar do prazer de dançar.

2004-09-18

Olhos


olhos Posted by Hello


Hoje vou andar de olhos fechados o dia inteiro e com um sorriso parvo nos lábios. Vai parecer estranho? Nem quero saber. Hoje é assim. E é bom!

2004-09-17

Choques e Pára-Choques

50-60-70-80-90-À HORA
90 à década vamos embora vamos embora!

Rui Reininho – Choque Frontal


Bati uma vez de carro. Bem, não é bem isso. Mas bater a sério, daquelas que temos de declarar culpa e participar ao seguro, foi mesmo só uma. Não conto no rol, portanto, todas as vezes em que encostei o pára-choques ao pára-choques do tipo que me apertou. Essas, confesso, fi-las até com um certo gosto, especialmente se o alvo do encosto tinha pinta de ser carro novo, caro e bem lustroso.

Confesso, também, que a única vez que bati o fiz em grande estilo, tendo danificado irreparavelmente - com direito a substituição integral, como até hoje me recorda o meu seguro automóvel - o pára-choques do corsa da brigada anti-crime. Carro à paisana, portanto, que resolveu travar em cima do cruzamento, imediatamente à minha frente, para deixar um velhinho atravessar a rua. E eu a ver se vinha algum da direita e... pimba! Sem desculpas.

Mas já me senti várias vezes alvo da falta de travões, atenção ou qualquer outra treta de vários outros automobilistas. Desde o ceguinho do condutor de um autocarro que, por mais que eu lhe apitasse e berrasse que não tinha espaço para a manobra, resolveu teimar e levantou-me a traseira do carro meio metro no ar, até a uma senhora (muito) distraída que resolveu meter marcha atrás e recuar sem se dar ao trabalho de ver se havia alguém atrás. Havia. Azar. Eu e o meu bólide, que ficou com as trombas em frangalhos.

Isto tudo a propósito da minha irmã, que se viu hoje envolvida num acidente múltiplo na A1. Se todos os carros tratam de abrandar, se todos os carros ligam os quatro piscas, se todos os carros param à nossa frente, que fazemos? Abrandamos, ligamos os quatro piscas e paramos. Assim fizeram os carros que estavam à frente da minha irmã. Assim fez a minha irmã. Assim fez o carro que estava imediatamente atrás da minha irmã. E que fez o senhor do volvo? Esteve-se a marimbar para isso tudo e levou todos os outros à frente. Marimbou-se para toda a gente. Destruiu 3 carros e o volvo. Os reboques ainda hão de estar em serviço...

Parece que há sempre um imbecil dentro de um carro de grande cilindrada nas estradas portuguesas...


Ah! O autocarro era volvo. E o carrinho da senhora também.

Odeio volvos!

2004-09-16

Silêncio

Un papel desvelado en su blancura.
La hoja blanca de un álamo intachable.
El revés de un jazmín insobornable.
Una azucena virgen de escritura.

El albo viso de una córnea pura.
La piel del agua impúber e impecable.
El dorso de una estrella invulnerable
Sobre lo opuesto a una paloma oscura.

Lo blanco a lo más blanco desafía.
Se asesinan de cal los carmesíes
Y el pelo rubio de la luz es cano.

Nada se atreve a desdecir el día.
Mas todo se me mancha de alhelíes
Por la movida nieve de una mano.

Rafael Alberti - Un papel desvelado en su blancura


Hoje não me apetece escrever, confesso. Tenho uma música a tocar baixinho, um cigarro entre os dedos e mil e umas futilidades a bailarem-me no pensamento. Não é que não me apeteça escrever, no sentido de dar resposta. Isso já fiz hoje, aqui bem abaixo. Muito. Tanto que talvez tenha esgotado as palavras por hoje. Ou, se calhar, só não me apetece escrever sobre futilidades enquanto, baixinho, toca esta música. Mas também não é bem só dar resposta. Porque já andei a espreitar muitas "casas" e não me apeteceu responder a quase ninguém. Talvez seja mesmo da música que, aqui ao lado, vai tocando baixinho. Enche-me de paz, de espaço. Leva-me em ondas, faz-me beijar praias de silêncios e harmonia. Toca baixinho uma música, sem futilidades. Baixinho, baixinho. Quase em silêncio. No silêncio onde, depois disto, vou depor por hoje as palavras.

2004-09-15

A morte saiu à rua

A morte
Saiu à rua
Num dia assim...

