Confesso que fui apanhada de surpresa pelo pedido: "Será que posso enviar, de vez em quando um texto, para este Blog, casa tua?"
Que se responde a isto? Que dizer a quem achou o nosso blogue merecedor de um esforço de escrita, que se sentiu tão em casa que quis poder tirar os sapatos e sentar-se na cadeira mais confortável?
Diz-se o óbvio: "força!"
Não sei o que o Gaivina viu na Voz que tanto lhe tenha agradado. Mas, depois de ler o texto que nos deixa, eu só posso dizer: obrigada, Gaivina!
E agora vou escolher uma cor bonita para as palavras do Gaivina. Eu manterei o meu azul cueca.
E deixo-vos então "As cartas".Gaivina
Não se sabe muito bem, quando Rosa começou a escrever cartas a si própria. A mãe lembrava-se de ter aberto, um dia, a caixa do correio e retirando de lá uma carta proveniente de Buarcos, escrita pela filha e dirigida a ela mesmo. Rosa era ainda uma menina, mas respondera-lhe prontamente “que as tinha escrito para guardar as coisas boas que tinha sentido nas férias”. Tinha medo de se esquecer de tudo quanto vivera naquele areal debruçado sobre o azul e, assim, a melhor forma de guardar aqueles sentimentos era dentro de uma carta.
Eram as cartas de Rosa como pequenos contentores de emoções vividas, preservadas para posterior consulta. Exactamente, como quem não quer perder o pé na vida deixando escapar, sabe se lá por onde, um sentimento precioso habitado no passado. Cada vez que se ausentava, de casa, mesmo que por pouco tempo, escrevia a essa outra leitora que era ela mesmo.
Agora mulher, a sua filha Rosa, anunciara perante toda a família que iria partir pela Europa fora. E, como é bem sabido, não vale a pena contrariar uma mulher que quer trilhar novos caminhos. A mãe e o irmão não tiveram outra alternativa senão aceitar a decisão.
Passadas umas semanas, chegara a primeira carta dirigida à própria viajante. Habituado aos desvarios da irmã, João entregou a carta à mãe que a guardou na gaveta das meias. E as missivas foram chegando espaçadas, tal e qual se sucedem as estações do ano. Ao fim de uns tempos, passaram a chegar todos os meses, algo a que a mãe atribuía a uma densidade de emoções que estavam a ser vividas pela filha, sabe-se lá onde.
Entretanto a saudade e os cuidados foram apertando o coração da velha mulher.
O irmão cuja vida era feita de terra e local, pouco pensava no destino da irmã. Apenas se limitava a entregar as epistolas à mãe, que as reunia em pequenos molhinhos atados por fitas coloridas no fundo da gaveta das meias.
Mas um coração materno tem limites face a uma ausência tão acentuada.
Por essa altura, começaram as cartas a chegar todas as semanas e, ao fim de um tempo, o carteiro trazia todos os dias uma carta destinada à “menina Rosa”.
Os cuidados da mãe, subiram ao coração com uma pressa de maré cheia.
Um dia, de carta na mão, decidiu-se a cometer o mais vil de todos os crimes: violar a correspondência. Angustiou-se com a ideia, mas o vazio uterino de quem espera uma filha falou mais forte. Pegou numa faquinha de prata e abriu o envelope, bebendo com sofreguidão a escrita.
E a filha falava em saudades de casa, da mãe e do irmão, sentindo até falta da geada cobrindo os campos.
A mãe deixou escorregar a carta para o chão enquanto limpava uma lágrima teimosa: Rosa estava prestes a chegar.
Gaivina