O ano foi uma merda. Ponto! Que venha o próximo. Siga!
(E, no entanto, suspeito que 2010 ainda é capaz de nos fazer suspirar pelo bem que estávamos em 2009. Mas isso agora não interessa nada, que todos precisamos, em alguma medida, da esperança na renovação.)
E quanto às resoluções de ano novo, tirando a parte do chocolate e substituindo por frutos secos, já houve quem dissesse melhor do que eu.
Digo-vos quais são os meus blogues do ano: todos os que não sucumbiram ao politiquês e às lutas intestinas, que continuam sem fazer do insulto arma, que não transpiram ódio em cada pixel, que são mantidos por gente que não tem de dar o cuzinho e três tostões para ser alguém na tugolândia, que não se venderam ao pilim e colunita de pasquim barato, que continuam por cá na carolice. O resto, é mais do mesmo e já se estava à espera.
Tenho saudades de te ler. A nossa amizade passou sempre muito pelas palavras e, de certa forma, sempre foi um conforto para mim saber onde encontrar-te e ler cada texto, interpretando os sinais, sabendo-te melhor ou pior, mais ou menos cansada, de quando estavas divertida ou quando a pequenez dos outros te afectava. Nunca cheguei a perceber bem porque és repetidamente alvo da insensatez alheia. Mas sempre me deu umas ganas (a precisarem ser controladas com mão firme ou ardia de vez o circo) de sair em tua defesa, mesmo que não precises de cavaleiros andantes ou amigas intrometidas. E até suspeito de cada motivo – os que calas e os que não – para agora não te ler no poiso onde me habituei a procurar-te. E tenho mesmo saudades de te ler. E tenho saudades tuas, como de costume. E tenho os parabéns a dar-te por aqui, mesmo que não sejam só por aqui. Aqui também, por escrito, a marcar mais um ano. Parabéns, miga!
O que Cirilo começou, levou séculos a redimir e, até hoje, não sei se foi completamente redimido.
No século IV, uma mulher podia ser directora da Biblioteca mais grandiosa de que há memória, o seu conselho era procurado pelos maiores intelectuais do seu tempo, a sua palavra respeitada e ouvida, o seu trabalho científico tido como de primeira água e os seus ensinamentos debatidos.
Mas os tempos estavam a mudar. Tinham já descartado o Evangelho de Maria Madalena, o seu papel de apóstola mais querida transformado no de primeira prostituta, todas as mulheres eram a encarnação do mal de uma Eva pecadora que come e dá a comer o fruto da perdição e os homens da Igreja relegavam a palavra e o saber das mulheres para as catacumbas da valia. Nesse mundo misógino, uma mulher do calibre de Hipátia não tinha lugar. No mundo que se construía, o seu papel de farol do conhecimento e de primazia sobre os homens que a ouviam e respeitavam, era um anacronismo.
Com a destruição da Biblioteca de Alexandria e o incêndio que queimou quase todos os livros que aí se reuniam, tirando um pequeno grupo menor que se guardava num anexo secundário, perdeu-se uma fatia de conhecimento inestimável. Até hoje, não se sabe o que se perdeu e o tanto de séculos necessários para outros serem retomados. A perda desse conhecimento andou a par da subalternização do papel feminino, pouco mais do que escravas dai em diante, sem direito a aprenderem a ler e a escrever, impedidas de pensarem.
Do fim da Biblioteca de Alexandria e da morte de Hipátia, nasce o período das Trevas, dos livros fechados em conventos, dos homens analfabetos educados apenas no manejo das armas e da morte, dos factos adaptados ao mito, das ideias adaptadas à verdade única teologal decretada em Concílios, da escuridão da prisão de não poder pensar.
O que Cirilo começou foi um mundo de retrocesso sob o punho de uma religião que se estendia e levava os seus valores e os seus dogmas, bem como os medos de homens menores que não queriam perder o domínio sobre as mentes e sobre o saber para assim melhor controlarem os seus rebanhos. O que Cirilo começou não acabou sequer para as mulheres no século das Luzes e nem aí o pensamento de metade da população do mundo encontrou lugar e direito. Até hoje, por esse mundo fora, há Hipátias silenciadas, escondidas sob véus, fechadas em casas, sem direito a opinião ou pensamento livre, sem poderem dispor de si mesmas e do seu direito a pensarem. O que Cirilo começou fez com que, mesmo no mundo ocidental do feminismo finalmente assumido e sutiãs queimados e quotas pro-igualdade, continue a ser uma batalha diária ver o saber feminino tido em conta sem um olhar condescendente. O que Cirilo começou, faz com que até hoje – e talvez o filme de Amenabar finalmente o corrija – o nome de Hipátia seja desconhecido.
Quando, em 2004, escolhi o nick Hipátia para assinar as minhas opiniões no mundo dos blogues, pensei que seria reconhecido como aquilo que representava: o nome de uma mulher pagã, uma das maiores cientistas de que há memória. Pensei que na blogosfera, um sítio que era então dominado por um punhado de gente relativamente privilegiada, com acesso rápido ao google e com vontade de escrever o que, quase sempre, indica pessoas que gostam de ler e de saber mais e mais coisas, o nome da Hipátia não fosse nem novidade nem sem significado para a maioria. Estava enganada. Enganada ao ponto de descobrir com espanto que nem a pronúncia correcta de Hipátia era sabida, que tinha de explicar que não rimava nem com simpatia nem com mania, que não era óbvio nem quem tinha sido nem o que representava.
