2004-08-24

Eu e as máquinas

Creio que o automóvel é hoje o equivalente bastante exacto das grandes catedrais góticas: quero dizer, uma criação que faz época, concebida com paixão por artistas desconhecidos, consumida na sua imagem, senão no seu uso, por um povo inteiro, que através dela se apropria de um objecto perfeitamente mágico.

(...) É preciso não esquecer que o objecto é o melhor mensageiro do sobrenatural: há facilmente no objecto, ao mesmo tempo, uma perfeição e uma ausência de origem, um acabamento e um brilho, uma transformação da vida em matéria (a matéria é muito mais mágica do que a vida), numa palavra, um silêncio que pertence à ordem do maravilhoso.

Roland Barthes - Mitologia


Como quase toda a gente que conheço, tenho um carro. Um carro não muito velho nem muito novo. Um carro que ainda anda e me leva onde quero ir. Um carro que gosta de óleo, adora óleo, gosta quase mais de óleo do que de gasolina. Acho que tenho um carro oleólico. Um bêbado!.

Gosto do meu carro. E, no entanto, trato-o mal. Não o lavo muitas vezes, nem esfrego, nem trato de o polir. Mas ele leva-me, sem reclamar. Vai onde me apetece ir. Dá-me liberdade. Dá-me tempo de fuga. Dá-me um horizonte.

Sim, eu sei. Devia começar a tratar melhor do meu carro. O Barthes tem razão: é uma catedral. E é, sem dúvida, onde rezo, onde me inspiro, onde ponho os pensamentos em ordem. A máquina e eu em comunhão. O meu sagrado sobre quatro rodas...

Sem comentários: