2010-04-08

As sandálias do pescador

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«O porta-voz do Vaticano, Pe. Federico Lombardi, refutou as denúncias do jornal alemão “Stern”, que [acusou] Bento XVI de ter arquivado a investigação sobre pedofilia ligada ao religioso mexicano Marcial Maciel.»

in Agencia Ecclesia


O tempo dos mitos e dos medos há muito que foi escorraçado pela razão e pela ciência, ainda que tanta vez a crendice ameace instalar-se até entre os que se julgam mais esclarecidos. Mas os rebanhos já não encaram a fé e a crença por medo do além, do diabo, do que poderá estar para além da morte, dos sussurros que se escondem nas noites escuras sem luzes municipais. A fé é agora opção, as regras da fé e os seus dogmas são escolhidos a dedo em função dos interesses de quem escolhe, os fiéis tornaram-se não praticantes (nunca vou entender o que isto quer dizer!), não há dízimos obrigatórios para sustentar toda a parafernália e a crise da crença alastra, açoitada pelas crises de vocação que deixam os conventos vazios, as paróquias sem pastor, as igrejas sem fiéis, os divórcios, os casamentos civis, os padres que fogem para casar, as seitas concorrentes, o agnosticismo crescente e o ateísmo sem sobressaltos.

No meio disto, há uma Igreja que também é um Estado, com hierarquias e intrigas, correntes que apoiam este e aquele, interesses políticos misturados e sobrepondo-se à vocação de encaminhar as almas. E onde há homens – onde há políticos – há bom e mau, há gente séria, há sacanas e, sim, há até pedófilos.

Sobre os ombros deste Papa cai hoje a responsabilidade de reestruturar a sua Igreja. Não me parece que seja homem para o conseguir. Há muito que a Igreja vive aprisionada nas suas leis eclesiásticas, nos seus tabus, nos seus dogmas, nos seus costumes. Sobreviveu assim durante séculos e é resistente à mudança: porque a mudança pode ser catastrófica nos impactos que tenha sobre linhas ténues de poder, quer o poder que detêm os homens que fazem ainda esta Igreja, quer o poder de continuar a ser "a" Igreja, com o seu chefe supremo a quem todos devem vassalagem (por mais simbólica), até os líderes mais ateus ou laicos.

E se o poder corrompe, no seio da ICAR pode corromper duplamente: em mais nenhum caso se poderia sustentar qualquer falácia com base do mito da infalibilidade papal. Como pode Bento XVI mudar seja o que for, ou corrigir até o que fez, se a sustentação para o que é e como é tem bases na tradição, nos dogmas, no costume, até mesmo nos actuais sustentáculos da própria existência possível e continuidade da ICAR num mundo que, cada vez mais, apenas a reconhece como símbolo enquanto lhe retira poder? O poder simbólico é forte, mas nada tem a ver com o poder que advém do medo que reuniu a humanidade sub sino.

No final do filme a que roubei o título, o novo Papa "comunista" prepara-se para abrir os cofres da ICAR e salvar o mundo. Na terra dos sonhos, é assim fácil. No mundo dos filmes, é possível abrir cofres só porque sim e não há casamentos entre pessoas do mesmo sexo, ou divórcios, ou abortos, ou contracepção, ou ordenação de mulheres, ou homens falíveis capazes de violar crianças. E mesmo que às vezes pareça que a hierarquia da ICAR vive num mundo de faz de conta, a verdade é que a realidade lhe bate todos os dias à porta. E é preciso lidar com ela. E é preciso lidar com pessoas - ordenadas ou não - que fazem o rebanho que resta.

Numa Igreja cujo poder se resume cada vez mais ao simbólico e a ser por tradição do que foi, como pode um Papa, ainda por cima reaccionário e conservador, prescindir da infalibilidade de todos os que o precederam, negar costumes e regras, baixar o véu da aparência da fé para mostrar as negociatas do poder e o feio que vem com elas e aceitar a mudança de alguma forma e feitio?

Sócrates e Sarkozy, Putin e Clinton, Blair e Mitterrand, Bush e Zapatero, bem como todos os outros que nem vale a pena aqui mencionar, preocupam e preocuparam-se sobremaneira com a imagem. A seus olhos, dela depende a sua credibilidade e o seu poder. Sobre os ombros do Papa, cai o dogma da sua infalibilidade, sendo que, se perde o controlo, não serão perdidas apenas as próximas eleições. Será toda a estrutura da própria Igreja que tombará e ninguém sabe o que pode aparecer em seu lugar.

A pedofilia existe em todo o lado. Não é um fenómeno exclusivo dos padres, ou sequer dos padres católicos. E os padres são homens. Que os julguem enquanto tais. Que julguem como homens quem escondeu e fomentou ou apenas permitiu crimes, quer fechando os olhos, quer de forma activa. Mas campanhas mediáticas de autos-de-fé em jornais ou na net são apenas reminiscências dos actos inquisitórios a que até a própria ICAR virou as costas. E reduzir a Igreja aos crimes de uns quantos é, no mínimo, redutor. E, por mais que não goste de Bento XVI, gosto ainda menos de Torquemadas laicos imbuídos de uma qualquer mania evangelizante.

6 comentários:

Anónimo disse...

Bem, estou completamente siderado com as tuas palavras, ou melhor, com as palavras escritas por ti...! Mesmo. Céus!, que texto mais ponderado. :p

(aplaudo e subcrevo quase tudo)

Hipatia disse...

Mas estás a chamar-me irresponsável, gajo? Ou só às palavras escritas por mim no resto dos dias?

Anónimo disse...

Estou, espantado, a chamar-te PONDERADA nestas questões onde costumas ser tão... tão mais radical...? :D

Hipatia disse...

Só não gosto de autos-de-fé e caça às bruxas. Nunca gostei. Quando critico o que fazem a Sócrates, não é por gostar especialmente do Sócrates: é por não gostar dos Torquemadas. Aplico a mesma regra a Bento XVI, mesmo não esquecendo que foi a igreja que ele hoje preside que inventou o Torquemada original.

E continuo na minha: do que li no outro comentário, não é só sobre a Igreja. Estavas a dizer que, tirando este, TODOS os meus textos são irreflectidos.

Anónimo disse...

Nada disso, não extrapoles, cingi-me a estas questões de religiosidade e outros espaços siderais. Sabes disso, ó...!

Hipatia disse...

E, no entanto, não quer dizer que não concorde (quase) na totalidade com o que te mandei para o e-mail. É que não faço a defesa, nem quero fazer, do Papa e da forma como agiu para ajudar a esconder esta pouca vergonha e quem praticou cada um dos actos: deviam ser punidos, porque o crime obedece à lei geral e não à lei eclesiástica, que se devia ficar pela qualificação dos pecados, com os praticantes e os não praticantes a escolherem os que dão jeito, como fazem em relação ao resto. Havendo provas que qualquer homem, até um papa, cometeu um crime, então que não fique sem castigo. Mas os crimes julgam-se nos tribunais e não na praça pública. E nunca, mas mesmo nunca, se deveria imputar à totalidade os crimes de alguns.