2018-09-23

Glossário

Acho mesmo que a grande maioria dos conceitos em que costumávamos assentar as nossas (re)construções do real está esgotada, vazia de sentido. Talvez por isso pareça ser, tanta vez, uma época de crise e caos: nem temos sequer as palavras certas para dizer o nosso mundo. Talvez seja necessário inventar um glossário novo até para a nossa rebeldia, ainda que mais por inépcia e comodismo do que propriamente por convicção.

Ramos Rosa

«Tu pensas
que os cardeais
não se masturbam,
que não vêem
as telenovelas,
que vêem, quando muito, os filmes de Bergman
e o Evangelho segundo São Mateus de Pasolini.
Não, eles nunca lêem os livros pornográficos
e nunca pensaram em ter amantes.
Eles não conhecem o turbilhão das visões
das figuras eróticas,
eles lêem os exercícios espirituais
de Santo Inácio
e têm o odor da santidade
e irão para o céu porque nunca pecaram,
nunca acariciaram um pénis,
nunca o desejaram túmido e ardente
na sua boca casta.


Ah os cardeais como são exemplares
mesmo quando os espelhos os perseguem
com os membros e órgãos de mulheres
na fulguração da nudez liquida e candente!


Todavia eu conheço a obstinada chama
do desejo,
a sua glauca ondulação,
os seus olhos deslumbrados pela oceânica
vertigem
de um corpo embriagado pela sua simetria
e pela volúvel coerência
dos seus astros dispersos.


Não, eu não creio na inocência imaculada
dos solenes cardeais.
Eu sei que a sua carne é a mesma argila
incandescente e turva
de que o meu corpo frágil é composto.
Eles conhecem o sofrimento de ser duplos,
o vazio do desejo,
a violência nua das imagens monstruosas,
a adolescência do fogo nos labirintos negros.


Mas eu sei que os cardeais não gritam,
nem levantam a voz,
nem atravessam a fronteira do pudor
e adormecem ao rumor das orações.
É esta imagem que eu quero conservar
na religiosa monotonia do meu sono.»

António Ramos Rosa - Tu Pensas que os Cardeais

2018-09-08

Irritações

Às tantas vou ficar igual, mas enquanto não fico, rais'parta os velhos ao volante! Tão depressa vão a 20km/hora, como de repente viram bichos arraçados de chita. Especialmente se vêem una rotunda ou, pior!, uma mulher a ultrapassa-los.

2018-09-04

Dos conflitos internacionais

Enrezina-me por dentro esta ideia de que todas as guerras e todas as intervenções internacionais são um nadinha diferentes em função não das vítimas mas dos seus supostos salvadores. E que o sol não vai nascer para os corpos que ninguém quer contabilizar hoje na Síria como antes não foram realmente contados no Sudão, ou em Beirute, ou em Timor, ou em Burma, ou no Kosovo, ou na Tchetchenia, ou no Ruanda ou na Ex-Jusgoslávia ou... E que, quando mais estes passarem e mais uns poucos encherem os bolsos e muitos encherem as covas escavadas a sete palmos, então, mais uma vez, ninguém recordará como foi e tudo voltará a ser o que cedo foi esquecido pelos caminhos mal trilhados da história que só se ri para os vencedores.

2018-08-25

Anónimos

Quando morre alguém que respeitamos, ou cujos familiares nos merecem respeito, cumprimos uma série de ritos próprios à ocasião, guardamos o luto, cumprimos os rigores do nojo. Depois, a vida segue, como segue sempre, mesmo quando uma qualquer partida, extemporânea ou não, nos leva um pedaço junto. Nas redes sociais, na net em geral, não há ritos nem respeito: esquarteja-se o cadáver até lhe mordiscar os ossos, especialmente se o morto nunca fez parte dos nossos seis graus de proximidade com o resto da (des)humanidade.

2018-08-24

Ponto da situação

Um dia cheguei a casa e criei um blogue. Ou melhor, comecei a criar um blogue...

Foi em 2004 e hoje faz anos. Ou melhor, hoje ainda não morreu.

