2004-08-30

Sorriso

Tenho um sorriso fechado
na palma da minha mão.
Sorriso que foi achado
caído no meio do chão.
Um sorriso que era vento
desenrolado do azul
em que as minhas velas pandas
se enfunaram para o Sul,
rumo a qualquer fim do mundo!
Uma ilha tropical
onde o meu corpo confundo
com vento suor e sal.
Era esse o teu sorriso:
o sorriso que me davas
quando os teus olhos nos meus
eram dois potros com asas.
À tua espera na praia
fiquei pela tarde fora,
no alto daquele rochedo
onde um minuto é uma hora!
E não vi o teu sorriso
surgir da areia ou do mar.
Nem tive um porto de abrigo.
Nem foste um barco a chegar.
Se me disseste que morreste
não acredito. Não posso!
Andavas sempre comigo
e o teu sorriso era o nosso...
Hoje guardo o teu sorriso
fechado na minha mão.
A contrastar com o siso
que trago no coração.


Trovante – 84


Todos temos canções especiais, aquilo que é usual chamar as canções da nossa vida. A maior parte delas, recordam-nos momentos a dois, são a banda sonora de um qualquer romance. Ou de um quase-romance...


Este "sorriso" que ainda hoje adoro, com o seu sabor agri-doce, põe-me um sorriso nos lábios. Lembra-me uma praia com um areal perfeito, uma água quente com a profundidade certa e a clareza das águas das praias ainda semi-virgens. Lembra-me a rota que foi minha, durante anos a fio, até um recanto perdido que já não existe, foi podado, urbanizado, comercializado. Lembra-me o cheiro dos pinheiros mansos, logo de manhã, ou o pão alentejano ainda quente, a acompanhar uma chávena de leite com chocolate amargo em pó. Lembra-me bolas de berlim a serem vendidas na praia. Lembra-me a aventura de ir à noite até à esplanada, de ir ao Kiss e sentir-me, finalmente, crescida...

Mas, em especial, este "sorriso" lembra-me uma das minhas primeiras paixões. Recordo uns olhos verde-água numa cara morena e um sorriso de dentes brancos e os mergulhos espalhafatosos para fazer vista para as meninas. E recordo a quantidade de meninas, quase histéricas, abonecadas. Recordo-as lindas, perfeitas, charmosas e femininas. Como recordo a electricidade que me percorria o corpo com a ideia "dele". Recordo a vontade de parecer bonita, ou como lamentei ter cortado o cabelo ainda mais curto na véspera da viagem. Lembro das ânsias de dizer coisas interessantes. Da forma como fumava um cigarro com ar desligado, perfeitamente artificial, enquanto olhava o mar cheia de vontade de o olhar a "ele". Lembro das tardes ao sol e o cheiro a sal e a maresia e a "ele", deitado na toalha ao lado da minha a falar de The Mission ou dos Clash.

Mas, acima de tudo, esta canção recorda-me o meu primeiro amor falhado. O quanto doeu ver a escolhida e não ser eu. O miserável, feia, que me senti, ao lamentar não ser suficientemente bonita, interessante, para merecer aquele mesmo beijo roubado a que, atónita, assisti. Porque esta é a primeira canção ao som da qual tentei remendar os pedaços de um coração adolescente e sarar a minha primeira, dolorosa, gigantesca, dor de corno.

Mal eu sabia o tanto que ainda estava para acontecer e as tantas das músicas que ainda iam surgir.

Os amores de verão enterram-se na areia e numa canção. Depois, muito depois, recordamo-los com um sorriso...

2 comentários:

Anónimo disse...

Há sorrisos inesquecíveis...
E músicas tristes que gostamos de ouvir eternamente.


Dead Letters

Hipatia disse...

Nunca mais tinha voltado a este post. É uma vergonha confessá-lo, mas só hoje vi este comentário. E sem link onde ir pedir desculpas, como deve ser.

Mas queria mesmo assim agradecer a simpatia. Agradecer a visita. E mandar um sorriso.

Fico à espera de nova visita, espero que a minha distracção não impeça o regresso :)