2006-08-17

O tambor de lata*

.
Nunca encontrei coragem para o dizer, mas era uma coisa que estava escrita. Entrei como voluntário e não tive vergonha: esta chegou depois.

Günter Grass


A História encontra sempre os seus heróis e os seus algozes. A maioria das pessoas, por ter um pouco dos dois, não encaixa nos estereótipos e é facilmente esquecida.

Só que a História - a verdadeira - é feita de gente anónima, gente vulgar, gente capaz de pequenos gestos de heroísmo, gente que mata, gente capaz de virar as costas, gente apanhada num turbilhão que não entende, gente que sobrevive, gente que morre.

Günter Grass fez parte do "esforço de guerra" alemão. Levado pela propaganda, alistou-se nas SS e não na "tropa macaca", tinha privilégios, nunca os perdeu e, provavelmente, reagiu muito tarde ao que se estava a passar. Isso faz dele alguém muito humano, muito próximo de todos nós. Tinha dezassete anos…

A minha questão é esta: tivéssemos nós vivido na Alemanha dos anos 30 e 40, em que seríamos diferentes de tantos outros, os que preferiram acreditar na propaganda, na demagogia, nas mentiras e nos discursos e fachadas glamorosas?... Eu não me acho melhor do que ninguém. Sou mesmo demasiado banal. Tão banal que, provavelmente, também teria fechado os olhos, encolhido os ombros. Ou, se calhar, teria também pegado em armas; talvez me alistasse… Não temos todos estofo de heróis e não me iludo quanto à minha semelhança com tantos outros. Talvez às tantas fosse diferente… Talvez soubesse encontrar em mim um qualquer caminho para o heroísmo… Mas quase de certeza seria, como a grande maioria de nós, mais um entre muitos sem voz e sem glória. E dificilmente alguma vez escreverei um livro com o poder das palavras de Grass.

Ao fim de semanas a ler tanta coisa sobre a revelação de Günter Grass, acabo sempre a pensar como, para tantos nós, à distância da história reconstruída, é tão mais confortável um comportamento de fedelho que se recusa a crescer. E, como um fedelho, resta apenas apontar o dedo…

_____
* Pequena pausa nas férias, para não ficar entalada. Afinal, acho que já comecei a ler o que não devia :S

3 comentários:

johnny handsome disse...

Essas mesmas dúvidas tiveram-nas Albert Speer e muitos outros...Ainda hoje há alemães que admitem que hoje teriam procedido da mesma forma. Adolf Hitler não teria existido sem o aval do povo alemão e o nazismo teria fracassado. Mas houve ainda assim alguns que rejeitaram as paradas grandiosas, a falsa prosperidade, os valores instituídos como ideais pátrios. Houve muito quem visse para além dos discursos. Esses foram os verdadeiros heróis. Muitos pagaram com a vida e alguns, poucos, sobreviveram para contar a sua história.
Ninguém que tenha lido o Mein Kampf poderia ter alegado ignorância. Está lá tudo....Preto no branco.

Hipatia disse...

Nada me parece nunca assim tão a preto e branco, Johnny. À distância, sabendo o que se sabe hoje, é fácil ver tudo o que está no Mein Kampf. Nos anos trinta, um povo humilhado e a passar fome, com a inflação descontrolado, taxas de desemprego nunca vistas, foi atrás do discurso de quem lhes dava pão, esperança, orgulho e trabalho. Quantos de nós não fariam o mesmo? Eu não tenho essas certezas e nem sequer as encaro como desculpas. É óbvio que não pode haver perdão para a barbárie da 2ª Grande Guerra. Mas não se pode atirar pedras a todos os alemães que escolheram não ver. São demasiado parecidos com todos nós que, diariamente, escolhemos também não ver toda a barbaridade que vai surgindo à nossa volta. Só que é sempre muito fácil não vermos como os nossos telhados também são de vidro...

E as SS eram uma tropa de elite; mas uma tropa ainda assim. Seria sempre mais fácil chamara-lhes, por exemplo, terroristas. Mas, se há coisa que a História deste desgraçado começo do séc. XXI nos tem mostrado, é que já nem chamando "terrorista" se discute verdadeiramente a realidade, já que o terror está generalizado para bem mais além do que grupos radicais.

E, a criticar Günter Grass, critique-se a falta de timing. Não o escritor; não os textos; não a forma como fez a Alemanha olhar para si própria e entender sem desculpar.

Anónimo disse...

Mais Vozes

Lembrei-me do Doutor Fausto do Thomas Mann, onde se percebe precisamente o sentir de um alemão durante a WWII.
E.A. | Homepage | 08.17.06 - 10:20 pm | #

--------------------------------------------------------------------------------

É tão fácil julgar os outros. Assim como é fácil esquecer que somos anjos e demónios a habitar um mesmo corpo num equilíbrio instável.
Uxka | 08.20.06 - 4:31 am | #

--------------------------------------------------------------------------------

E lembras bem, E.A. Não fosse a História sempre tão enviesada para um qualquer ponto de vista, seria muito mais fácil para todos verem que há muito mais do que o rótulo de nazi ou soldado das Schutzstaffel...
Hipatia | Homepage | 09.03.06 - 5:21 pm | #

--------------------------------------------------------------------------------

Que grande verdade, Uxka! E, em função de mil e um pormenores, todos nós seremos sempre capazes do bem ou do mal. Ou de um simples encolher de ombros que, por o ser, não deixa também de ter as suas consequências...
Hipatia | Homepage | 09.03.06 - 5:22 pm | #