2006-03-31

Aviso: férias!

Spring-heeled Jim slurs the words:
"There is no need to be so knowing
Take life at five times the
average speed, like I do"
Until Jim feels the chill
"Oh, were did all the time go?"
Once always in for the kill
Now it´s too cold
And he feel to
old
too old
mm... old


Morrissey - Spring-Heeled Jim


Esta blogger está oficialmente em férias que, cada vez que toca nas teclas, saem merdas sem sentido, inconcebivelmente deprimentes e a precisarem de arejar.

Solicito a colaboração do outro dono do blogue, no sentido de manter esta porra actualizada.

Em alternativa, podem os meus queridos leitores colaborar como quiserem, que eu já estou na fase do "já nem posso ver esta merda".

Ora deixa cá ver... será que se arranja uma imagem da Primavera? Parece que o ano passado escrevi qualquer coisa sobre a gaja... Ou será demasiado simplex, esta rapidex com que se desencantex um post qualquer?...

2006-03-30

Gilda


aqui



A porta abre-se e entra uma fabulosa mulher de vestido longo, azul noite, luvas até ao cotovelo que escondem os alvos braços e cabelo comprido cor de cobre. Bate com força a porta da casa asséptica caiada de branco, com vontade de, dessa vez, construir um castelo.

Começa a encher o espaço de almofadas de penas. Espalha velas perfumadas, pinta no tecto estrelas. Escolhe um pau de incenso perfumado, talvez maçãs verdes, ou qualquer fruto. Semeia confeitos doces e coloridos, ou então pétalas de flores. Faz uma cama no chão. Põe a tocar uma música com guitarras e cítaras.

Depois pára de repente... A câmara pára com ela.

Eles vão para a cama com a Gilda, mas acordam comigo.

E então, depois de ter o cenário completo, a figura feminina começa a destrui-lo com o mesmo afinco com que o inventou.

Nada faz sentido!

O cabelo ruivo voa em todas as direcções, as luvas perdem-se por trás das almofadas, uma delas cai sobre uma das velas, chamuscando-se ligeiramente...

Tanta gente presa ao sonho projectado num écran branco, esquecendo-se que, por trás do sonho, está uma pessoa de carne e osso.

A câmara recomeça o percurso, aproximando-se mansamente do rosto agora em repouso, a fabulosa cabeleira a beijar-lhe as faces.

Há dias em que os minutos são horas e sinto a alma parada no tempo à espera não sei de que milagre para pedir licença para voltar a nascer.

E o plano começa a abrir-se, lentamente…

Há dias em que queria ser caracol, tartaruga, búzio, levar a casa às costas e poder fugir para um qualquer ventre e deixar o tempo passar. Esquecer a Gilda. Ser apenas eu.


The End




Cá está o que se arranja: pouco tempo e falta de inspiração :(

O Escritor Famoso merecia melhor, bem sei... mas para a semana não estou cá e queria deixar-te aqui o post que pediste.

2006-03-29

Revolver















Revolve-me
onda
antes de te espraiares
porque eu já não sinto
deixo-me levar

Vive em mim
uma memória
de água
que deixei passar
restando a espuma
alva
e duradoura
no cume dos lábios
que não sei calar

Todas as marés
me lavam
da cabeça aos pés
mas o molhado
guardado
entre pernas
sabe bem
quem tu és

Sopra agora
o vento
vindo de sul
e nova onda
encapapelada
se desfaz
que novas me traz?
que novas me traz?

Desmaia
nova vaga
sobre a areia da praia
julgo ver
ao longe
o voltear de uma saia

Maresia?
ou era o cheiro
que te despia
ali
junto à rebentação do Mar?

E agora que te digo, J.P.?


aqui

Nunca gostei de flores de estufa, fabricadas em laboratório. Gosto das flores vivas, imperfeitas, a pintalgar os campos de cor nos inícios da Primavera: livres, breves, perfeitas nas suas imperfeições naturais. E os campos da tua terra por estas alturas do ano são um dos meus paraísos favoritos, onde tudo é possível, tudo volta a ser novo, tudo renasce. Até a esperança.

Obrigada!

Pronto, para mim é um cardume...

Your True Love Is a Pisces
Why you'll love a Pisces:

Selfless and intuitive, you are perfect for a Pisces that lives to love you.
You're sensitive enough to appreciate and explore the deep emotions of a Pisces.

Why a Pisces will love you:

You're generous and totally giving in relationships, something Pisces demands.
You are also dreamy enough to get lost in fantasy with Pisces, but realistic enough to stay grounded.

Está tudo explicado!

Your True Love Is a Capricorn

Why you'll love a Capricorn:

Hard working and driven, a Capricorn will work overtime to win your heart.
Be prepared to get wined and dined, even once you're convince that your Capricorn is the one!

Why a Capricorn will love you:

You don't rush things. You know it will take a while for a Capricorn to trust you, and you can wait.
Social and outgoing, you can introduce normally shy Capricorn to a great circle of friends.


Só conheço um capricórnio e, oh caraças, é gaja!

E eu que sempre gostei deles perigosos...


(visto
aqui)

2006-03-28

As palavras não morrem!



aqui


As palavras bailam sempre. Dançam uma melodia inventada em acordes dissonantes. Vivem. Escoam-se na afinação, redefinem-se na própria música. Bailam palavras, são nosso útero. Ou cordão umbilical tecnológico onde prendemos umas quantas de horas que se transformam em romaria. Uma romaria de festa e de palavras. Palavras amestradas ou agrestes, doces ou iradas. Palavras bailarinas, dançando em frente a um écran. São também armas de arremesso ou de defesa e ironias de pacotilha, estilhaçadas, sem desígnios novos ou resignadas. Palavras ainda. Palavras e mais palavras. À espera. Palavras suspensas, humanismo circense engalanado. São cordas, lianas, grilhetas. São cones de vulcão ou simples lagos. São mar, onda, deserto, fogo. São caminho. Destino às vezes. Pontes suspensas prenhes de simbolismo. São vertigem, fundo negro, luz além. Palavras em confessionário asséptico e vazio, teia ressequida de desencontros. Palavras-ponte. Palavras nossas. Vivas. A precisarem de rumo.

Segurem-lhe as palavras!

Parabéns, mana!


Stuart Townsend Posted by Picasa

Achei que as cores quentes de um morenaço iam bem com um aniversário que te desejo radioso :)

2006-03-27

Post a um desconhecido


aqui


Tenho um contador a que espartilhei as possibilidades, impedindo-o, nomeadamente, de identificar as minhas vindas ao blogue como visitas e não considerar os "reloads" para o mesmo. Ainda assim, não o acho particularmente fiável. No entanto, ele está ali em baixo a dizer-me que hoje, por volta das 5 da matina, um madrugador desconhecido do Porto (que usa a Oni), resolveu ser o visitante n.º 25 000. Seria muita maçada o desconhecido acusar-se? É que eu gostava muito de saber...

2006-03-26

Mal-entendidos

.


O mal de se comentar o que não carece de grandes explicações, porque se baseia num hábito velho de convivência, onde meias palavras chegam, é que se pode dar um valente tiro no pé. Nunca há crise, claro. Excepto de quisermos fazer disso uma grande crise. A tal ponto que chega a ser preciso um ano para que fique bem claro que o pedido de desculpas que era solicitado referia-se ao paternalismo com que a dona do blogue – que me conhece há anos e bem demais – me tinha tratado, sabendo bem, ainda por cima, que ao comentador trapalhão aqui a desbocada não tinha dado nem metade da resposta que, noutras circunstâncias e não me merecessem os dois mais consideração, tinha saído pela certa.

E eu leio bem mais do que os links que aparecem ali ao lado. Mesmo quando digo que não, durante qualquer ataque de mau feitio, que é sabido que tenho e nunca escondi de ninguém. E
agradeço os parabéns, mesmo que o blogue só faça anos em Agosto e seja a autora quem sopra, desta vez, as velas :)

Destino

I Am

Which tarot card are you?


Spiritual enlightenment, inner illumination, hidden power. Link between seen and unseen. Balance of positive and negative forces. Receptivity. Unseen guidance. A young woman sits on a throne holding a scroll labeled "Tora" meaning "law." On her breast is the sign of the meeting of heaven and earth, the Maltese cross. Her crown is the full orb supported by horns, the crown of the Mother Goddess Isis, who rules all things changeable, shown by the moon at her feet. Her power, upon which her throne rests, derives from the creative principle of duality, shown by the two pillars of light and darkness. To those who know and love her she dispenses the sweet fruit of the world itself, symbolized by the pomegranites.

Podia ser pior...

(Visto aqui)

2006-03-25

Obrigada!




Uma pessoa imagina que a amizade é um serviço. O amigo, assim como o namorado, não espera recompensa pelos seus sentimentos. Não quer contrapartidas, não considera a pessoa que escolheu para ser seu amigo como uma criatura irreal, conhece os seus defeitos e assim o aceita, com todas as suas consequências. Isso seria o ideal. E na verdade, vale a pena viver, ser homem, sem esse ideal?

Sándor Márai - As Velas Ardem Até ao Fim


Sei que há dias em que me apanham de bom humor e, nesses, até entendo que resolvam voltar. Mas há outros em que me sinto mesmo agradecida por vos ter por aqui. Na verdade, olhando para alguns dos meus textos e pondo-me no lugar do visitante ocasional, este não seria nunca o blogue que elegeria para tantas visitas. Mas, mesmo assim, vejo-vos voltar e sinto que, de alguma maneira, ando a fazer as coisas certas.

Não chego sequer a entender porque mereço tamanho carinho. Mas hoje, depois das tantas de palavras que me deixaram, de todo o mimo, de todos os gestos de partilha de um tiquinho de tempo para com uma pessoa que, na maioria dos casos, é mais um nick desconhecido entre tantos que se resolveram a abrir um blogue, só posso mesmo dizer que nem quero entender. Quero é aproveitar!

Há cerca de cinco anos que ando pela net nestas partilhas, primeiro em fóruns, depois nos blogues. Já fiz muita merda por aqui. Também devo ter feito coisas certas. Cinco anos pode ser uma eternidade em tempo virtual. Dezanove meses em tempos de blogues pode ser o suficiente para muitos encontros e desencontros. Ter uma caixa cheia de mimos no meu dia de anos é, sem falsas modéstias que não sou gaja para isso, motivo para me sentir muito feliz hoje.

