2006-08-09

Crianças


Que estranha que me sinto!... Parece-me já não ter a minha voz... Parte de mim adormeceu e ficou a ver... O meu pavor cresceu mas eu já não sei senti-lo... Já não sei em que parte da alma é que se sente... (...) Para que foi que nos contastes a vossa história?

Fernando Pessoa - Poemas Dramáticos



São a nossa esperança. Celebram o futuro. Celebram a nossa continuidade possível num mundo que questionou todas as certezas, apeou Deus, fez da Terra um minúsculo grão de pó perdido e a prazo; num mundo que se apressa numa rota de colisão para a tragédia; num mundo de grandes clivagens e ainda maiores injustiças…

Em situações de caos, são sempre as primeiras a sofrerem; são os rostos inocentes e indefesos de todas as tragédias que nos ensombram o prime-time; são também o rosto da nossa culpa, a indiferença confrontada por olhos banhados de lágrimas.

Não era suposto serem criminosas, terem nelas o fel dos hábitos e dos desmandos dos adultos. E, não sendo adultos em miniatura - e disso convém não nos esquecermos - também não são seres tolinhos, sem entendimento. Não podem ser desculpabilizadas com pouco caso; não podem ser criminosas sem punição.

Ou não há futuro, nem esperança, nem fazem mais sentido os olhos banhados de lágrimas que nos partem o coração.

10 comentários:

joshua disse...

Está na hora de acreditar mais na maldade, mas não como caminho, não como alternativa, simplesmente como realidade humana de referência incontornável: o homem é capaz do mal mais inominável. Sendo dele capaz, executa-o antepondo instinto-cerebelo reptiliano ao cérebro.

Dito isto, partamos para a pedagogia, para a diplomacia, unamos a pena, unamos a voz, façamos da ética, assim como da ecologia, as bandeiras possíveis de agregação natural das vontades e das esperanças de depuração deste planeta.

Pessoalmente, vejo na energia divina o único caminho (adoração, reconciliação, amor oblativo), mas a comunhão universal nos Direitos Humanos, Carta Magna da Ética Planetária, por ousada que seja, é suficiente base pacífica agregadora.

A pergunta: quais os estados, os povos, as culturas que, com base justamente em pressupostos culturais, mutila a pessoa? Que Chinas, que Arábias, Norte Coreias, que Glutões de Recursos, como os EUA, fazem da guerra, da repressão, da pressão económica, da luxuria do lucro, a razão de tudo? Todos.

Punir...

A resposta vem silenciosa na violência irracional gisbertiana ou na vitimação bombardeada libanesa.

Mas antes de mais, a resposta vem silenciosa.

Era preciso punir o mundo inteiro.

Hipatia disse...

Os humanos são bichos de hábitos e não me parece que arrepiem caminho alguma vez. Talvez quando já não houver mais caminho deitem as mãos à cabeça e pensem no que poderia ter sido e nunca foi. E, sim, o mundo inteiro joga por bitolas semelhantes, mas há sempre uns mais culpados do que outros.

Mas o que me atinge verdadeiramente é a banalização: uma imagem, uma história, uma agressão, são poderosas apenas enquanto não se repetem à exaustão. Ai, perdem qualquer impacto. Se é na TV, muda-se de canal; se é na rádio, muda-se de estação; se é nos jornais, passa-se à frente (cada vez com mais vontade, aliás, perante o assassinato diário do Português)... E depois já nem as imagens de crianças mortas, mutiladas, sofredoras, conseguem mobilizar-nos seja para o que for.

Já te disse noutra resposta e - nisso - estamos totalmente em desacordo: para mim nunca será a religião, organizada seja sobre que forma, a dar a resposta: mais cedo ou mais tarde, todas as religiões organizadas transformam-se num cancro virulento, movendo interesses, esquecendo de vez a crença e a fé. E quase todas as doutrinas acabam encerradas numa qualquer religião que, ao instituir preceitos cheios de boa vontade, acaba por demarcar o território do "nós contra os outros", os "crentes contra os não crentes". O humanismo de inspiração cristã não escapa, nem escapará nunca, acho...

Aliás, o mesmo para quase todas as organizações que possas imaginar: há sempre um bicho homem qualquer, cheio de hábitos, a dar cabo da utopia.

joshua disse...