Zeca Afonso


Ele, português. Ela, espanhola. Conheceram-se, apaixonaram-se, casaram. Não sei se o romance foi bonito ou feio. Não sei se eram felizes ou não. Ele, português; ela, espanhola. Ela ficou grávida. Ele deve ter ficado contente. Ela quis ir ter o filho a Madrid, perto da família. Ele ficou por cá, talvez a trabalhar. E nasce o filho e ele abala para Espanha para o conhecer. E conhece. E deve ter ficado feliz. Mas tinha de voltar, tinha de ir trabalhar. Sustentar a família. Ele português. Ela espanhola. E um pequeno, feito de pedaços dos dois.

E o IP4 cobrou mais uma vida. A dele, o português, que vinha de Espanha de conhecer o filho. O filho dele, português. O filho dela, espanhola. A criança que era filha de dois e agora não tem pai.

Obscenidades

Viajo no teu corpo. Só teu corpo?
Mas quão breve seria essa viagem
Se no limite dela a alma nua
Não me desse do corpo a certa imagem.


José Saramago



Tradicionalmente, as mulheres são sujeitas passivas de dichotes mais ou menos explícitos de carácter mais ou menos ostensivamente sexual. Os trolhas a mandarem bocas do alto dos andaimes não serão o exemplo menos reconhecível, por certo. Como se lida com isto? Não se lida. Ponto. Não se ouve, não se liga, não aconteceu.

Depois, há a forma como notamos que somos olhadas, analisadas, pesadas e comentadas por grupos de 2, 3, 4 gajos sentados no canto do café. E o mesmo tipo de dichote, agora já não berrado, antes dito no tom suficientemente audível para ser percebido enquanto caminhamos para a casa de banho, é já bem capaz de nos causar a curiosidade suficiente para olhar melhor e tentar perceber se é mesmo um desperdício um gajo tornar-se assim óbvio.


Não sei… talvez seja uma coisa minha, que gosto de pessoas inteligentes e, portanto, os comentários que acho sexys são os comentários inteligentes, os trocadilhos, os duplo sentidos. Alguém a berrar-me "oh boa!" nunca terá qualquer efeito.

Uma das coisas interessantes na liberação feminina foi ter legitimado às mulheres o direito a mandarem bocas também, a poderem comentar alto e bom som os atributos do sexo oposto, a transformarem o sexo oposto em objecto. E hoje também nós podemos berrar "oh bom!" Mas também não me agrada, ainda que ter a liberdade para o fazer me agrade, sem dúvida.

É que este berrar obscenidades básicas, mesmo que desperte a curiosidade, não terá de ser nunca levado a sério. O sexo hoje é demasiado explícito em todos os sentidos. Nada contra o sexo explícito. Não sou pudica. Mas a forma explícita como se tenta chegar a ele faz-me confusão: os engates básicos, as bocas em tom de frase feita e sem magia, o propor sexo sem sequer se saber se beijar aquela boca vai saber bem…

E desperta curiosidade? Provavelmente. O nosso corpo recorda o prazer, ainda que seja necessário que a mente reconstrua esse prazer para o adaptar ao dia-a-dia. Mas daí até uma boca obscena conseguir afirmar-se como afrodisíaco...

Questiono-me se algum de nós quererá ser só, por mais satisfatório que momentaneamente isso pareça ou seja, o dildo particular de outra pessoa. Por curiosidade, necessidade física, ego, seja o que for, transformarmo-nos em objecto dar-nos-á, em última análise, um mero alívio físico. No fim, cada um de nós descobrirá que isso não basta. Mesmo que também não faça mal nenhum…

2004-09-14

Memória

A vida descostura, o homem passa a linha, a corrigir os panos do tempo.

Mia Couto, in "A Adivinha"



Conta-me.
Conta-me o que se calou ainda.
Conta-me a memória, os sorrisos, a doçura.
Põe a música certa a tocar e conta-me.
Conta-me o sentido, o racionalizado.
Conta-me das histórias, dos equilibrismos.
Faz-me um desenho, uma pintura.
Diz-me como estava o céu,
como brilhavam as estrelas,
como já se ia embora Vénus
e a aurora raiava o negro de rosas e amarelos.
Diz-me como foi o dia,
aquece-me desse mesmo sol.
Conta-me das metamorfoses, dos crescimentos,
dos pés já doridos, dos sonhos acordados.
Conta-me.
Não esqueças nem um pormenor,
um pensamento, um fio.
Conta-me.
Preenche cada espaço, soletra cada letra.
Não te enganes nos ondes,
nos quandos, nos porquês.
Conta-me.


