2013-09-23

RIP




Não sei se respondo ou se pergunto. 
Sou uma voz que nasceu na penumbra do vazio. 

Estou um pouco ébria e estou crescendo numa pedra. 
Não tenho a sabedoria do mel ou a do vinho. 
De súbito, ergo-me como uma torre de sombra fulgurante. 
A minha tristeza é a da sede e a da chama. 
Com esta pequena centelha quero incendiar o silêncio. 
O que eu amo não sei. Amo. Amo em total abandono. 
Sinto a minha boca dentro das árvores e de uma oculta nascente. 
Indecisa e ardente, algo ainda não é flor em mim. 
Não estou perdida, estou entre o vento e o olvido. 
Quero conhecer a minha nudez e ser o azul da presença. 
Não sou a destruição cega nem a esperança impossível. 
Sou alguém que espera ser aberto por uma palavra. 

António Ramos Rosa - Uma Voz na Pedra

4 comentários:

deep disse...

Os poetas permanecem naquilo que escrevem. Valha-nos isso.

Hipatia disse...

Valha-nos mesmo.

No FB, para ser mazinha com uns amigos mais impressionáveis, deixei este de homenagem:

«Tu pensas
que os cardeais
não se masturbam,
que não vêem
as telenovelas,
que vêem, quando muito, os filmes de Bergman
e o Evangelho segundo São Mateus de Pasolini.
Não, eles nunca lêem os livros pornográficos
e nunca pensaram em ter amantes.
Eles não conhecem o turbilhão das visões
das figuras eróticas,
eles lêem os exercícios espirituais
de Santo Inácio
e têm o odor da santidade
e irão para o céu porque nunca pecaram,
nunca acariciaram um pénis,
nunca o desejaram túmido e ardente
na sua boca casta.

Ah os cardeais como são exemplares
mesmo quando os espelhos os perseguem
com os membros e órgãos de mulheres
na fulguração da nudez liquida e candente!

Todavia eu conheço a obstinada chama
do desejo,
a sua glauca ondulação,
os seus olhos deslumbrados pela oceânica
vertigem
de um corpo embriagado pela sua simetria
e pela volúvel coerência
dos seus astros dispersos.

Não, eu não creio na inocência imaculada
dos solenes cardeais.
Eu sei que a sua carne é a mesma argila
incandescente e turva
de que o meu corpo frágil é composto.
Eles conhecem o sofrimento de ser duplos,
o vazio do desejo,
a violência nua das imagens monstruosas,
a adolescência do fogo nos labirintos negros.

Mas eu sei que os cardeais não gritam,
nem levantam a voz,
nem atravessam a fronteira do pudor
e adormecem ao rumor das orações.
É esta imagem que eu quero conservar
na religiosa monotonia do meu sono.»

António Ramos Rosa - Tu Pensas que os Cardeais

deep disse...

Muito bom! Irónico, directo, lúcido e provocador q.b.!

Hipatia disse...

Fantástico e sempre actual. Era um génio!