2018-08-18

Recordando Barcelona

Cara a cara, as pessoas são boas ou más, gostas ou não delas, não importa nem cor nem religião nem ideologia. É a estranheza e a distância que trazem a desconfiança e o medo. Extremismos e fundamentalismos já nada têm a ver quer com credo, quer com cor, quer com política. Viraram cultos irracionais presos com cuspe às suas desculpas e argumentos fabricados. Só resultam pela desumanização do indivíduo, transformando o outro em arquétipo sem rosto, sem família, sem sangue.

Recuso-me a meter tudo no mesmo saco. Recuso-me à lavagem cerebral de qualquer culto. Recuso-me a não ver cada pessoa que se me apresenta como indivíduo. Porque há o cara a cara, porque se gosto de uma pessoa não importa cor ou religião ou ideologia; porque se ela gosta de mim, também não é pela minha cor ou a minha falta de religião ou ideologia.

Passou o primeiro aniversário do 17A. E houve demasiado ruído sobre cor, sobre credo, sobre ideologia. Foi um mau serviço prestado à História. E à memória das vítimas.

2018-08-10

Sombras

Tenho andado com sérias dificuldades em entender o sucesso do Sr. Grey e todas as declinações do tema que vão enxameando os escaparates como se fossem grande novidade. Mas talvez eu esteja velha demais e o meu Mr Grey ideal chamou-se John e teve a cara do Mickey Rourke antes dele a destruir à porrada. Em 1992 ainda tinha apelo e era subversivo e proibido e não me deixava apenas com vontade de fugir a sete pés de todas as relações com sabor doentio. Acho que já dei para esse peditório. Agora é decididamente baunilha. Com twists light, que estou de dieta.

2018-07-12

Autodeterminação de Identidade de género

Mesmo quando só me apetece insultá-los na maioria dos dias, mesmo que os insulte de facto, sabendo que é sempre um passo para a frente e dois para trás, rais'parta os políticos portugueses e as suas decisões. Cá está mais uma. Mais uma conquista sacada a ferros, quando ainda há bem pouco tempo Cavaco Silva queria proibir que quem já tinha mudado de sexo conseguisse mudar de nome. E nem sequer me choca a proposta chumbada do PSD. Também se tinha vivido bem com ela, não tão bem, mas muito melhor do que até agora. Bolas! Nasci durante uma ditadura durante a qual ninguém tinha direitos. No espaço da minha vida que não chega a ser ainda uma geração, o meu País e a minha sociedade, legislou e aceitou tantas liberdades que às vezes até acho que não sabem bem o que fazer com elas. Faltam as touradas? Faltam. A morte assistida? Também. Mas alguém duvida que, mais um passo para a frente e dois para trás e também chegamos lá?

2018-05-31

Eutanásia

Vou descobrindo que, quando se trata dos modelos com que a sociedade se escolhe regular, em Portugal nada se decide à primeira. Talvez seja característica da sociedade. Mas, depois, olho para a sociedade que temos, para os modelos que já se conseguiram alterar com e apesar a inépcia dos políticos portugueses e confronto-os com os modelos que fomos derrotando pelo caminho. Não estou mal nesta sociedade e com estes políticos que (ainda) não legislaram a eutanásia. Tantos outros modelos que pareciam impossíveis e fazem hoje parte das nossas liberdades (IVG, direitos LGBTQ, despenalização do consumo de drogas, até os direitos dos animais). Olhando para o mundo, olhando até só para a Europa, foram muitas mudanças em muito pouco tempo. Ao contrário de muitos, não tenho vontade de dizer mal deste Portugal. Tenho até bastante orgulho nele.

2018-04-24

Poemarma

"Que o poema tenha rodas motores alavancas
que seja máquina espectáculo cinema.
Que diga à estátua: sai do caminho que atravancas.
Que seja um autocarro em forma de poema.

Que o poema cante no cimo das chaminés
que se levante e faça o pino em cada praça
que diga quem eu sou e quem tu és
que não seja só mais um que passa.

Que o poema esprema a gema do seu tema
e seja apenas um teorema com dois braços.
Que o poema invente um novo estratagema
para escapar a quem lhe segue os passos.