Foi uma festa e tanto. Obrigada a todos por fazerem de mim hoje uma blogger muito, mas mesmo muito feliz.


Nunca a fortuna põe um homem em tal altura que não precise de um amigo.
Séneca

2006-03-24

...




Está sim? Era só para dizer que é hoje o dia certo. Vá! Podem começar a mandar os mimos... já sabem que eu gosto :))

2006-03-23

Parabéns, Lyra


aqui

Venho da terra assombrada,
do ventre da minha mãe;
não pretendo roubar nada
nem fazer mal a ninguém.

Só quero o que me é devido
por me trazerem aqui,
que eu nem sequer fui ouvido
no acto de que nasci.

Trago boca para comer
e olhos para desejar.
Com licença, quero passar,
tenho pressa de viver.

Com licença! Com licença!
Que a vida é água a correr.
Venho do fundo do tempo;
não tenho tempo a perder.

Minha barca aparelhada
solta o pano rumo ao norte;
meu desejo é passaporte
para a fronteira fechada.

Não há ventos que não prestem
nem marés que não convenham,
nem forças que me molestem,
correntes que me detenham.

Quero eu e a Natureza,
que a Natureza sou eu,
e as forças da Natureza
nunca ninguém as venceu.

Com licença! Com licença!
Que a barca se faz ao mar.
Não há poder que me vença.
Mesmo morto hei-de passar.

Com licença! Com licença!
Com rumo à estrela polar.

António Gedeão - Fala do Homem Nascido


Eu disse que não esquecia, não disse?

Pois espero que esteja a ser um alegre início do trigésimo segundo!

Ópera do malandro

Oh, pedaço de mim
Oh, metade afastada de mim
Leva o teu olhar
Que a saudade é o pior tormento
É pior do que o esquecimento
É pior do que se entrevar

Oh, pedaço de mim
Oh, metade exilada de mim
Leva os teus sinais
Que a saudade dói como um barco
Que aos poucos descreve um arco
E evita atracar no cais

Oh, pedaço de mim
Oh, metade arrancada de mim
Leva o vulto teu
Que a saudade é o revés de um parto
A saudade é arrumar o quarto
Do filho que já morreu

Oh, pedaço de mim
Oh, metade amputada de mim
Leva o que há de ti
Que a saudade dói latejada
É assim como uma fisgada
No membro que já perdi

Oh, pedaço de mim
Oh, metade adorada de mim
Lava os olhos meus
Que a saudade é o pior castigo
E eu não quero levar comigo
A mortalha do amor
Adeus

Chico Buarque - Pedaço de Mim

Há músicas de que raras vezes nos lembramos mas, depois de as ouvir, ficam a martelar-nos cá dentro. No caso desta, bem mais do que a música ou sequer a voz do Chico Buarque, de que não gosto particularmente, é o raio da letra. Oh saudadezinha bem descrita!



(não chorei o dinheiro do bilhete e o Fernando Eiras, como Geni, mereceu todas as palmas)

2006-03-22

Promessas


aqui


Há dias em que mesmo promessas não cumpridas nos deixam um sorriso nos lábios. Porque sabemos que, em breve, a desforra trará consigo um doce sabor de mel, ou outras coisas plenas de meiguices...

2006-03-21

Caça

Um bando de aves de arribação cruza os céus do Alentejo...
-"Então, amigo, não dispara a caçadeira? O bando de patos está quase aqui por cima..."
- "preciso amigo... Fique manso... Vocemecê vem lá de Lisboa e na percebe nada da coisa..."
Os patos bravos passam por cima dos dois homens batendo vigorosamente as asas...
-"Observe bêm quedo e mantenha-se." Disse o velho Alentejano, ajeitando o capote.
Nisto, uma das aves larga o grupo, perdendo a força das asas, percepitando-se no o solo.
-"Na disse?... Agora, vai cair ali adiante..." Falou, chasquinhando, o velho. "Olhe, lá vêm caindo outra ali ao pé das sobrêras..."
E, virando-se para o cão, ordenou:
-"Vai buscar, Fiel!" Olhou, trocista, o Alfacinha e sentenciou: "Isto é canito que caça sózinho...
A bicharada, agora, também vem tombando dos céus sem fazermos nada...é da gripe!
Anda muito facilitada esta tarefa da caça.... Na acha amigo?"

Dia de lua negra


aqui


Os dias miseráveis deviam vir com nota prévia!

2006-03-20

Vaidade


aqui


Cabelo às três pancadas, roupa vestida sem pensar, correr porta fora à espera de alcançar o dia antes que o dia se abata sobre mim. Sapato raso, cara lavada, a revolta do costume contra a Segunda-feira e a falta do café que esqueci comprar. Nada de jóias nem simulacros, o perfume fez-se dos restos da amostra perdida no carro. Nada de vaidades, nem cigarros, nem comida. E o trânsito e os putos postos à porta das escolas em intermináveis segundas, terceiras filas e a vontade da buzina e dos insultos e esta porra de estar sem café e sem cigarros e ainda por cima ser Segunda-feira. E é então que o passo de corrida é interrompido por um "bom dia, menina". E a menina esquece o fio, os fios, que o tempo nevou sobre os cabelos, o pasto para arado do tempo em que a cara ameaça transformar-se, a gravidade que pesa por entre as pregas da roupa desengonçada, mal amanhada, escolhida sem vontade e a cara lavada e a falta de café e os cigarros que não existem e o sapato raso e a vaidade que ficou perdida, talvez na noite de Sexta, ou no Domingo de manhã...

