2006-12-10

A insultuosa presença


aqui


Os nomes dos indignos saltam e repetem a sua insultuosa presença, os traidores, ainda longe do inferno dantesco a que pertencem…

Luís Sepúlveda – Uma História Suja

Estou aqui contente com a morte de alguém. É uma coisa estranha, muito estranha, como se carregasse na minha carne ou na minha memória um 11 de Setembro de quando tinha dois anos e ainda mal sabia o que era o Mundo. Como se o Chile achincalhado, mordido nas canelas pelos poderes dantescos dos interesses de uns poucos e depois espremido e sangrado, até já quase nada restar, pelo louco homicida que se sentou na cadeira do poder, fosse meu para chorar, em toda a sua horrenda tragédia.

Se fechar por breves instantes os olhos, a imagem que vejo é de um louco decrépito, alheado completamente da realidade, a sair de um Tribunal. Se procurar mais fundo em mim, vejo uma qualquer fotografia de homem fardado em que sempre tive vontade de pintar a cauda e os cornos do diabo.

E resta também um gosto de frustração. Porque o monstro morreu, mas os crimes permaneceram calados e escondidos e não houve condenação.

Mas está morto! Que o enterrem bem fundo. Que não lhe sobre mais que um buraco bem fundo e que a carcaça seja comida rapidamente. Demorou a extirpar este tipo do reino dos vivos. E foi-se louco. Devia ter ido consciente, lúcido, cuspido pelo sujo que representou.

Mas deixamos de estar sujeitos à sua "insultuosa presença". Foi tarde. Demasiado tarde. Muito mais tarde que Allende. Mas talvez hoje, finalmente, Allende descanse em paz, por fim vingado pela Morte que a ninguém perdoa.

15 comentários:

deep disse...

Porque a morte não perdoa a qualquer um é que ela se revela uma pena insignificante para "monstros" como este e outros que tais...

TheOldMan disse...

Quem eu melhor recordo desse Chile, é Vitor Jara; a quem cortaram as mãos por ter ousado compôr canções de protesto.

;-|

vague disse...

eu não estou contente nem triste. nem sequer podemos dizer q ele teve o q merecia pq a morte é inevitável.
é pena (muito) que não se tenha feito justiça em tempo útil. mas isso agora, olha, paz à alma de todos os que sofreram.

Lisa disse...

Ai, que esta carranca acompanhou toda a minha vida como a imagem de um tenebroso ditador! Tinha dois anitos quando se deu o golpe, mas a imagem do monstro gravou-se-me na memória enquanto cresci, à medida que ouvia contar as suas atrocidades.
A história o julgará. Preferia um tribunal e uma sentença, mas... é o possível.
E morreu, viva, morreu.

Filipa Paramés disse...

"Mas está morto! Que o enterrem bem fundo."


já vai atrasado. Não se perde nada agora.
Mas já se perdeu imenso numa dita altura...

beijinho grande

Anónimo disse...

Deixa lá que não estás sózinha na alegria.

Maria Arvore disse...

Só desejo que a terra lhe seja pesada!

O teu título é soberbo e pelo menos, acabou a sua insultuosa presença.

Hipatia disse...

A este, Deep, a Morte perdoou tempo demais :(

Hipatia disse...

Agora, Old Man, talvez só reste La Funa para os algozes mandados e cobardes, todos os que ainda estão vivos para responderem por todos os crimes. Este cabrão conseguiu escapar.

Hipatia disse...

Se existe Inferno, Gaivina, se há algum sítio onde os crimes não ficam sem castigo, como nesta terra amarrotada por uns quantos interesses de muito poucos, então que sofra muito e muito, mas mesmo muito, devagarinho.

E são tantos os nomes dos que tiveram que fugir! E são tantos os nomes dos que não puderam escapar! E são tantos os nomes dos que ainda não têm descanso, nem dão descanso a quem os chora, por terem simplesmente desaparecido!...

Hipatia disse...

Será que as almas têm paz enquanto não são vingadas, Vague? E há demasiadas almas que nem com esta morte tardia e apodrecida poderão ser vingadas...

Hipatia disse...

Somos da mesma idade, não é, Lisa? E suponho que tu, tal como eu, cresceste a ouvir destas histórias. E, nem sei bem porquê, porque estas histórias ainda existem e, no entanto, parece que já ninguém as sente... Será que crescemos num mundo assim tão diferente, um mundo que nos faz hoje dar vivas pela morte de um ditador, enquanto vemos passar ao lado da grande maioria dos putos que vêm já atrás de nós as atrocidades que continuam a existir, como se Darfur, por exemplo, fosse uma mera anedota perdida num jogo de playsation?...

Hipatia disse...

Talvez se tenha apenas ganho pelos precedentes que, à conta deste cabrão, os cojones de Baltazar Garzón impuseram ao Direito Internacional. E, quando a História olhar para trás para estas estórias todas, talvez ainda alguma coisa se aproveite, não é, Misty?

Hipatia disse...

Mas viste ontem as imagens de Santiago do Chile, Marta? Viste quantos o choravam, ainda que muitos outros fizessem a festa? Há coisas que me custa demais a entender...

Hipatia disse...

O título "roubei-o" da soberba frase de Luís Sepúlveda ali em cima. E, sim, acho que este filho da puta vivo, continuamente a fugir à justiça com artimanhas atrás de artimanhas, era mesmo um insulto. Especialmente para as vítimas e os seus familiares, mas também para todos quantos não querem nem perder, nem lavar as consciências.