Recorda, agora, memória.
Conta-me tudo o que já começo a esquecer.

Flores


Flores Posted by Hello

Hoje basta-me a beleza das flores.

Hoje o dia acordou cinzento e, ainda assim, faz sol em mim...

Desejo

Ven. Ven. Así. Te beso. Te arranco. Te arrebato. Te compruebo
en lo oscuro, ardiente oscuridad, abierta, negra, oculta derramada
golondrina, oh tan azul, de negra, palpitante. Oh así, así, ansiados,
blandos labios undosos, piel de rosa o corales delicados, tan finos.
Así, así, absorbidos, más y más, succionados. Así, por todo el
tiempo. Muy de allá, de lo hondo,
dulces ungüentos desprendidos, amados, bebidos con frenesí, amor
hasta desesperados. Mi único, mi solo, solitario alimento, mi húmedo,
lloviznado en mi boca, resbalado en mi ser. Amor. Mi amor. Ay, ay.
Me dueles. Me lastimas. Ráspame, límame, jadéame tú a mí,
comienza y recomienza, con dientes y garganta, muriendo,
agonizando, nuevamente volviendo, falleciendo otra vez, así por
siempre, para siempre, en lo oscuro, quemante oscuridad, uncida
noche, amor, sin morir y muriendo, amor, amor, amor, eternamente.

Rafael Alberti - Ven, Ven, Asi, te beso...


…estivesses tu aqui hoje e tenho a certeza que a noite seria grande, quente, partilhada; que seria capaz de, por algumas horas, me esquecer do mundo e de mim, capaz de fazer de umas poucas horas um casulo de ausência, para nos fecharmos e esquecermos da realidade que, teimosa e inevitável, estaria do outro lado da porta na manhã seguinte...

2004-09-13

Relógios

El Tiempo
tiene color de noche.
De una noche quieta.

Sobre lunas enormes,
la Eternidad
está fija en las doce.
Y el Tiempo se ha dormido
para siempre en su torre.
Nos engañan
todos los relojes.

El Tiempo tiene ya
horizontes.


Frederico Garcia Lorca - Meditación primera y última


Há dias em que os minutos são horas e sinto a alma parada no tempo à espera não sei de que milagre para pedir licença para voltar a nascer.

Há dias em que queria ser caracol, tartaruga, búzio, levar a casa às costas e poder fugir para um qualquer ventre e deixar o tempo passar.

Há dias em que o relógio se arrasta numa sucessão de punhaladas cronometradas e o ponteiro parece um louco que baila numa contradança de dois para cá dois para lá, sem se mover.

Há dias em que sou enganada por todos os relógios e só me resta dormir e sonhar com cucos silenciosos e pêndulos amordaçados.

Há dias em que o Tempo tem horizontes, mas não os partilha comigo.

2004-09-12

Blue

Everyone can relate to a broken heart. Few artists can articulate the feeling of a broken heart better than Spain. There really should be a label on their debut release The Blue Moods of Spain warning that listening to the album may cause distressing emotional disturbances.

James Goldsmith and Beth Aigner – The Online Daily of The University of Washington, 96/05/23


The Blue Moods of Spain, Restless Records, 1995 Posted by Hello

(All songs written by Josh Haden)


Para ouvir com moderação!

"E tende cuidado, não vos faça mal..."

(o Caetano foi mesmo só para enganar...)

De Janela Aberta

Sim, eu poderia abrir as portas que dão pra dentro
Percorrer, correndo, corredores em silêncio
Perder as paredes aparentes do edifício
Penetrar no labirinto
O labirinto de labirintos
Dentro do apartamento
Sim, eu poderia procurar por dentro a casa
Cruzar uma por uma as sete portas, as sete moradas
(...)

Caetano Veloso – Janelas Abertas

Cheguei aqui de janela aberta. Uma janela aberta para o precipício e uma janela aberta para a salvação. Cheguei aqui com uma música, rasgando os silêncios em mim.

Outubro marca uma data que me dói. A data em que quase perdi uma amiga por causa das tricas da net. A amiga que sempre foi janela em mim e para mim. A amiga que teve a coragem para me chamar cabra, quando o estava a ser, pelos vistos. E, no entanto, até hoje, não julgo que o tenha sido. A amiga, a única talvez, que me poderia ter magoado.