Sim, o passado está prenhe de lições de oxidação da boa vontade religiosa em intolerância e ambição por hegemonia, mas, Hiquáquátia, não estou a falar de religião, da hegemonia da religião, estou a falar já de outra coisa: de uma penetração planetária do espiritual, de um sentido de comunhão humana tocante e completa, longe deste pathos sanguinário.

Como se todos os homens soubessem Lorca de cor; como se toda a carne conhecesse, por absorção íntima, uma tal comunhão com a divindade que esse processo de chegada da justiça de facto se concretizasse.

Para mim, as instiuições são mortais, são como estrume, medeiam qualquer coisa, imprimem qualquer coisa de acrescentador, mas só são ponte. Israel mediou o monoteísmo, Roma o trinitarismo, Londres o proteccionismo económico implacável de cujo sucesso beneficiou a língua e agora a internet é a nova ponte e tem um tal poder de coesividade humana, instaura tal atracção da pessoa pela pessoa que os efeitos podem bem prever-se. Ainda está no Jurássico.

Hoje a unidade planetária é uma evidente tendência e vem o tempo em que entretecer relações levará à comunhão do género humano, a uma consciência colectiva maior.

No que estamos totalmente em desacordo é na fonte de esperança.

Eu tenho-a toda na divindade trinitária, personalista, revelada em Jesus Cristo e apropriada exclusivisticamente pelas igrejas. Tu, ao que sei, ainda não encontraste a fonte clara da tua esperança.

Hipatia disse...

Eu também não estava a falar bem, bem de religião. Estava a meter no mesmo barco "religiões laicas", como as ideologicamente organizadas. E estava a falar do humanismo como ideologia, essa ideia ampla de que a união entre os homens há-de vir, para além das barreiras dos Estados, das suas políticas, dos seus interesses. E estava a falar das diferentes utopias que se encarquilham numas quantas verdades que uns poucos querem impor a todos os demais. E talvez seja por isso que não tenho esperança no Homem, nem nas suas ideologias. A minha esperança é feita cada vez mais na curta escala, no microcosmos que me rodeia e onde ainda há verdades não cristalizadas, onde ainda se diz que se errou e se assumem os erros, onde consigo deter um controlo minimamente decente sobre as opções, separando lixo por exemplo, ensinando os filhos dos amigos a separar o lixo; ou a insistir em agradecer cada gesto simpático com um obrigada e um sorriso; ou ajudando porque posso e não porque vou ter proveito; ou abrindo os braços e a casa e a ternura para todos aqueles a quem quero bem e que sabem retribuir de igual forma. E, para isso, não preciso de qualquer divindade, ou sequer qualquer utopia: basta-me ser gente, não esquecer que sou gente. E basta-me ter gente igual ao meu redor.

joshua disse...

Estou habituado a dialogar e a encontrar-me com que gente que, tal como tu, é simplemente gente sem a divindade anteposta como fundamento do bem que querem e do bem que fazem, embora haja por aí um «Diário Ateísta» que publica textos de um mau gosto e de um grotesco chimpanzenianos quando lhes dá para comer carne ou desatar a assassinar numa febre homicida qualquer.

Abolidos, por caducos, os tais projectos teleológicos ou finalistas de todas as ideologias, religiões e escatologias gloriosas, ainda há margem para a utopia, ó Hipatia.

E a utopia é justamente isso que enunciaste: é nuclear, particularista, concreta, consubstancia-se no que se vê e no que se toca, contenta-se numa coerência racional, eticamente inteligente e por isso mesmo generosa por ser capaz de se desdobrar e colocar-se na pele do outro.

Eu quero precisar da divindade sabendo-a e sentindo-a presente, assim como tu dizes «não preciso de qualquer divindade» para executar um programa de vida tão autêntico quanto o teu.

Sigo também as minhas intuições e a minha intuição diz-me que há num excesso de racionalismo uma traição à natureza humana donde o imaginário e a capacidade de sonho, além das aquisições técnicas e científicas, nos foram enriquecendo e ajudando a aprender a possibilidade de Deus na história do Homem e de uma esperança de eternidade, reunião de toda a carne.

Olha, Hipatia, há um livro «Deus e a Ciência», de Jean Guitton e dos irmãos Bogdanov que, pensando a constituição da matéria, os campos quânticos, aprofunda e problematiza a vida sob uma perspectiva de ruptura epistemológica com os decrépitos paradigmas mecanicistas e aleatoriistas do passado.

