Quando ainda mal sabia ler, os fantasmas de uma guerra que tinha acabado antes de eu nascer faziam-se presentes - e ainda tenho presentes! - nas tantas das fotografias de crianças famintas de um sítio chamado Biafra que demorei anos para saber onde ficava. Na escola primária sabia que havia mortes na terra de desconhecidos, com um nome interessante e uma história horripilante: Khemer Vermelhos. E depois, mesmo que não tenha sido realmente depois, um tal de Vietnam distante onde parece que todos os filmes de guerra americanos iam desaguar, levando desde o Brando até ao Rambo e ao pobre do William Dafoe ou o Birdy. E o Biko foi morto e Peter Gabriel cantou-lhe a morte. Depois ninguém queria cantar em Sun City e havia concertos onde se gritava Mandela Free. Até houve dinheiro suado que gastei a comprar um 45 rpm porque as criancas da Etiópia precisavam saber que era Natal enquanto morriam, escanzeladas, perante a indiferença do mundo até que uma música nos acordou. E era um mundo fácil, muito a preto e branco, se bem que o Sting teimasse em lembrar "how can I save my little boy from Oppenheimer's deadly toy?" enquanto assumia que os Soviéticos também amavam os seus filhos. E o Bond ganhava sempre, obviamente. E as ditaduras continuavam calmamente, sem pios e sem ais, sem redes sociais. Até mesmo uma Tiananmen distante era só isso, porque o Muro de Berlim até tinha caído, Mandela estava livre, o Baader-Meinhof, o IRA ou ETA pareciam perder pé numa década de crescimento económico, CEE e esperança. Ainda chorava Beirute, claro, mas era tão distante... Depois vieram 10 desgraçados anos no coração da Europa lembrar-me que o futuro seria provavelmente Sarajevo ou Račak. E acho que foi com os Balcãs que comecei a perder a esperança que nenhuma das desgraças anteriores tinha conseguido extinguir. Suspendi brevemente o cinismo acenando lenços brancos por Timor enquanto chorava Santa Cruz, ou assistia à guerra relâmpago do Bush pai, televisionada sempre numa estranha luminescência verde. Mas o cinismo voltou e já não era a mesma pessoa quando as Torres Gémeas caíram que era quando rebentou o infantário em Oklahoma City. Vou perdendo partes de mim aos pedaços, cimentados em indiferença: Aylan doeu mais do que a pobre Valéria afogada enfiada na tshirt do pai. A próxima criança morta vai provavelmente doer menos do que a Valéria. Na Eritreia ninguém quer saber se há Natal. Eu também não. As meninas raptadas pelo Boko Haram ainda estão vivas? A Venezuela a morrer à fome. O Haiti. Os ataques terroristas que deixaram de ser notícia, excepto se morre um português... E o Planeta? Eu que quis escrever uma tese sobre desenvolvimento sustentado quando ninguém sabia direito de que queria falar. Eu, que às vezes dou por mim a pensar se ainda vale a pena o trabalho que dá separar o lixo. Eu, que estou para aqui a acabar de escrever isto e a pensar quantas pessoas vão reconhecer todas as referências e quantas, como eu, já nem referências parecem querer reter.
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