2011-03-17

Do outro lado do mar

Eu, soldado raso, me confesso.
Não morri ainda, quase vivo.
Uns querem que eu morra.
Outros que eu viva.

A quem me afirmo, sendo morto-vivo?

Com que expressão
posso nomear-me?

Ninguém quis saber da minha vida
nem do que eu sentia.

Eu, soldado raso, digo:
não trapaceiem comigo.
Sou homem,
não sou palha.
Sou homem
dentro da farda.
Ruy Cinatti - Tropa d'África


Quantos de nós tiveram colegas sem pais, ou porque fugidos a salto, ou porque mortos numa guerra que os forçaram a fazer durante dois, três, quatro anos? Quantos os receberam mutilados física e psicologicamente e depois os viram esquecidos, como as campas perdidas e já sem nome, cobertas de erva seca, dos lá longe enterrados e que nunca houve vontade política para fazer regressar? Quantos dos vossos filhos apenas sabem dos avós que voltaram numa caixa de pinho do outro lado do mar? Quantos ainda guardam aerogramas em casa? Quantos de nós se atrevem a enaltecer a vergonha que foi a sangria que, em África, enterrou em violência e tristeza o último estertor do Estado Novo?

4 comentários:

I. disse...

O meu pai era amparo de mãe, miope como uma toupeira, e ainda assim foi preciso uma palavrinha amiga para não ir (naquele tempo até os coxos e marrecos iam parar ao ultramar). Ainda bem que não foi, se não morresse fisicamente morria por dentro. Como tantos pais de amigos e colegas.
(a comparação do presidente deu-me nojo, nojo, é mesmo de uma pessoa que não conhece a história)

Anita dos Anjos disse...

Lindo poema... Emocionante, suave e triste!
"Respeito aos que lutam!"
Um bj...
Terminei meu Conto, passa no blog e confere... bye bye

Hipatia disse...

O meu pai não foi por sorte, que estava prontinho para embarcar e nunca chegou a ir. Mas esteve lá família: Guiné e norte de Moçambique. Parece que pior não podia haver.

E o presidente só me tem dado nojo, caraças! Há anos e anos. Mas agora ensandeceu :(

Hipatia disse...

Entre 1961 e 1974, Portugal esteve envolvido numa medonha guerra colonial. Agora que o aniversário tem número redondo, todos se apressam a dizer umas coisas. O pior é que o presidente da república recém reeleito também gosta de dizer coisas e, de cada vez que abre a boca para fazer um discurso de circunstância, acaba a dizer disparates, o que não seria grave vindo de onde vem, não fosse o cargo que empossa um assunto tão sério.

E olha que eu leio :)