Hem?!


aqui


Pá, prontos, pá... parece que a informação era mentira e coisa e tal e a gente nem desconfiou nem nada e foi por isso que fomos ali fazer uma guerrinha depois de brindar com uns copinhos de água a dizer que era outra coisa mas o meu amigo arbusto tem um pequeno problema com a bebida e assim e a guerra afinal agora está maior do que parecia e já nem está a dar tanto petróleo e as armas não chegam para os cobres que estávamos à espera. Desculpem qualquer coisinha...

2006-03-19

The Tramp


aqui


Um bigode pequenino, um casaco apertado, umas calças largas, uns sapatos enormes, uma cartola estafada. Um olhar cândido e um sorriso. Um corpo franzino. Ai está: the tramp. Silencioso, sempre silencioso. Tão silencioso que recusou o avanço do sonoro durante mais de uma década. À sua volta, todos falavam já. Mas o pequeno vagabundo, o mais pobre dos pobres, não enchia os seus filmes com o som das palavras. Enchia-os de música. Música belíssima, para enquadrar cada sentimento com a expressão magnífica que não necessita de tradução. Tão grande a emoção que se lê na ligeireza dos corpos, na profundidade dos olhos, na gentileza de um perfil. The tramp. Charlie.

Charlie Chaplin apresenta-nos uma das primeiras vozes discordantes sobre as venturas do progresso. O pequeno espezinhado que nem um cigarro pode fumar sem que, em grande écran, lhe surja a imagem do patrão, qual Big Brother, remetendo-o de volta para o seu trabalho de rotina, a prisão dos gestos repetidos até se transformarem em reflexos espasmódicos, uma doença. E os ricos ficam mais ricos e o pobre vagabundo, rodeado de muitos pobres vagabundos de uma época de recessão, enfrenta a miséria maquinizada. Um senhor, tão grande que enfrenta a fome e a prisão, que se enfrenta a ele mesmo no ring de boxe, numa coreografia de murros contra o destino. O destino da pobreza ao toque do gongo. Não por ele: para arranjar dinheiro para a sua amada. No fim ela vê. E vê-o a ele, ainda que, mais do que os olhos, seja o toque da pele que reconhece, enquanto olha para aqueles imensos olhos cheios de pena, de dor e de esperança. Em silêncio ainda. E a música por trás. O vagabundo que parte sempre a caminho do destino, com uma bengalada no ar. Mais vagabundo hoje do que nunca, comendo atacadores para mitigar a fome, sem perder a esperança num novo dia.

O bigode. O pequeno bigode que abandonou depois de muitos anos. Matou-o com o som, levou-o apenas para um filme ainda, numa caricatura visionária ao que vozes endoidecidas do outro lado do Atlântico prometiam ser a redenção da raça. Será que Hitler alguma vez viu "O Grande Ditador"? Será que se reconheceu no ridículo da figura embigodada que dança aos pontapés ao mundo?

E os olhos. Grandes, aguados, cheios de ironia. Mas também cheios de uma vontade de pôr no celulóide o melhor de si: a criança que sobreviveu à fome, mas que não soube sobreviver à abundância, transporta para o mundo dos sonhos a esperança que perdeu algures. Os olhos estão lá ainda. A preto e branco. Claros, esclarecidos, cheios de fome por um mundo que não compreende ou, talvez, compreenda bem demais. Ficam em close-up, encarando o seu amor, ao som de música. Bela música. Música iluminada que nos enche de promessas de um dia, um qualquer dia, que será melhor.


aqui


Não sei se querias realmente um texto, mas sou incapaz de resistir a um bom mote.


2006-03-18

Poema para o meu filho, jovem homem

Um dia
Um homem
Sozinho
Terá pensado
À noite
Sob o céu
Iluminado
Qual seria
O seu destino

As vozes
Que dentro dele
Dançavam
Nada clarificavam
O objectivo
Que pretendia

Qual seria
O caminho
Nesta cartografia
De vida
Rota
Destino escolhido
Ou coisa pré-definida?

Olhou
De novo
O firmamento
De estrelas semeado
Sentiu
Por momentos
Ao lado
Algo
Que não definiu

Traçavam-se os rumos
Ao romper do dia
Com a mente
E o coração
Assim
Ele decidia

2006-03-17

O Grito


aqui


Sabem quando temos a certeza que lemos algures algo importante? Quando não descansamos até encontrar as palavras exactas, quem as disse, onde disse? E desatamos a folhear todos os livros à procura do sublinhado que tem de estar lá, que é forçoso que lá esteja?

