2025-11-22

Luxemburgo

Viajar do Porto para o Luxemburgo foi como passar de “uh, está fresquinho” para “onde é que desligam este frigorífico?”. Saí do avião cheia de confiança, mas o frio luxemburguês tratou logo de me pôr no lugar: enfiou-se-me pelas mangas, gelou-me o nariz e quase me fez pedir desculpa por existir ao ar livre. No Porto bastava um casaco jeitoso; aqui, sinto que devia ter trazido um edredão com fecho. Até o café arrefece antes de eu o cheirar. Mas pronto, cheguei. Agora é só sobreviver ao clima enquanto finjo que isto é tudo muito europeu e cosmopolita.

2025-11-20

Café

Acordei hoje com a chávena a chorar por dentro. Não era drama — era falta de café mesmo, essa desgraça líquida que, quando falta, põe a alma a chiar como porta velha. Fui à cozinha com a esperança de quem procura redenção num pacote de bolachas, mas a lata do café devolveu-me apenas um suspiro metálico, desses que anunciam o fim dos tempos ou pelo menos o fim da manhã.

E lá fiquei, a olhar para a cafeteira vazia como quem contempla um romance impossível. O mundo continuava, claro. Os pássaros chilreavam, os vizinhos discutiam por ninharias, o correio trazia contas — mas eu, sem café, era apenas uma cidadã diminuída, um ser em modo de rascunho.

Prometi a mim mesma que amanhã farei uma peregrinação ao supermercado, talvez até de mangas arregaçadas, como quem assume um destino épico. Porque ninguém merece enfrentar a realidade assim, sem grãos infusionados a emprestar coragem ao sangue.

Até lá, sobrevivo. Mas que se saiba: não é vida. É interlúdio

2025-11-18

MANUEL JOÃO VIEIRA E A PRESIDÊNCIA: UMA ODE AO ABSURDO NACIONAL

(ou como pôr bigode na República sem pedir licença)

Portugal acordou com a notícia de que Manuel João Vieira voltou a anunciar a sua candidatura a Presidente da República, o que confirma aquilo que todos já suspeitávamos: a democracia portuguesa está finalmente madura o suficiente para ser cuidada por um homem que sabe, com igual mestria, cantar o amor, fritar sinapses e empunhar um fato de lantejoulas com a mesma dignidade com que outros empunham a Constituição.

Os corredores do poder estremeceram. Em Belém, diz-se que o silêncio foi tão pesado que até as estátuas tossiram. No Parlamento, pelo contrário, vários deputados terão sido vistos a googlar “como se sobrevive a um Presidente que canta?”. Nada de novo: a classe política, perante a cultura, costuma experimentar pânico — sobretudo quando ela surge equipada com guitarra, bigode e convicção.

Vieira, entretanto, apresentou o que descreve como o seu “programa presidencial provisório, sujeito a improviso permanente”, que inclui medidas inovadoras como:

A criação de um Ministério da Sátira e da Autoironia, encarregado de verificar se os políticos sabem rir de si próprios (spoiler: não sabem).

A substituição temporária da tradicional mensagem de Ano Novo por um concerto de jazz-punk minimalista, para testar a resistência emocional da nação.

A obrigatoriedade de todos os candidatos a cargos públicos provarem que conseguem pintar um quadro abstrato sem que pareça um acidente cromático.

Nos cafés, há quem diga que isto de ter Manuel João Vieira como candidato é a prova definitiva de que Portugal é um país surrealista mesmo quando não quer ser. Outros afirmam que “entre o caos calculado e o tédio solene, venha o caos ao menos com música”. Há ainda quem não tenha percebido bem, mas esteja a favor só porque ouviu dizer que pode haver concertos gratuitos.

A verdade é que, numa República onde a política anda muitas vezes a caminhar com os sapatos trocados, Vieira surge como aquele amigo excêntrico que aparece de repente à porta com um bolo esquisito e diz: “Vamos animar isto”. E, sinceramente, já não era sem tempo.

Se ganhar? Ninguém sabe.
Se perder? Também ninguém perde nada.
Se animar? Ah, isso anima de certeza.