Que o poema corra salte pule
que seja pulga e faça cócegas ao burguês
que o poema se vista subversivo de ganga azul
e vá explicar numa parede alguns porquês.

Que o poema se meta nos anúncios das cidades
que seja seta sinalização radar
que o poema cante em todas as idades
(que lindo!) no presente e no futuro o verbo amar.

Que o poema seja microfone e fale
uma noite destas de repente às três e tal
para que a lua estoire e o sono estale
e a gente acorde finalmente em Portugal.

Que o poema seja encontro onde era despedida.
Que participe. Comunique. E destrua
para sempre a distância entre a arte e a vida.
Que salte do papel para a página da rua.

Que seja experimentado muito mais que experimental
que tenha ideias sim mas também pernas.
E até se partir uma não faz mal: 
antes de muletas que de asas eternas.

Que o poema assalte esta desordem ordenada
que chegue ao banco e grite: abaixo a pança!
Que faça ginástica militar aplicada
e não vá como vão todos para França.

Que o poema fique. E que ficando se aplique
a não criar barriga a não usar chinelos.
Que o poema seja um novo Infante Henrique
voltado para dentro. E sem castelos.

Que o poema vista de domingo cada dia
e atire foguetes para dentro do quotidiano.
Que o poema vista a prosa de poesia
ao menos uma vez em cada ano.

Que o poema faça um poeta de cada
funcionário já farto de funcionar.
Ah que de novo acorde no lusíada
a saudade do novo, o desejo de achar.

E que o poema diga: o longe é aqui
e aponte a terra que tu pisas e eu piso.
Ah que o poema chegue ao pé de ti
e te diga ao ouvido o que é preciso.

Que o poema actue directamente sobre o real
nem que por vezes seja só o poeta em movimento.
Ah que o poema para ser original 
transforme em braços e acção o pensamento.

Que ponha sinos a tocar dentro das rosas
e seja mais que rosa flor de cacto.
Que o poema saiba ver dentro das coisas
a mão do homem feita poema em acto.

Que o poema me dispa de tudo o que não presta
e me transforme na sua própria acção.
Nem quero outra glória nem quero outra festa:
morrer como Guevara na Bolívia da canção.

Só tu, povo fardado de ganga azul
poderás dar-me a glória ou recusar-ma.
Aí vai o meu poema a minha taça do rei de tule
aí vai para ser arma!"

Manuel Alegre

2018-02-04

Espanha

Vi alguns dos vídeos e li algumas coisas que escreveu. Tinha-o resumido dentro da minha cabeça a um idiota extremista que exagerava para conseguir exposição neste tempo de youtubers e afins. Perdi-lhe o interesse com facilidade, como tantas vezes acontece com um qualquer fait-divers que me chama por momentos a atenção e rapidamente esqueço. E no entanto, as coisas nunca desaparecem definitivamente da minha memória. Parece que em 2014 foi condenado a dois anos de prisão por "enaltecimiento del terrorismo". Mas 2014 foi um ano muito diferente do que promete ser 2018 para Espanha. Agora Hasel pode ser condenado a 12 anos de prisão efectiva. E uma condenação destas em 2018 numa Espanha pós confusão na Catalunha, transforma um idiota num preso político e Espanha numa suposta democracia moderna que não respeita a liberdade de expressão, mesmo que seja a liberdade de expressão de idiotas extremistas à procura de exposição mediática.

2017-12-21

"Do They Know It’s Christmas"

Aqueles eram os anos que supostamente tinham enterrado as utopias floridas da década de 70, os anos do individualismo, do consumismo. Mas a fome em África, em forma de teledisco, fez filas nas ruas de gente que ia comprar um pequeno vinil para ajudar. Mesmo que a fome não tenha acabado e que a maioria soubesse que acabar com a fome nunca seria assim tão simples.

Eu olho agora para este Mundo de hoje e vejo-o seco, encrespado. Continua a ser Dezembro. Continua a fazer frio. E continua a não ser Natal para todos e a consoada universal é a miragem com que já ninguém se ilude.

