2005-05-09

Encanecer

Abro um sorriso do tamanho do Mundo e prendo-me nos braços quentes da ternura.

Confesso um pecadilho com a inocência de uma criança e passeio os olhos pela tarde.

Remeto ao silêncio a canseira quotidiana, celebrando a vida engalanada nos rostos da esperança.

(ou a minha forma de responder a
este desafio)



Chamo-lhe curiosidade. A minha. Faz-me ficar atenta, desperta. Enche-me até hoje de prazer ao descobrir que cheguei a uma nova encruzilhada e, ainda assim, ser capaz de traçar um caminho.

Chamo-lhe sentido de humor. O meu. Há dias em que funciona e permite-me o desconcerto de me rir de mim e rir comigo e rir com os outros.

Chamo-lhe sentido prático. O meu. O tal que me leva ao cabeleireiro tingir os cabelos, para que as cãs não me pesem os anos que não sinto.

Chamo-lhe ainda esperança. A minha. Aquele optimismo pachorrento que, tanta vez, me faz sentir o corpo vivo e a vontade certa para os recomeços.

Como chamo também apatia. A minha. Uma que tolhe os movimentos, que se enfeita de gestos gastos e de rotinas onde aponho muitos dias sucessivos.

Chamo-lhe cansaço. O meu. Um que me impele para os silêncios no fim da tarde, para a necessidade de não pensar em nada, para o não querer sentir nada, para o deixar o tempo passar.

Chamo-lhe ainda medo. O meu. Muito medo de perder algum controlo sobre os passos que me sustentam. Ou medo da doença. Ou medo das perdas. Ou medo da solidão.

Chamo-lhe preguiça. A minha. Uma que me impede de telefonar mais vezes, escrever mais vezes, pôr conversas em dia mais vezes, sempre à espera da oportunidade que há-de vir e que, cada vez mais, me assusta quando não vem.

Chamo-lhe acasos. Os meus. Quando me confronto com questões sem resposta ou respostas sem questões. Quando o tecto me desaba ou um piano me cai em cima da cabeça. Ou quando a palavra do outro, a palavra certa, me perfura e magoa ou embala e conforta.

Chamo-lhe paz. A minha paz. Quando nada disso me importa e me sinto de bem com o mundo, cheia de força, cheia de sorrisos, cheia de fome de vida. Ou ainda que cheia de engulhos, com vontade plena de combater cada um deles, certa que a vitória é minha.

Chamo-lhe sofreguidão. A minha. Esta vontade de sentir plenamente, afogar-me em sensações, construir-me da curva do espaço-tempo e sonhar a imortalidade.

E talvez lhe chame também fé. Uma fé à minha maneira, apeada de dogmas e deuses vingativos ou sofredores, sempre castradores e injustos. Uma fé na fé, às vezes na utopia. Uma fé em mim, conquistada pelos anos que me pesam no corpo, mas deixam-me a mente ginasticada e, em alguns dias, em plena forma.

Se encanecer é envelhecer, então eu prefiro que me mirre o corpo, que me esclerosem as articulações, mas que as sinapses se mantenham vivas. A minha idade está mais na minha cabeça do que no meu corpo. Mesmo quando o corpo reclama. Mesmo que tenha até razões para reclamar.


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1 comentário:

Anónimo disse...

Mais Vozes

Hipatia, fico sem mais palavras q estas para dizer q as esgoto e as perco quando me quedo perante a beleza e a intensidade e apenas o silêncio é homenagem e abraço. Abraço imaginado que chega aí desse lado, eu sei : )
vague | Homepage | 05.09.05 - 11:33 pm | #

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Obrigada, Vague.

No abraço que devolvo vão as tantas saudades que sinto de ti, a falta que me fizeste
Hipatia | Homepage | 05.10.05 - 12:37 am | #

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Como sempre agarraste o desafio e envolveste-o como um polvo tocando (com os seus imensos braços) em cada ponto com a intensidade que Vague tão bem salientou!!!


Mas o envelhecer não é também sentido como um sinal (sempre presente) do caminho que todos percorremos para a morte? Para a separação, para a perda?
CotaMarada | 05.10.05 - 1:04 am | #

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Hoje é, sem dúvida, dia de me apetecer fazer minhas as tuas palavras. Todas. Acho que é por isso que despontam gargalhadas e sorrisos ao mesmo tempo
1poucomais | Homepage | 05.10.05 - 1:54 am | #

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Hipatia +*+**
vague | Homepage | 05.10.05 - 10:52 am | #

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Claro que sim, Cota. Mesmo que tantos morram jovens. "Quero viver depressa, morrer cedo e deixar um cadáver bonito de se ver", ou algo assim, era o que dizia o James Dean. Mas seria realmente bonito o corpo que saiu daquele carro torcidado? Não sei. E também não importa, porque até há muitos jovens demasiado encanecidos. É que também se pode ficar gasto bem jovem. Como estar em perfeito estado no fim da vida. Talvez seja tudo uma coisa de disposição para envelhecer bem, viver bem, não desistir
Hipatia | Homepage | 05.10.05 - 7:07 pm | #

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A cumplicidade é sempre uma coisa difícil. É por isso que tenho sempre tanta vontade de a preservar. No fundo, é um fenómeno. Ou não tivéssemos já atravessado o Entroncamento juntas
Hipatia | Homepage | 05.10.05 - 7:17 pm | #

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Vague, beijo
Hipatia | Homepage | 05.10.05 - 7:19 pm | #