E talvez seja isso, afinal, que o país anda a pedir: um abanão no sistema, um acorde diferente, uma gargalhada que atravesse as paredes de mármore do Estado e as obrigue a vibrar.

2025-11-17

Chefes


Há três tipos de chefes que transformam o trabalho num território hostil: o incompetente, o omisso e o perigoso.

O incompetente abre crateras no caminho sem perceber que está a cavar. Sorri, confiante, enquanto enterra a equipa em decisões absurdas. É destruição por ignorância — a mais previsível e, paradoxalmente, a mais difícil de evitar.

O omisso não destrói; deixa apodrecer. Observa o caos de longe, quieto, como quem assiste a um incêndio e decide que é melhor não incomodar os bombeiros. Nada é tão devastador quanto a ausência de quem deveria responder.

E o perigoso… esse sabe o que faz. Alimenta-se do risco, empurra a equipa para o abismo e chama-lhe estratégia. A imprudência dele tem dentes.

Quando estes três coexistem - às vezes na mesma pessoa -, o ambiente não implode de imediato, vai-se desfazendo, devagar, como uma estrutura abandonada. Até que, um dia, a equipa percebe que não está a trabalhar: está a sobreviver.

2025-11-13

Cabelos brancos

Os cabelos grisalhos deixaram de ser sinal de descuido ou envelhecimento e tornaram-se símbolo de autenticidade. Cada fio prateado carrega histórias, experiências e a liberdade de ser quem se é — sem tintas, sem disfarces. No espelho, o reflexo ganha nova luz, um brilho próprio que vem da aceitação. Adotar os grisalhos é um acto de coragem, mas também de amor-próprio. É abraçar o tempo, não como inimigo, mas como parte do que nos torna únicos. Afinal, a beleza verdadeira não está na cor do cabelo e sim na confiança que o acompanha.

2025-11-12

Quem tem amigos não morre à míngua

Há quem diga que a amizade é coisa simples — um café, umas gargalhadas e uns apupos, uma mensagem fora de horas. Mentira. A amizade é engenharia fina, alquimia rara, pão quente saído do forno da vida.

Porque, convenhamos, viver é um desporto radical. E sem amigos, a queda é livre. Mas quem tem os seus pares por perto — mesmo que longe — nunca desaba de vez. Pode tropeçar, pode reclamar do mundo, pode até pensar em mudar de planeta, mas alguém há de aparecer com uma frase torta, um meme duvidoso ou um “bora?” salvador.

Amigo é o tipo de gente que entende o silêncio sem precisar de legendas. É aquele que não te deixa morrer à míngua nem quando o inventário de esperança está no fim da validade.

E não se trata só de dividir o último pedaço de pizza (embora isso conte pontos). É saber que há braços invisíveis a segurar a corda quando o coração escorrega.

Porque, no fundo, “quem tem amigos não morre à míngua” quer dizer isso mesmo: não há miséria possível quando se é rico de gente boa. E, cá entre nós, é esse o verdadeiro tesouro — um que não se guarda no banco, mas na alma.

2025-11-11

Arbitragem

A arbitragem em Portugal vive aquele estado curioso em que todos garantem que está péssima, mas cada um acha que está péssima por motivos opostos. Os árbitros juram que fazem o possível, os clubes juram que eles fazem o impossível e o VAR aparece apenas para confirmar que a tecnologia também sabe gerar confusão com elegância.

No relvado, cada decisão vira tese de doutoramento, com repetições de todos os ângulos menos aquele que realmente interessa. Fora dele, dirigentes discutem como quem disputa o último pastel de nata — com convicção, pouca lógica e muito açúcar e canela por cima.

No meio disto, diz-se que a solução está “em melhorar a comunicação”. O problema é que, quando finalmente comunicam, ninguém acredita neles. A crise mantém-se, inflamada, circular, quase artística. E Portugal segue, semanalmente, a viver o seu desporto favorito: reclamar do árbitro, mesmo quando o jogo ainda nem começou.