Pois não encontrei o que andava à procura – e que era sobre a importância do culto mariano numa Igreja demasiado masculina, como se o dogma imposto pelas cúpulas não fizesse sentido para o crente no sopé das hierarquias da fé –, mas encontrei outra frase que faz cada vez mais sentido:

O Grito de Munch saiu das pinacotecas e instalou-se nas ruas…(*)

E depois vi as imagens do avanço das tropas americanas, coligadas com alguns iraquianos, sobre Samarra…


____
(*) Luís Sepúlveda

2 anos!


aqui

Ultimamente, parece que chego tarde a todas as efemérides, mas não podia deixar de dar os parabéns aos meus meninos :)

2006-03-15

Parabéns, Gaivina!

(...)
Dada a primeira talhada, como se a primeira pá de terra tivesse sido lançada, todos se aproximaram de prato na mão, insinuando-se em fingidas acotoveladas de animação, cada um para a sua pazinha.

Clarice Lispector - Feliz Aniversário


Se um dia me dissessem que alguém ia gostar tanto do ambiente que se foi construindo à volta deste blogue, a tal ponto que ficou com vontade de nele escrever, eu não teria acreditado. E, no entanto, aconteceu.

Se um dia me dissessem que ia ter por aqui desenhos feitos pelo autor do blogue, eu – que não sou capaz de desenhar nada nem para salvar a vida – não teria acreditado. E, no entanto, há por ai desenhos espalhados.

Se um dia me dissessem que eu ia querer partilhar a Voz, que sempre foi um blogue tão umbiguista, eu não teria acreditado. E hoje somos dois.

O Gaivina já foi um sem-blogue. Hoje, é um dos autores do Voz em Fuga. Digamos que, ultimamente, é a parte séria e bem comportada do Voz em Fuga. À conta do livro que escreveu, andará pela net muita gente a dar com este blogue. E a dar com textos que não são do Gaivina, comentários que nunca poderiam ser do Gaivina. Encontram, por acidente, uma tripeira sem papas na língua e, muitas vezes, completamente sem vergonha nas teclas. Não será um brilhante cartão de visita para um ilustre autor de livros infantis. Mas é o que há.

Mas este post nem era bem sobre isto. É que a Voz em Fuga hoje está em festa: celebra-se por cá, pela primeira vez, o aniversário do Gaivina. Portanto, mais valia estar a escrever menos e ir directamente ao importante:



aqui

Parabéns, amigo!

2006-03-14

The devil is a woman


aqui




Mas não uma qualquer...


(and hold your tongue about your life
or dead hands will change the plot...)

2006-03-13

Take a bow


aqui


Quanto me sento ao computador, aceito que os mundos virtuais que lá encontro são paralelos aos meus. Falo com pessoas cuja identidade não consigo provar. Desapareço numa teia de coordenadas que dizemos que vão mudar o mundo. Qual mundo? Que mundo?

Jeanette Winterson – O Vírus do Amor


Há dias em que fico demasiado feliz por ter feito a ponte, transitando para o meu real aqueles que, por largos percursos feitos palavras, habitavam apenas a terra onde as ovelhas talvez sonhem com andróides. E é por isso que há fins-de-semana diferentes, povoados de quem gosto, de quem gostaria de qualquer maneira. Mesmo sabendo que a probabilidade de fazerem parte do meu mundo se mede bem mais em 0 e 1 do que numa qualquer matemática baseada nos dez dedos com que, no início dos tempos, aprendemos a contar.

Mas não há como escapar ao reverso. Nem sei se quero escapar ao reverso. Como uma amiga – que já foi só virtual – explicava a um amigo – que também já foi só virtual – aprendemos a treinar o instinto e estabelecemos regras, limites de segurança que não queremos, nem podemos, ultrapassar. Mesmo quando não há olhos, nem sorrisos, nem postura corporal, treinamo-nos, ainda assim, para os sinais. E batemos em retirada, se for preciso. Desconfiados, levemente tostados por histórias que quase nos queimaram, perdemos a magia dos primeiros tempos, a vontade de acreditar ou tão só a capacidade de acreditar.

Os nossos mundos paralelos estão ainda aqui. Mas há muito que erguemos muralhas e nos barricamos bem por trás delas.

Como em todos os novos percursos, fomos obrigados a crescer. Tudo na vida nos obriga a crescer, de alguma forma. Mas o que se perde em pureza nunca mais pode ser recuperado. É o mundo que sobra. Que mundo, ainda não sei…

2006-03-12

O Rei vai nu


aqui


Estão nus? Vão nus? No casulo fútil onde se escondem, a nudez é relativa. Tão relativa quanto o ego é capaz de a fazer. E recusam-se a admitir a nudez, mesmo que tenham já exposto, de forma indelével, a nudez e pequenez da sua personalidade.

Tal como o rei seria, no seu orgulho, incapaz de admitir a sua nudez, não sabem, na sua soberba, colocar-se no seu lugar. Alcandoraram-se a um pódio, um altar e por lá querem ficar. Será grande o tombo e penso que, na maioria dos casos, começa bem antes dos sintomas definitivos. Começa, aliás, no dia em que tantos de nós, que apenas estamos ou queremos estar de fora, passamos a ter pena, da mesma forma que se chega a ter pena do rei: aquela piedade corrosiva e envergonhada, não por nós, mas por figuras tão ridículas que se tornam dignas de dó.