Três meses. Três doloridos, longos meses. Sem parabéns, que não lhos dei o ano passado. Sem desejar bom Natal. E a minha janela a fechar-se. E a abrir-se também ao mesmo tempo. Sem fugas, dessa vez.


Não sei ser boa pessoa (ainda que o seja, tanta vez). Sou cheia de defeitos. Tenho-os entranhados, mergulho neles. Converto os defeitos em forças. Faço bandeiras. Levo tudo à frente quando me sinto injustiçada. Sou motor, quando tenho causa. Detesto que me confundam com as palavras doces que sei dizer. Que sinto. Porque também não sei ser má pessoa (ainda que o seja vezes demais).

A net afunila-nos os limites, confunde palavras com gestos, despe as palavras dos sorrisos, tece-se de entrelinhas fabricadas, não nos pisca o olho, nem quando o smile lá está. Ao fim de uns tempos, já nem o que lá está se lê. Lê-se a intenção, rebuscam-se mensagens, perdemo-nos no subtexto, mesmo quando nem subtexto há.

Ando há meses a cirandar pelos blogs, reconhecendo muita gente. A gostar de ver as forças de tantos e as limitações de uns poucos. Dou comigo novamente de janela aberta, janela aberta para o precipício, janela aberta para a salvação.

Ao fim de uns tempos, resta-me a intuição. Tenho-a, neste momento, em estado ainda dormente, a temer confiar nela. E, no entanto, ao olhar para trás, sei que foi ela que já me salvou. Como sei que fui salva por um telefonema na tarde da passagem de ano. O telefonema que nem estava à espera. A mensagem que nem ia enviar.

Mas comecei o ano com um abraço forte. Um abraço tão forte que ainda o sinto. E estou, ainda, de novo, sempre, de janela aberta, de coração aberto para uns quantos, que, depois de passada a tormenta, ainda conto no grupo de amigos.

Há uma amiga a quem devo uma prenda de anos. Há uma amiga a quem devo uma prenda de Natal. Há uma amiga que nunca mas vai cobrar. Suspeito que, em Janeiro, saldamos umas quantas dívidas.

Há uma amiga que é um outro eu meu, versão desvairada, talvez, mas muito mais lúcida e inteira do que eu. Eu não sei ser boa pessoa. Ela não precisa saber. É-o, mesmo quando se engana. Faz de mim alguém melhor.

Ando por aqui por culpa dela. A janela aberta é nossa. Os Spain ainda tocam, vão tocar sempre...
O Caetano foi só para enganar.

2004-09-11

O Mundo continua amortalhado


11 de Setembro Posted by Hello
Joaquim Leite - "11 de Setembro" - Óleo sobre Tela

(a imagem aqui e vale a pena ver o resto)


Em 2001, todas as esperanças de uma década afundaram-se em fogo e escombros, em corpos que voavam de janelas, em rostos pintados de horror.

Nos anos seguintes, o horror doméstico foi feito bandeira planetária, numa escalada sem sentido e sem fim previsto.

"Gaia" arde ainda...

2004-09-10

Mitologia

o amor é em si um mito divinizador: amar o amor é idealizar e adorar. Neste sentido todo o amor é uma fermentação mítica.

Edgar Morin - O Paradigma Perdido


E, assim sendo, estou condenada ao misticismo.

Parafraseando Miguel Torga, eu, mística, me confesso.

Afinal e apesar de tudo, mais não quero que amar e ser amada.



(Nada é a preto e branco. Até eu me resolvo a ver a cores. A vida como um livro de colorir. E bastará um dia.)

2004-09-09

Tiny Tears

You've been lying in bed for a week now
Wondering how long it'll take
You haven't spoken or looked at her in all that time
It's the easiest line you could break

She's been going about her business as usual
Always with that melancholy smile
But you were too busy looking into your affairs
To see those tiny tears in her eyes

Tiny tears make up an ocean
Tiny tears make up a sea
Let them pour out, pour out all over
Don't let them pour all over me

How can you hurt someone so much your supposed to care for
Someone you said you'd always be there for
But when that water breaks you know you're gonna cry, cry
When those tears start rolling you'll be back

Tiny tears...

You've been thinking about the time, you've been dreading it
But now it seems that moment has arrived
She's at the edge of the bed, she gets in
But it's hard to turn the opposite way tonight

Tiny tears...