Não preciso de não precisar de nada. Estou permeável ao que me fascine, sem que a amargura me tolde o olhar: as interrogações que nos deixam o Cosmos, o que se passa nos níveis mais elementares da matéria onde as partículas são já abstracções matemáticas.

Tenho a minha esperança, mas tenho acima de tudo o assunto do "what's the point' de isto tudo em sintonia com a minha intuitividade, articulado com a minha racionaliade e loucura, capaz de abraçar, vivendo-a, a possibilidade de Deus.

E isto é saboroso. É saboroso propagar isto ao meu redor.

joshua disse...

Tendo tudo (amigos, amor, ternura paterna e materna), falta-me sempre algo e alijo de mim o quanto possa toda a espécie de autossuficiência para que esse Algo permaneça em mim.

Numa fracção de Mozart fulgura-se-me Deus.

Hipatia disse...

Numa fracção de Mozart, figura-se-me, tão só, o génio de Mozart :)

Sinto que às vezes podia ser bem mais fácil se tivesse uma crença estruturada para culpar ou agradecer. Mas não tenho. E sinto vezes de mais a prova da inexistência de Deus na incompetência de bonecreiro na regência do Mundo.

Terei outras muletas, não o nego. Mas nenhuma delas é a religião. Eu não saberia deixar que fosse, muito menos queria que o fosse. Mesmo que até fosse mais fácil...

Anónimo disse...

Hoje em dia , as pobres das crianças já nascem com o seu quê da vida, ainda mais quando os adultos não conseguem ter mão nessas crianças que vivem no seu meio ambiente da vida fácil, sabendo de antemão que nada os pode fazer pagar umas culpas que podem advir destas fatalidades da vida, hoje os pais não conseguem impingir as suas ideias nessas crianças, elas hoje julgam-se espertos até ao dia que põem o pé fora do penico e ai sim pedem ajuda aos adultos, mas demasiádo tarde para os ajudar, só que depois as culpas são de outros que eles coitadinhos são uns santinhos de primeira apanha.touaqui

Hipatia disse...

As crianças hoje já nem podem brincar, excepto fechadas em casa ou presas nas escolas que, cada vez mais, pais sem tempo para os filhos, querem que se substituam à educação que não têm como lhes dar. E não me parece que haja solução ou seja tanto uma questão de culpas: é que não há mesmo tempo para mais e não há alternativas. Pede-se demais às ecolas; mas muitas vezes também se pede demais aos pais. Especialmente às mães, muitas delas divorciadas, trabalhadoras, com filhos a seu cargo, que têm de gerir tudo e mais alguma coisa e ainda ganhar dinheiro para tudo. E há o medo, claro. Eu sempre brinquei na rua. Hoje isso seria impossível. No caso daqueles miúdos... nem sei! Mas ninguém vira criminoso por acaso, não é?

Anónimo disse...

Mais Vozes

Fernando Pessoa ...a divulgar.
Teoria ou prática? A sua análise no meu Blogue.
Abraço
José Manuel Dias | Homepage | 08.09.06 - 11:06 pm | #

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Acho que um pouco das duas coisas Um bocadinho de tempo a prestar atenção às coisas que também vão ficando melhores em áreas onde já andei a meter o meu bedelho e um bocadão de tempo a ler as análises dos outros, como as "tuas" (porque não o tutear? Por aqui não temos nem idade... )

E, claro, uma mania enorme de mandar bitaites sobre quase tudo
Hipatia | Homepage | 08.09.06 - 11:23 pm | #

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sou suspeita a comentar este post...sofro na pele alguma maldade das crianças por heredeteriedade....na pessoa da minha filha mais velha(deficiente)...mas tens alguma muita razão.
Só para esclarecer que este agor é definitivo
beijo amiga
Luna | Homepage | 08.10.06 - 12:23 pm | #

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Então é este que vou lincar

As crianças são cruéis muita vez. Mas, se não lhes impusermos limites e se lhes desculpabilizarmos todas as crueldades, serão adultos cruéis. E os adultos têm poder para fazer muito mais mal
Hipatia | Homepage | 08.10.06 - 11:07 pm | #