2008-08-06

Encanecer

Mas quando um ano acaba e outro vem,
Embora a minha fronte e os meus cabelos
Envelheçam na marcha para o fim
E um sabor de renúncia e de cansaço
Vibre, cantando, aqui, dentro de mim,
Rebenta-me no peito uma esperança


António Botto, in "As Canções de António Botto"


Chamo-lhe curiosidade. A minha. Faz-me ficar atenta, desperta. Enche-me até hoje de prazer ao descobrir que cheguei a uma nova encruzilhada e, ainda assim, ser capaz de traçar um caminho.

Chamo-lhe sentido de humor. O meu. Há dias em que funciona e permite-me o desconcerto de me rir de mim e rir comigo e rir com os outros.

Chamo-lhe sentido prático. O meu. O tal que me leva ao cabeleireiro tingir os cabelos, para que as cãs não me pesem os anos que não sinto.

Chamo-lhe ainda esperança. A minha. Aquele optimismo pachorrento que, tanta vez, me faz sentir o corpo vivo e a vontade certa para os recomeços.

Como chamo também apatia. A minha. Uma que tolhe os movimentos, que se enfeita de gestos gastos e de rotinas onde aponho muitos dias sucessivos.

Chamo-lhe cansaço. O meu. Um que me impele para os silêncios no fim da tarde, para a necessidade de não pensar em nada, para o não querer sentir nada, para o deixar o tempo passar.

Chamo-lhe ainda medo. O meu. Muito medo de perder algum controlo sobre os passos que me sustentam. Ou medo da doença. Ou medo das perdas. Ou medo da solidão.

Chamo-lhe preguiça. A minha. Uma que me impede de telefonar mais vezes, escrever mais vezes, pôr conversas em dia mais vezes, sempre à espera da oportunidade que há-de vir e que, cada vez mais, me assusta quando não vem.

Chamo-lhe acasos. Os meus. Quando me confronto com questões sem resposta ou respostas sem questões. Quando o tecto me desaba ou um piano me cai em cima da cabeça. Ou quando a palavra do outro, a palavra certa, me perfura e magoa ou embala e conforta.

Chamo-lhe paz. A minha paz. Quando nada disso me importa e me sinto de bem com o mundo, cheia de força, cheia de sorrisos, cheia de fome de vida. Ou ainda que cheia de engulhos, com vontade plena de combater cada um deles, certa que a vitória é minha.

Chamo-lhe sofreguidão. A minha. Esta vontade de sentir plenamente, afogar-me em sensações, construir-me da curva do espaço-tempo e sonhar a imortalidade.

E talvez lhe chame também fé. Uma fé à minha maneira, apeada de dogmas e deuses vingativos ou sofredores, sempre castradores e injustos. Uma fé na fé, às vezes na utopia. Uma fé em mim, conquistada pelos anos que me pesam no corpo, mas deixam-me a mente ginasticada e, em alguns dias, em plena forma.

Se encanecer é envelhecer, então eu prefiro que me mirre o corpo, que me esclerosem as articulações, mas que as sinapses se mantenham vivas. A minha idade está mais na minha cabeça do que no meu corpo. Mesmo quando o corpo reclama. Mesmo que tenha até razões para reclamar.



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(acho que 2005 foi um bom ano)

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