Tindersticks


Cá está ela... A música das músicas, a que foi a "minha música" tantos anos que lhes perdi a conta. E a voz do Stuart e a pose em cima do palco, por entre o fumo de cigarros sucessivos. E a companhia, as companhias... E as viagens, Vilar de Mouros, Coimbra, Lisboa, onde calhasse sabe-los. E saber ainda que era mais um concerto que não podia perder...

Mesmo lágrimas pequenas fazem um oceano, fazem um mar.

Mesmo quando se ama muito alguém, conseguimos magoar. E o tempo que já não há para o nosso bem-querer, tempo que se desperdiça em acasos e programas e ocupações e uma agenda sempre demasiado ocupada para aquilo que verdadeiramente importa.

Mesmo as lágrimas pequenas fazem um oceano, fazem um mar.

E é então, como que num lampejo, talvez por uma epifania, que
nos resolvemos a olhar, olhar mesmo, o que está ali debaixo do nosso nariz e há demasiado tempo não éramos capazes de ver. Porque há dias em que nos é impossível olhar para o outro lado, já que o risco de nos perdermos a nós mesmos é intolerável.

Até as lágrimas pequenas são salgadas. Até as lágrimas pequenas fazem um oceano, fazem um mar.

E, por sorte – uma sorte maravilhosa, a que nos esquecemos de dar valor – nem todas as lágrimas pequenas, as tais que fazem um oceano, que fazem um mar, são lágrimas de tristeza.

(Talvez tudo não passe de obra de um duende. Há um que é culpado, pela certa!)

Praia


Pôr do Sol Posted by Hello


Mudaram o rosto à praia da minha infância, quase não a reconheço.

Depois sento-me e olho, olho, olho... o pôr-do-sol ainda é o mesmo.

É! A nossa única riqueza é ver...

2004-09-08

Quero imaginar um Sísifo feliz

Os deuses tinham condenado Sísifo a empurrar sem descanso um rochedo até ao cume de uma montanha, de onde a pedra caía de novo, em consequência do seu peso. Tinham pensado, com alguma razão, que não há castigo mais terrível do que o trabalho inútil e sem esperança. (...)

Se este mito é trágico é porque o seu herói é consciente. Onde estaria a sua tortura se a cada passo a esperança de conseguir o ajudasse? (...) Sísifo, proletário dos deuses, impotente e revoltado, conhece toda a extensão da sua miserável condição: é nela que ele pensa durante a sua descida. A clarividência, que devia fazer o seu tormento, consome ao mesmo tempo a sua vitória. Não há destino que não se transcenda pelo desprezo.

(...) Toda a alegria silenciosa de Sísifo aqui reside. O seu destino pertence-lhe. O seu rochedo é a sua coisa.

Albert Camus – O Mito de Sísifo


Não somos sujeitos passivos da História. Por mais embrutecidos que nos faça o quotidiano, ainda assim, não contemplamos apenas. Cada uma das nossas acções tem repercussões, tem consequências. Um sujeito passivo demite-se. Um sujeito activo sabe que a demissão não é sequer uma opção.

Todos nós temos que carregar os nossos calhaus, encosta acima, para depois vê-los rebolar novamente para baixo. É o nosso destino, a nossa pena perpétua. Todos os dias um novo calhau e um chegar que nunca chega a ser chegar algum, ainda que seja a meta de cada dia.

Mas o entusiasmo com que carregamos a nossa pedra faz de nós um ser mais ou menos feliz. O entusiasmo e a consciência. Porque não nos podemos demitir. Porque o nosso rochedo é a nossa coisa. Porque assim vencemos os deuses e desprezamos o destino. Sem falsas esperanças e uma alegria silenciosa no que é nosso.

2004-09-07

Bilbao


Bilbao Posted by Hello


Há espaços que nos deveriam fazer sentir mínimos devido às suas dimensões, às suas ousadias. E, no entanto, são acolhedores.

Há obras de arte moderna que suspeito que não foram feitas para serem intelectualmente perceptíveis e, no entanto, conseguimos chegar a entendê-las profundamente.

Há Bilbao e um calor abrasador e uma humidade demolidora.

Há as minhas pernas, tão cansadas. E a sede. E a vontade urgente de fumar um cigarro. E aguenta-se.

E há o museu que rasga o rio, suporta pontes, está deslocado na envolvência. E ainda assim, faz sentido.