Foi isso que Cirilo começou antes de ser canonizado. Foi isso que prevaleceu até hoje: mesmo quando os nomes da antiguidade clássica se tornaram referência e debatidos e estudados pelo mundo que queria voltar ao conhecimento perdido e retomar a Luz após a Idade das Trevas, ainda assim Hipátia ficou esquecida. Será que a esqueceram porque o seu conhecimento era menor do que o dos homens que ensinou ou dos que lhe pediram opinião e conselhos? Ou terá ficado esquecida por ser mulher?
«Uma mulher conseguiu ontem saltar as barreiras de segurança colocadas na Basílica de São Pedro antes da Missa do Galo, tendo derrubado o Papa Bento XVI, que não ficou ferido no incidente. Menos sorte teve o cardeal francês Roger Etchegaray, de 87 anos, que estava junto ao Sumo Pontífice e que também caiu, tendo fracturado o osso do fémur.»
A mulher foi internada, suspeitando-se de distúrbios mentais, que me parecem mais do que óbvios, já que tentou saltar ao pescoço de Bento XVI em lugar de um daqueles padres de calendário.
(Mesmo no meio da fartura e da alegria, há fantasmas que voltam todos os Natais. Os meus fantasmas queridos e o tanto que lhes sinto a falta em cada mesa de consoada).
Se era para esperar pela noite da tradição, já estraguei tudo. Abri, adorei e já pus a uso, que o penduricalho que herdei com as chaves do estaminé, além de ser de um muito pouco condizente com a minha pessoa cor-de-rosa cueca com lacinhos, já estava tão encardido que só ainda não tinha ido para o lixo porque, infelizmente, o estaminé faz-me falta para aquilo com que se compram melões e não me parece que a desculpa do "ups! perdi a chaves" desse muito jeito.
Ah se eu fosse prendada como tu! E achei que a letrinha só inclinava para o mesmo lado, ainda para mais para o lado de cima. Não me parece mau de todo.
Na pele da pele da ruga do arrepio do frio do tempo do solstício do vento uivante da chuva da neve da geada molhada que treme no bafo do suspiro quente da lareira acesa e do carinho sentado à mesa e da vela e do vinho na noite aconchegada de ficar no quente a ouvir a música da trovoada deste Inverno que chega ululante e do dia escuro que crescerá em luz para além do frio da chuva da neve do vento e da geada na celebração antiga do sol invencível que renasce.
Há tantas vezes em que parece que as mulheres não passam do degrau da equivalência. E há tantas outras em que parece que, para atingirem o topo, tiveram que adoptar comportamentos estereotipados do sexo oposto. E há ainda tantos anúncios da menina da bilha… E até sabemos que podemos e devemos dizer tudo, fazer tudo, sem cobranças, para além das tantas que já fazemos diariamente a nós mesmas. De saltos altos, na maioria dos dias, para que ninguém esqueça que há nisto tudo uma certa dose de masoquismo. Com horário completo para além da hora e sem nunca um nove às cinco, que ainda há a casa, o supermercado, o jantar e os filhos. Uma geração de super-mulheres de quem se espera que façam tudo e tudo bem. Mas o pior, o pior mesmo, é quando – depois de longas e estudadas análises racionais a todos os conceitos, todos os deveres e todos os direitos – acabamos a sentir que não nos livramos do preconceito. Trazemos ainda o gajo tatuado em nós, é marca de fogo, letra escarlate. Em nome dele, julgamo-nos e ainda somos capazes de, no fim, julgar a outra. Talvez seja tudo uma questão de falta de hábito no jogo em equipa, dessa inconcebível capacidade do bicho macho para se proteger e ressalvar a gregaridade do género. Nós vamos logo de faca na mão e língua afiada e a vizinha tem sempre qualquer coisinha de que podemos dizer mal com inusitado fulgor. Depois, como somos nós que acabamos a parir a todos, géneros à parte, passamos no leite o que somos e o que ainda não conseguimos chegar a ser. E é por isso que, mesmo esperando pelo dia milagroso em que o Mundo seria, finalmente, governado pelo desgoverno feminino, feito de palavras e conversas, em lugar de murros e bombas, temo-o com igual desgarre: que faremos umas às outras nesse dia, se não gostarmos dos sapatos, ou invejarmos o vestido? E que reservaremos para as putas, aquelas que, sendo-o ou não, caíram para o lado debaixo da forma viciosa como ainda olhamos para o nosso género?
Um esquizofrénico que resolve deixar de tomar a medicação e, alegando que uma voz dentro da cabeça lhe diz para o fazer, resolve invadir a casa do vizinho, que é cego, atacando-o furiosamente ao ponto de o mandar para o hospital. A polícia toma conta da ocorrência e só. A situação repete-se e, mais uma vez, há uma participação à polícia e ninguém faz mais nada. Que será preciso? Que a voz na cabeça lhe diga para usar um cutelo e, depois do crime consumado, prendem o gajo? E se os amigos e familiares do cego - que vive neste momento aterrorizado dentro de casa, aquele que, para todos nós, deveria ser um sítio de paz e refúgio - resolverem partir os dois bracinhos ao maluco? Ou as duas perninhas? Pois! Já sabemos para quem sobrava e, nesse caso, como a polícia e a justiça em geral andariam da perna. Acho que o melhor é usar a velha técnica portuguesa e falar ao Sr. Cunha. E nem me venham com a treta da corrupção ou dos amiguismos, que há coisas em que, agora como sempre, só quem tem amigos não morre à míngua.
(Ou estava a ter um sonho muito estranho, ou senti um tremor de terra: a cama abanou e a televisão tremelicou contra a parede. Mas deve ter sido sonho... eu estou no Porto, carago! Isto aqui é granito, porra! E como não encontro nenhuma notícia sobre o assunto, vou regressar aos sonhos, a ver se mais nada abana.)