No fundo, o trágico, o que me parece mesmo mais trágico, é a cegueira. Uma cegueira tal que mentirão a si mesmos só para não terem de ver, não terem de ver-se...



(a propósito do Berlusconi e mais umas coisinhas...)

2006-03-10

Pensamento do dia?


(recebida por mail)


Já não faltam oito horas, felizmente.

Bom fim de semana para todos, que o meu vai ser, de certeza :)

2006-03-09

2006-03-08

Tuguice


Você até tem um certo jeito, e de vez em quando faz um brilharete; mas geralmente anda um bocado à nora. A organização não é o seu forte, você confia em absoluto no instinto. Você é pão-pão queijo-queijo: tudo ou nada! Acha sempre que vai conseguir ter tudo, mas, aqui entre nós, ou fica lá muito perto ou dá uma monumental barraca.



"Roubado" à
Jacky, que, coitadinha, é do Togo :)))

Esfumado

You dance real slow
And you wreck it down
Walk away and you turn around
What did that old blonde guy say
That’s the part you throw away

I want that beggar’s eyes
The winning horse
A tidy Mexican divorce
St. Mary’s prayers, Houdini’s hands
And a barman who always understands

Will you loose the flowers
Hold on to the vase?
Will you wipe all those teardrops away from your face?
And I can’t help feeling as I close the door
I have done all of this many times before

The bone must go
The wish can stay
A kiss don’t know what the lips will say
Forget I ever hurt you
Put stones in our bed
Remember to never mind instead

But all of your letters burned up in the fire
And time is just memory mixed with desire
That’s not the road; It’s only the map, I say
Gone just like matches from a closed down cabaret

In a Portuguese saloon
A fly is circling round the room
You’ll soon forget the tune that they play
For that’s the part you throw away
For that’s the part you throw away


Ute Lemper - The Part You Throw Away
(de Tom Waits e Kathleen Brennan)


E enquanto o tempo se mistura com a memória e o desejo, incendeiam-se as cartas que nunca foram escritas. Contam, como sempre, a parte deitada fora, enquanto se esforçam por esquecer o que doeu. Arrastam-se vozes num quase choro, bebendo o golo sôfrego de um copo nuns dias meio cheio, noutros dias meio vazio. E vazam-se letras, que se substituem a beijos, em lábios mudos, como quem fecha mais uma porta, ritual repetido. Querem tudo. Tudo! Mas a alma está cansada. E a música toca ainda, vai rodando, inebriante. Arrastam-se as palavras, como se arrastam os acordes. Esvoaça o fumo de mais um cigarro e tudo se vai transformando em pó. Deita-se fora a dor e o alento vai junto. É fado. É a vida feita cabaré, onde acordes lentos contam, com lassidão, mais um rumo desperdiçado. Que haja um barman para ouvir as histórias, enquanto mais uma lágrima escorrega por cada face para ir salgar a bebida forte, que queima as gargantas quase tanto como os gritos silenciados. Borboletas cegas pela luz, esperam ainda ter asas ao raiar do dia. E contabilizar, por fim, o que sobrou.

2006-03-07

Fantas


Fantasporto 2006


É, segundo a revista Variety, um dos 20 melhores festivais de cinema do mundo. Este ano fez vinte e quatro aninhos. Mal posso esperar pelo quarto de século. É que, para o ano, há mais...





Tinham vindo de exumar os ossos da minha avó sábia.
Minha mãe, acercando-me daquele jeito só seu, falou do medronheiro que crescera do crânio da minha avó morta.

Um belo arbusto com duas grandes raízes saindo das orbitas daquele crânio mudo, alimentando-se de uma riqueza que fora viva.
Era fim de um Verão-menino, tempo das grandes barrigadas de medronho maduro, deixando a cabeça andar à roda, tonta, perante aquele enorme horizonte que era viver...

2006-03-04

Parabéns, mãe!


Almada Negreiros - Maternidade


A minha mãe não era suposto ter nascido. Na verdade, se naquele tempo a minha avó pudesse ter escolhido, a minha mãe não nascia. Tinha sido antecedida por duas meninas que não chegaram a completar um ano de vida, dois gémeos nado-mortos e um tio que nasceu de sete meses e só sobreviveu porque a minha avó o meteu numa peúga velha e o deixou ao borralho. Eram demasiadas mortes, mesmo num tempo em que as famílias estavam habituadas a conviver com a morte e os funerais dos "anjinhos" eram o comum em lugar da excepção. Mas, tanto filho morto depois e um que mal se tinha salvo, a minha avó achava que três filhos vivos e de boa saúde era mais do que o seu quinhão. E até já tinha uma rapariga para a ajudar a tomar conta de três homens. Estava bem, não precisava de mais. Mas engravidou da minha mãe. Suspeito que não terá ficado particularmente contente. Era o tempo do pós-guerra e por cá passava-se fome. Mas que fazer? Naquele tempo também não havia muito o que fazer. Era vontade de Deus? Seria a vontade de alguém, por certo, mas duvido que o meu avô acreditasse que Deus tivesse alguma coisa a ver com o assunto...