Não tem a ver com nada. Prende-nos o olhar. Brilha. Ganha corpo. Mistura a modernidade no antigo. Emoldura-se.

Estranhamente, sinto-me em casa.

Que nos baste

Na ilha por vezes habitada do que somos, há noites,
manhãs e madrugadas em que não precisamos de
morrer.
Então sabemos tudo do que foi e será.
O mundo aparece explicado definitivamente e entra
em nós uma grande serenidade, e dizem-se as
palavras que a significam.
Levantamos um punhado de terra e apertamo-la nas
mãos.
Com doçura.
Aí se contém toda a verdade suportável: o contorno, a
vontade e os limites.
Podemos então dizer que somos livres, com a paz e o
sorriso de quem se reconhece e viajou à roda do
mundo infatigável, porque mordeu a alma até aos
ossos dela.
Libertemos devagar a terra onde acontecem milagres
como a água, a pedra e a raiz.
Cada um de nós é por enquanto a vida.
Isso nos baste.


José Saramago - Na ilha por vezes habitada


Somos um milagre e esquecemos como a vida é, em si mesma, um acaso, um lampejo de génio da natureza, uma anomalia.

No gigantismo do Cosmos, uma galáxia perdida. No recôndito dos seus braços exteriores, uma pequena estrela sem nada de original. À sombra dessa estrelinha, um pião azul e branco, ferro, rocha, poeira... Uma ilha habitada.

Erguemos os olhos para o veludo gelado e estéril dos céus e sonhamos não estar sós. À espreita, à escuta, procurando o tal contacto que pode nunca chegar. Utopias feitas contra a solidão de bicho gregário que elabora deuses e quer ser imortal.

E sonhamos caravelas novas em rotas para o infinito, enquanto a casa se faz prisão e o azul nos tortura os olhos de mocho que só sabem sonhar o impossível.

Frágeis. Únicos. Improváveis.

Não somos mais que pó. Pó de estrelas que se perdeu no lugar mais ermo. E se fez energia, movimento, reacção. Acaso, genes, enganos evolutivos que se provaram certos. Vida.

Que nos baste...

2004-09-06

Discos Pedidos

Na zoologia do fala-só
Há muitos animais de tiro
Há o tiro-liro e não só
Também o tiro-liro-ló
(...)


José Mário Branco - Tiro-no-Liro


Hoje pedi inspiração a alguém. Pedi um mote. Sempre gostei de ter motes na escrita. Nada de transcendente. Copiar uma parte de uma ideia não será plágio, não me digam o contrário. Porque nem será bem uma cópia. É uma inspiração. E se é inspiração, então tratarei de fazer de tal um elogio.

Como dizia, pedi um mote. "Cabras", foi a resposta. "Cabras das verdadeiras ou daquelas que todos conhecemos, mais tarde ou mais cedo, na vida?" E a resposta deixou-me abalada: "das verdadeiras".

Ora bolas, eu nunca vivi no campo. Sei lá como são as cabras verdadeiras! E recuso-me googuelar a propósito de cabras e bodes e quejandos.

Bem, lembro-me dos balidos quando ainda não era proibido reuni-las no jardim das Antas em vésperas de S. João, antes que uma facada a jeito as preparasse para o forno... Será que serve?

Ai! Isso não eram as cabras! Eram cabritos... Eram? Talvez fossem.

Bem, dependia dos bolsos do comprador. A carne de cabra parece que é mais dura... Mais barata? As cabras são da espécie económica da coisa? Ou isso era o anho? Ai, deuses. Sei lá eu. Até porque nunca conheci uma cabra económica nem uma cabra topo de gama.

Que raio de mote!

Era bem mais fácil falar das outras cabras, não? Tenho a certeza de que seria... Até porque não me sai da cabeça a oferta que me fizeram há uns tempitos. "Desperta a Cabra Que Há em Ti", era o nome do livrinho. Lembro-me do meu ar de parva a olhar para a capa e a pensar para os meus botões a troco de quê se devia tal oferta. Até hoje não sei a resposta, confesso. Nem quero perguntar. Não sei se já estou a caminho de cabra ou se, pelo contrário, alguém acha que não chego lá. É que nestas coisas de acordar a cabra...

Pensando melhor... Não sei ser cabra? Hum! Essa é mesmo muito estranha... Sempre pensei que a capacidade para a cabrice era assim uma espécie de dom feminino. Claro que depois, como em tudo, há as que exercem e as que não...