Lembro-me de que chorei a primeira vez que vi o teledisco do "Do They Know It’s Christmas". Lembro-me que foi como que um soco no estômago. Estive a ver um vídeos de como foi criada essa primeira versão de um tema que se repete. Tantos anos depois, não há forma de ficar desactualizado.

Hoje em dia já não é só a fome na Etiópia e as mesmíssimas imagens de fome e dor e morte continuam sem pátria nem fim. De tal forma que quando se fala agora de fome de uma criança a que a guerra tirou tudo alguém logo vem lembrar que temos gente a morrer nas nossas ruas. Como se fossem mutuamente exclusivas.  Como se fome não fosse fome, sem cor, sem nome, sem geografia. Como se não houvesse lugar dentro de nós para lamentar todos.

Por toda a simbologia desta simples canção pop, do tanto que à data conseguiu e o tanto que nunca fomos capazes de conseguir, continua a ser um dos hinos do meu natal. Com tudo de bom e mau que isso possa acarretar, afinal nunca deixei de ser uma fedelha que cresceu nos anos 80.

Boas Festas!

2017-11-02

Catalunha - parte dois

Continuo sem saber muito bem os que vos dizer, Catalunha. Tirando a observação óbvia que Mariano Rajoy é um idiota, que o governo que o sustenta tem demasiados tiques autoritários e que vão acabar na História como incompetentes. Ou que visto daqui havia uma óbvia falta de vontade de diálogo construtivo da parte da  Generalitat, que bateu o pé e foi incapaz de encontrar outro rumo, não tendo também demonstrado grande inteligência ao deixar-se encostar à parede.

Mas há algo de profundamente errado quando, em 2017, numa suposta democracia, se derruba um governo democraticamente eleito e se enfia os seus membros na prisão com acusações de sediçao.

E não entendo: um governos central intervém porque não gosta do resultado dos votos num referendo, mas depois quer eleições? E se não gostar do resultado dessas eleições? Vai manipular o resultado ou meter todos os independentistas catalães na prisão?

Nunca estive convencida de que a independência fosse a melhor solução, quer para a Catalunha, quer para Espanha. Mas também não pensei que se chegasse ao extremo de ver presos políticos numa democracia moderna...

É! Continuo sem saber o que vos dizer.

2017-09-23

Catalunha

Não sei que vos diga, Catalunha. Eu, aqui neste canto que cerrou trincheiras e só durante 60 anos se deixou subjugar.
Mas sei que a violência gera violência e a violência de Estado faz do pacifista um revolucionário.
Cá do meu cantinho, gosto de imaginar uma Espanha unida, mas entendo a necessidade de emancipação.
Não vos conheço todas as razões, nem para dizerem sim, nem para dizerem não.
Reconheço-vos, no entanto, o direito a dizer, a votar, que assim se vive em democracia. Mesmo e especialmente se depois vos disserem que o vosso voto constitucionalmente não vale nada.
Votar vale sempre a pena: é a única arma que faz sentido para um povo que queira esconjurar a ditadura.

2017-09-04

Irresponsáveis!

Em 1992, quando a China e a França ratificaram finalmente oTratado de Não Proliferação de Armas Nucleares, parecia que, por fim, o terror nuclear ia para os livros da história da minha adolescência. As guerras seguintes, por mais pérfidas e mortíferas (ex-Jugoslávia, Ruanda, Kosovo...) eram "à moda antiga", ou rápidas e clínicas como a primeira guerra do Golfo. O terrorismo endémico da Europa ia-se esvaindo e sobrava o terrorismo pirotécnico para consumo massificado da Al-Qaeda ou do Daesh. Não pensei ter de voltar a ter medo de uma bomba H durante a minha vida. Não pensei que o mundo andasse assim ao para trás, com uma cambada de irresponsáveis a brincar com coisas demasiado sérias. Como se o que andamos a fazer ao clima não fosse suficientemente grave para a saúde do Planeta. :-(

2017-08-24

Moribundo, mas não morto!

Um dia cheguei a casa e criei um blogue. Ou melhor, comecei a criar um blogue...

Foi em 2004 e hoje faz anos :-)