2016-08-09

Dos extremismos

Um dos principais saltos qualitativos da espécie humana foi a capacidade de se desprender do tempo presente, recordando o passado e imaginando o futuro. E, ao fazê-lo, inventar essa capacidade mágica de acreditar: acreditar na “coisa” apenas imaginada, para depois dar-lhe forma; acreditar que há uma ordem implícita nos acontecimentos aparentemente fortuitos e que, por isso, podes acreditar que o sol volta a nascer amanhã, que uma determinada estrela volta a um determinado ponto do céu, que voltou a ser hora de semear. 

Esta capacidade de acreditar no que não está lá, não existe ainda, é um acto de fé. É que fé, tal como a estou a utilizar no que escrevo, remete apenas para o "fide" do latim, i.e., confiança. A confiança de que algo é possível, pode acontecer. Não tem nada a ver com religião organizada e padronizada. Tem a ver com o que somos. E, do que somos, conhecemos ainda tão pouco, que me iriso sempre quando alguém começa a falar apenas em factos. Porque até os factos precisam da imaginação e, sendo que usamos uma ínfima parte da capacidade do nosso gigantesco cérebro, quem nos garante que os factos até hoje conhecidos chegam? E por que ser tão afoito em mandar o desconhecido para a franja do paranormal? Mesmo que eu não acredite que uma prece possa levar a uma cura, porque não aceitar que a vontade de cura de alguém e a sua necessidade de acreditar que vai ficar curada, não dão origem a um qualquer processo que resulta numa cura real? Para quem como eu não sabe acreditar assim, será sempre necessário descobrir o facto que deu origem ao resultado. Quem acredita chama-lhe apenas milagre. E esses acontecem de facto a toda a hora. 

Somos, todos nós, tão diferentes e tão improváveis, sabemos tão pouco… Mas escolhemos acreditar. Seja em que for. E, por esse simples acto  conseguimos desprender-nos da condição de ser sem passado nem futuro, incapaz de se imaginar como parte de uma grande estrutura, para lá da manada de búfalos a caçar, ou da árvore com os frutos mais maduros. Por tudo isto, não confundo de forma alguma o direito a acreditar na obrigação de acreditar num Deus que outros desenharam por medida. E por tudo isto ando tão horrorizada com as vozes e actos de extremismo religioso.

2 comentários:

cereja disse...

Não consigo evitar sentir os extremismos religiosos como qualquer coisa de medieval... Não entendo como são possíveis no século XXI. Aliás o respeito pela opinião dos outros, seja sobre que assunto for, é um sinal de civilização, não podemos fugir a isso.

Hipatia disse...

O controlo da mente e das vontades sempre tentou organizar e espartilhar as opiniões. Para mim o que é realmente assustador é forma como fazemos de conta que não vemos, não sabemos, não haja demasiadas e sujas contabilidades na História para haver por fim um basta!