Admito! A estratégia de queimar o cabelo com o cigarro a figuras femininas indesejáveis sempre me pareceu uma excelente política social a manter e, quiçá, a impor sempre que as circunstâncias se tornassem propícias. Cabrice. Mas não sei se suficiente. Talvez para quem fica com a peruca às escadinhas...

Hoje não sai nada de jeito destas teclas, está visto. Lá se vai a compostura do blog à vida.

Mas há dias em que me deprimo a mim mesma. E hoje não me apetece!

carta de amor sem rumo

Dei-te a solidão do dia inteiro.
Na praia deserta, brincando com a areia,
No silêncio que apenas quebrava a maré cheia
A gritar o seu eterno insulto,
Longamente esperei que o teu vulto
Rompesse o nevoeiro.


Sophia de Mello Breyner Andresen – Espera


Queria tecer palavras doces, embrulhá-las em laços de sorrisos.

Queria fazer um poema, pai de todos os poemas, e declamá-lo só para ti.

Queria fazer uma canção que trauteássemos para sempre, talvez em lá maior, nada muito complicado.

Queria fazer simples o complicado.

Queria escrever uma carta de amor.

Mas, algures no tempo perdi o teu rumo, esqueci o teu endereço.

Oh amor, meu ideal não cumprido, estou em fuga ainda.

Só não sei se para ti...

2004-09-04

Ali ao lado...

(...)
Ahora sufro lo pobre, lo mezquino, lo triste,
lo desgraciado y muerto que tiene una garganta
cuando desde el abismo de su idioma quisiera
gritar lo que no puede por imposible, y calla.

Balas, Balas

Siento esta noche heridas de muerte las palabras.

Rafael Alberti - Nocturno



... ali ao lado, as crianças já não são reféns. São cadáveres.

Se nos fosse possível espremer o mundo, quem ainda seria capaz de não se afogar em tantas lágrimas?

Dói!

E o mundo bóia. Boiamos todos...

Calejados pela dor, indiferentes perante a sua banalização, nauseados pela fartura de purgatório, tentamos antes saber quanto custará amanhã a gasolina.

Também dói.

Até que ponto este crescer na indiferença não vai matando em nós a humanidade?

E há um louco que ainda nos promete mais quatro anos de policiamento do mundo, esquecendo que, quando tal afirma, mais dez mil soldados se juntam às fileiras do fanatismo.

E entre o fanatismo cego e a arrogância desvairada, promessas de mais lágrimas de sangue são a única certeza.

Lá pela Rússia, as "baixas aceitáveis" são um conceito diferente, como diz um amigo meu. Num teatro já o tinham demonstrado. Agora foi numa escola... Mas "baixas aceitáveis" não são mais que baixas feitas de dor e irracionalidade e fanatismo e sangue.

Sempre o sangue, tanto sangue. Já não é sangue de vida. Só morte, tanta morte, tanta mortalha.

Morrem crianças e morrem mães e morrem pais e professores e velhos e novos e...

E nós lá vamos indo, até que quase já não dói.

2004-09-02

Notícias

De facto, o Médio Oriente engloba, na sua própria singularidade, o encontro virulento de tudo o que se opõe no nosso planeta: Ocidente e Oriente, Norte e Sul, islão e cristianismo (com a interferência da nação judaica), laicidade e religião, fundamentalismo e modernismo. Eis porque o Médio Oriente não é apenas um barril de pólvora no mundo, mas, mais do que isso, o barril de pólvora do mundo.

Edgar Morin – Os Problemas do Fim do Século


Quando, em 1990, se começaram a contabilizar os resultados da "revolução antitotalitária" que varria o leste Europeu, o Mundo teve que começar a analisar um novo desafio: o degelo da guerra fria estava a "aquecer" o Médio Oriente, com prolongamentos para o Norte de África, e lançou esta região para as primeiras páginas dos jornais com a agressão de Agosto daquele ano contra o Koweit. Ainda abalado pela súbita mudança de paradigmas, vendo a "ordem antiga" desaparecer, o Ocidente reagiu, e a ONU pareceu conseguir resultados credíveis, pela primeira vez na sua história, sem interferências de vetos.
Na ânsia de encontrar um "inimigo de substituição", o Ocidente (existirá mesmo este "Ocidente" que tantos se esforçam por mitificar?) continuou até hoje a correr o risco de fazer explodir o barril de pólvora do mundo. Em troca, corremos todos o risco de implodir nas nossas misérias.


