aquiÀs vezes penso que qualquer coisa me deve ter passado muito ao lado, algures durante o processo de construção da minha identidade. Acho que nunca questionei o meu corpo em termos de identidade sexual. Questionei-o por todos os motivos, mas não em termos de identidade. Odiei-o de todas as formas e feitios, mas nunca pensei que podia ter antes outras formas e feitios. Como nunca questionei sequer a minha personalidade. Não gostava particularmente dela, era difícil, mas nunca pus em causa que fosse a minha. Como nunca questionei as opções de outros, nem as suas dúvidas, as suas questões com os corpos e as identidades. Ou sequer me pareceu alguma vez estranho que corpos e identidades andassem de mãos dadas, mas não fossem mutuamente exclusivos. E, sim, deve-me ter passado alguma coisa ao lado. Só pode ter-me passado qualquer coisa ao lado. E às vezes acho que deve ter tido a ver com o facto de não me terem dado uma educação de catecismo. Não vejo mais nada diferente, tirando esta coisa de não me terem tentado enfiar valores pela goela abaixo, como um qualquer batido de medos e espartilhos. E para mim foi fácil não me perder nos preconceitos sobre a sexualidade para questionar a valia de alguém. Pessoas são pessoas e valem o que valem, para além dos corpos, das identidades, da sexualidade. E os corpos valem a pena e as identidades valem a pena e a sexualidade vale a pena. Mas não precisa ser igual à minha. Aliás, para quem nunca teve uma boa relação com o próprio corpo, não deveriam nunca ser opções iguais às minhas. E deve ser por isso – ou então é só mesmo da falta dos cigarros – que perco a paciência a ler certas apreciações sobre a homossexualidade. E, raios!, há ali qualquer coisa de disco riscado e de medo e de ideia regurgitada. E vem sempre à baila quando não há mais assunto. Ou então quando o mundo foge à regra – o que é quase sempre, mas há quem não note – e resolve sair à rua em parada festiva e emplumada.