A minha mãe nasceu magra e ossuda, com ar sôfrego, suponho que um pouco zangada com a vida. Foi uma criança magricela e, mesmo depois de duas filhas, continuou magra e seca, até a menopausa - que não perdoa a nenhuma de nós - lhe ter amaciado um pouco as formas. Mas ainda é magra e despachada, fazendo o que pode e o que não pode, sempre a queixar-se, mas sem nunca deixar de fazer. Vai ser, provavelmente a vida toda, uma pessimista, uma preocupada. Até hoje, quer que lhe telefone cada vez que chego a casa, só para dizer que cheguei bem. Tem medo de não me conhecer todos os amigos, para poder tirar a cada um as medidas à maneira dela. E, mesmo quando está contente, a minha mãe nunca parece feliz. Carrega sempre nos ombros o peso do mundo de preocupações que ela própria constrói e tem a mania que, se não meter o bedelho, nada fica bem feito.

Arranjar um presente para a minha mãe é sempre uma dor de cabeça: nunca precisa de nada, nunca acertamos com nada, nunca é o que queria de facto. Cada vez que chega próxima qualquer data propícia a presente, cá em casa há três desgraçados em crise existencial. A minha irmã e eu já aprendemos a rir-nos com o assunto, mas o meu pai, coitado, fica realmente em pânico. E dá connosco em doidas, arrastando-nos para apreciações de possíveis presentes atrás de outros possíveis presentes. Ultimamente, tem acertado, verdade seja dita: dá-lhe jóias. E a minha mãe gosta de jóias, apesar de quase nunca as usar. Aliás, conhecendo a minha mãe, acho que as deve estar a guardar em algum lado, catalogadas por data e já com a indicação de qual de nós fica com o quê, depois de ela morrer, que é para ninguém se zangar com as partilhas.

A minha mãe tem um nome que não gosta. Bem, acho que, como em relação a tudo o resto, limita-se a dizer que não gosta. Tenho cá para mim que até nem achará mau de todo. Na verdade, a coitada da minha mãe esteve para se chamar Otilinda. Isso mesmo: Otilinda. Com os dois "i". Era o nome da senhora que esteve para ser sua madrinha. Mas, como já tinha sido madrinha das duas Otilindas que não chegaram a um ano de vida, a minha avó resolveu trocar as voltas ao destino trocando de madrinha à filha. E talvez tenha dado certo, que a minha Tia-Avó Alice, que ainda está viva e de saúde, é a madrinha da Maria Alice a quem eu chamo mãe. E que também está viva e de saúde. Aliás, hoje fez mais um aninho e até parece que gostou dos presentes e da festa. Está com um ar mais ou menos feliz e já me avisou para lhe ligar quando chegar a casa...

Frio




Já quase sinto o cheiro a Primavera por entre o nosso cheiro misturado. Viste como já há tanta flor a abrir pelos canteiros e os jardins da cidade? Só falta que o sol abra um sorriso e que o rio deixe de ir cinzento. Só falta que o céu deixe de chorar este Inverno frio. Só falta que o tempo que faz lá fora deixe de gelar os nossos corpos e se aqueça deste mesmo calor que me faz apetecer os teus pés gelados...

2006-03-03

comPILAções (há sempre mais)



Do rescaldo das nossas fortuitas danças, derivam marcas de passos calculados, ensaiados ao pormenor. Passos que ensinámos um ao outro entre suor e oxigénio respirado ao fôlego ardente da nossa harmonia.

As marcas em todo o lado denunciam a dança suada que se fez minutos antes: água pinga do tecto e escorre no vidro embaciado, sangram-me as costas num molde de unhas cravadas na libertadora força do querer, gira o disco no silêncio monocórdico de uma agulha que não encontra mais músicas que tocar.

Nunca ninguém dançou como nós e nunca alguém ousará dançar porque por nós se define o significado da palavra único. Nenhum passo falso, nenhum movimento descurado. Parece que dançámos a vida toda.

Mesmo perdidos no palco, o olhar ensina o caminho que os pés querem devorar na inquietação pelo derradeiro salto que sabemos acorrer-nos em sincronia. Mesmo ausentes da valsa distante, atordoamos o cansaço com mudanças de ritmo, compasso e colocação. Mesmo embriagados pela cegueira de dançar na ausência de pensar, sabemos sempre onde nos leva a intuição.

Das nossas fortuitas danças deixas-me o vazio de te querer dançar novamente, deixas-me a fome de te conduzir nas ébrias tonturas de um ritmo que fizemos nosso, deixas-me a promessa de um passo novo aprendido na libertação de uma música escondida.



Podia eu alguma vez recusar uma oferta assim, feita um texto tão doce e sedutor?

Obrigada, Ricardo, por esta Dança dos Eufemismos.



(O
comPILAções fez um ano no passado dia 24 de Fevereiro. Haveria melhor forma de celebrar? Claro que não havia! Estendo, por isso, o meu obrigada a todos quantos participaram.)

2006-03-02

Estreia: poema











Tropeçar contigo
a cada palavra dita
em qualquer lugar
e sem defesa

Surpreender-me
com a ilusão
negando a realidade

Procurando razões
que não têm idade
para sair em silêncio
e sem ser notado

Foi necessária uma certa dose de coragem para postar estas linhas...