2025-11-09

Maus sapatos

Um par de sapatos maus é sempre mais eloquente do que parece. Fingem elegância, mas carregam uma vocação dramática que faria tremer qualquer palco: apertam onde ninguém pediu, deslizam quando tudo exige firmeza e, no auge da ousadia, estalam como se anunciassem os nossos segredos. Caminhar com eles é negociar tréguas breves com cada esquina. E seguimos tropeçando com graça estudada, como quem aprende a rir da própria escolha duvidosa. É que, afinal, são muito giros!

2025-11-08

Sobrevivência

A rosa de Jericó é um desses enigmas que o deserto inventa para provar que nada permanece morto o suficiente. Fechada em si, parece apenas um punhado de raízes crispadas, uma lembrança sem água. Mas basta um fio de humidade para que a planta desdobre o seu gesto antigo e volte a abrir, lenta e teimosa, como se recusasse o fim. Há quem a use como talismã, quem nela procure promessas de renascimento. Eu apenas a observo, essa pequena teologia vegetal, ensinando que a sobrevivência às vezes não é mais do que saber esperar pela próxima chuva.

2025-11-07

Sinusite

A sinusite é aquela visita inconveniente que ninguém convida, mas que aparece mesmo assim, trazendo mala, cuia e um congestionamento digno de um feriado prolongado. De repente, a tua cabeça tranforma-se numa câmara de eco onde cada espirro ressoa como um trovão. O simples acto de respirar passa a desporto radical, digno de medalha. E, claro, o nariz decide praticar a sua impressionante habilidade de alternar entre “completamente entupido” e “escorrendo como uma fonte”, sempre no pior momento. No fim, resta apenas a esperança de que este hóspede indesejado se canse rápido e vá atormentar outra morada. É que já me tem ocupada há mais de três semanas!

2025-11-06

Domingo à semana

Os condutores azelhas são uma fauna própria, espécie que prolifera sempre que o semáforo fica verde. Arrancam como se perseguidos por fantasmas, travam como se tivessem visto o fim do mundo e usam piscas apenas por acidente. No trânsito, transformam cada rotunda num ritual misterioso, onde só eles conhecem as regras e mesmo assim mal. Observo-os como criaturas que navegam o asfalto com a elegância de um pato manco, certos de que a estrada é deles e de que todos os outros estão claramente enganados. E fujo! 

2025-11-04

Ventania

Há dias em que o vento não sopra — grita. Vem rasgando o silêncio das janelas mal fechadas, entrando em nós como quem procura abrigo.

A ventania remexe papéis, despenteia os cabelos, e, num gesto só, arranca o que ainda fingíamos segurar.

É assim que o ar se faz espelho:
revela o que precisa ir, o que insiste em ficar e o que já partiu há muito, mas ainda faz barulho cá dentro.

2025-11-02

Os meus mortos

Os meus mortos vivem comigo. Às vezes sentam-se à mesa, em silêncio, a escutar o rumor dos dias que continuam sem eles. Trazem-me memórias como quem oferece flores colhidas no tempo. Não pedem nada, apenas presença. Falam através das sombras, dos cheiros antigos, das canções que insisto em repetir. Aprendi a não temer o que não volta, apenas a acolher o que permanece. Porque os meus mortos não partiram: transformaram-se em voz, em gesto, em brisa. E sei que a eternidade possível passa por um pequeno exercício que, cada um de nós, pode fazer à sua maneira: lembrando.

2025-11-01

Dia de Todos os Santos

Há uma serenidade discreta no dia de hoje. As ruas parecem falar mais baixo, como se soubessem que o calendário pede respeito e memória. O Dia de Todos os Santos é uma pausa silenciosa — um convite a pensar nos que vieram antes, nos que vivem em nós através de gestos, cheiros, lembranças. Não é luto, é gratidão. É um sopro de eternidade no meio da pressa. Talvez a santidade esteja nisto mesmo: nas pequenas bondades que deixamos pelo caminho, nas presenças invisíveis que continuam a iluminar os nossos dias. Hoje, o tempo dobra-se em reverência.