E o resultado?

Ainda se pode ouvir as notícias? Ainda conseguimos entender porque andámos há mais de dez anos a contabilizar carnificinas, a procurar agulhas em palheiros atulhados de bombas?

Não. Já não se pode ouvir as notícias. Dói ver o mundo.

... e ali ao lado até crianças são reféns.

Viagem

Pelo Sonho é que vamos,
comovidos e mudos.
Chegamos? Não chegamos?
Haja ou não haja frutos,
pelo sonho é que vamos.

Basta a fé no que temos,
Basta a esperança naquilo
que talvez não teremos.
Basta que a alma demos,
com a mesma alegria,
ao que desconhecemos
e do que é do dia-a-dia.

Chegamos? Não chegamos?

- Partimos. Vamos. Somos.



Sebastião da Gama - Sonho


Hoje o dia acordou triste.

Do céu cinzento o tempo verte umas lágrimas tímidas.

Hoje o dia nem promete.

E, no entanto, eu sonho.

Hoje vou sonhar uma partida e inventar uma viagem.

Não choro, não canto. Vou!

2004-09-01

Anjos

I can fly
But I want his wings
I can shine even in the darkness
But I crave the light that he brings
Revel in the songs that he sings
My angel Gabriel

I can love
But I need his heart
I am strong even on my own
But from him I never want to part
He's been there since the very start
My angel Gabriel
My angel Gabriel

Bless the day he came to be
Angel's wings carried him to me
Heavenly
I can fly
But I want his wings
I can shine even in the darkness
But I crave the light that he brings
Revel in the songs that he sings
My angel Gabriel
My angel Gabriel
My angel Gabriel


Lamb


Toca agora.

Invoca mil imagens. Subtrai outras tantas. Lembra-me coisas boas e coisas menos boas. Povoa-me de esperança, faz-me sonhar com o céu e com a chuva.

O meu anjo, cheio de luz. Os nossos anjos. Doces ilusões, construções que nos aquietam os sentidos e o coração.

Em todos os momentos piores da minha vida, sempre encontrei forças em mim que nem suspeitava que existiam. E sempre tive um anjo de plantão. Um anjo que me deu um ombro, me deu um abraço, me deixou prender-lhe os dedos com toda a força. E assim fiz.

Tenho uma história povoada de anjos. Com a mesma força com que tento esquecer as coisas más, esqueço lembrar os seus sorrisos. Tantos! Cada um com um feitio, uma luz. E faço o esforço para não os perder nos limites da memória. Os meus anjos, minhas bênçãos, meus amigos.

Serei um anjo de alguém? Gostaria de pensar que sim. Que estive lá. Que fui luz nas trevas.

Temo não saber dar tanto, ser apenas um cordeiro da vida...

Fuga

Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes!


Sophia de Mello Breyner Andresen – Pudesse Eu


Fujo? Fujo!

Santiago, serás caminho. San Sebastián peregrinação. Barcelona, serás destino.

Fujo? Fujo!

E levo tudo comigo. Fraca fuga em que já me encontro...

Miragem

Com mão de um desejo
Selvagem
Roubarei a seda
Que o beijo guardou
Só pra dar uma riqueza
Pro meu amor
Vivo por que te vejo
Miragem
Num lampejo de abelha
Fazendo o mel
Vou fazer no céu
Do teu carinho

Uma lã pro cio
Na certeza
De quem faz o vinho
Teu calor
Alucina
E a pleno rigor
Domina
Feito uma coisa
Que mata de prazer
Deixa ver
Se eu não morrer
Te quero de novo
Ando por onde vejo
Miragem
Um beijo passou por mim.


Djavan


Vou construir um castelo.

Vou enchê-lo de almofadas de penas.

Vou espalhar velas perfumadas, pintar no tecto estrelas.

Vou escolher um pau de incenso perfumado, talvez maçãs verdes, ou qualquer fruto.

Vou semear confeitos doces e coloridos, ou então pétalas de flores, fazer uma cama no chão.


Vou pôr a tocar uma música com guitarras e cítaras.

Depois...

Depois de ter o cenário completo, vou destruí-lo com o mesmo afinco com que o inventei.

Não faz sentido!

Então, vou pegar no telefone e, banalmente, vou convidar alguém para ir ver um filme ainda mais banal comigo.

Ao chegar a casa, adormecerei com a paz certa do dever cumprido.

Sem miragens.