A minha resposta


Ralph Fiennes


Confesso que não tenho uma relação muito saudável com os conceitos de beleza. Gosto de escalpelizá-los e, a mais das vezes, fico-me antes com o nariz torto, desde que o olhar seja ladino, com a cicatriz, em vez da cara perfeita. Nada como uma pequena mácula para tornar interessante, apelativo, aquilo que poderia ser apenas belo.

Sempre me pareceu que todos os conceitos de beleza se esgotam facilmente na multiplicação desmedida em tom de fotocópia ou, actualizando conceitos, de clones. Fácil, por isso, procurar a novidade no que, não sendo o belo do cânone, atrai pelos outros motivos. Não será à toa que nós, mulheres, nos delongámos a falar de "charme", porque não há análise que perdoe tamanho conjunto de imperfeições no sujeito. E mesmo o mais delicioso dos bonecos só o é porque a beleza apregoada não resiste a um olhar à lupa, mas o charme permanece e o conjunto vale por si.

E depois há as mãos.... nada como um lindo par de mãos a despontar à frente dos meus olhos e a engrandecer uma conversa deliciosa com um bailado de gestos. E há os olhos, com o brilho certo e a textura do veludo.... Eu vou mesmo por pormenores!

E os pormenores parecem-me, de facto, ser o que mais importa naquilo que, cada um, tem como o seu conceito de beleza. E há tantos destes conceitos que não chego sequer a compreender...



(em forma de repost... mas não há tempo para mais)

2006-03-01

A menina que escutava as pedras (ainda a Beira...)

Mariazinha vestiu a sua blusa mais bonita, uma saia branca, meia clara e sapatinhos de Verão a condizer. Na cabeça, dois totós prendendo as longas tranças morenas. Então, abriu um belo sorriso de orelha a orelha. Afinal, era o seu dia de anos.
Como sempre, no seu aniversário, foram almoçar fora, ao Pataco. Os empregados não a pouparam com mimos, oferecendo-lhe um gelado no final da refeição. Do outro lado da mesa a mãe sorria com ternura, e o pai, babado, limpava os beiços com um guardanapo.
Mas o melhor estava para vir: os primos e a tia vinham brincar com ela, a tarde toda. E, depois, havia o bolo de anos e as prendas…
Foi um rebuliço pela tarde fora. Mas, para ser perfeito aquele domingo de aniversário, faltava ainda um passeio. Aos Fiais e às suas pedras favoritas.
Mariazinha chegou-se ao pé do pai, que, de comando na mão, mudava freneticamente de imagens na televisão e disse:
-Pai…eu quero ir escutar as pedras.
-O quê miúda?
-Sim. Quero ir escutar as orcas dos Fiais.
-Mas que ideia mais disparatada! Respondeu o pai, endireitando-se no sofá.
-Leva-me lá! Insistia a filha, desatando num berreiro: Eu quero escutar as pedras. Quero ir aos Fiais!
-Ó Sílvia, a tua filha anda cada vez pior! Chamou ele pela esposa, nervoso, pois o costumeiro jogo de bola estava prestes a começar em transmissão directa.
-Mas eu quero, pai!
Aí os primos começaram, também, num coro: Queremos escutar as pedras! Queremos ir aos Fiais!...
Foi tal a insistência da miudagem que os adultos não tiveram outra hipótese senão pegar nos carros e rumar aos Fiais da Telha, para grande tristeza do pai que iria perder um jogo decisivo do campeonato.
Mal lá chegaram, as crianças saíram a correr dos automóveis gritando: Vamos escutar as pedras! Correram em direcção às antas, abraçando as grandes pedras, encostando os ouvidos à superfície rochosa.
-Maria, vem escutar esta! Gritava um dos primos.
-Agora vou ouvir o que esta diz….Dizia Mariazinha.
-Eu gosto muito desta orca. Dizia sorridente o primo mais pequenino, agarrado a uma grande massa de granito.
A tia e a mãe estavam tão entretidas com a habitual conversa de fim de semana que nem se deram conta das palavras murmuradas pelo pai:
-Meu belo joguinho ...
A tarde foi caindo. Cansadas as crianças de tanto de escutar as pedras, convenceram-se a regressar ao entardecer. E seguiram, para o carro da tia. Afinal, o jipe da tia era muito mais divertido que o carro do pai:
-Vamos todos aqui! Gritou Mariazinha.
-E eu? Perguntou o pai.
-Tu vais sozinho no teu. Respondeu a mãe.
E lá se foram, perdendo-se no pó da estrada.
O pai ficou ali parado no meio do caminho junto das enormes orcas silenciosas.
Olhou em redor, verificando que estava mesmo a sós. Então, aproximou-se, de uma grande pedra e abraçou-a. Sentiu um calorzinho que lhe entrava pela barriga, vindo da rocha ainda quente pelo sol. Encostou a orelha ao granito e escutou a voz das pedras.

Glossário:
Fiais da Telha - Terra bonita da Beira Alta
Pataco - O melhor restaurante de Canas de Senhorim
Orca - Dolmen