2006-05-28

Viriato, o furão do Teatro












Daniel, o director artístico do teatro, há muito vinha sentindo uma presença estranha no seu gabinete: Um restolhar de papeis, um projecto não encontrado ou um ruído esquisito na hora de fechar as luzes do seu espaço.
O pessoal da bilheteira queixava-se, ao sereno director financeiro, o doutor Vasques, do desaparecimento de bilhetes, afirmando que reconheciam um sorriso matreiro em dois ou três miúdos da Rua Escura que entravam sempre legalmente nos espectáculos do teatro.
A coisa começou a tomar uma escala mais evidente, quando um actor, de um desses grupos de novo circo, participou o furto de um adereço cómico fundamental para o seu “número”, num pranto
incontrolável.
Daniel só ficou verdadeiramente alarmado no dia em que Letícia, bailarina de grande mérito, lhe exigiu de nariz empinado, que corresse dos ensaios aquele alguém, que não conseguia identificar, pois não suportava o risinho trocista a cada falhanço no palco. Assim, na reunião semanal, lá estava aquele ponto na ordem de trabalhos; se alguém visse algo de estranho, que avisasse logo o director a fim de se tomarem as respectivas medidas.
O primeiro contacto com a criatura deu-se na zona técnica.
Uma bela manhã de Inverno, ao pegar do trabalho, os homens do palco deram-se conta que alguém virara a oficina de pantanas, usando tudo quanto pudera encontrar, para construir uma enorme árvore de natal mesmo no meio da sala. E estava lá tudo: Lâmpadas, fios, cabos projectores, todo o tipo de objectos empinados sobre uma estrutura de cenário, a lampejar…a lampejar…a lampejar.
-Mau Maria!... Exclamou Chico Gordo, o electricista de cena.
Durante uns segundos fitaram boquiabertos aquela estranha escultura.
Ainda mal refeitos da surpresa, viram passar à sua frente uma sombra veloz que se escondeu num dos armários metálicos do sector.
-Deve ser uma ratazana. Disse Chico.
-Não me pareceu… Mas embora agarrá-la? Propôs Sebastião, o técnico das luzes.
Se assim o pensaram, assim o fizeram. Sebastião pegou numa rede que ficara de uma peça sobre o mar e, coordenados, abriram as portas do armário, capturando o animal que se ficou a debater preso nas malhas. O animal começou logo a guinchar:
- Não me façam mal! Calma, não me façam mal!
- Olha, o bicho fala. Disse Chico coçando a cabeça.
- Parece que caímos no meio de uma fábula… Murmurou Sebastião, esfregando os olhos para ver melhor. Isto de trabalhar num teatro, não é nada bom para a saúde!
- Eu explico! Eu explico tudo. Gritava o bicho.
- Explicas tudo, é dentro desta gaiola que ficou cá do circo! Disse Chico colocando o animal dentro de uma pequena jaula.
E correram os dois, ao gabinete do director, para dar parte da situação.
Daniel, que achava os beirões grandes beberrões, aconselhou os funcionários a consumirem menos vinho Dão durante as horas de serviço. Aquela história era demasiado irreal para estar a acontecer no seu teatro. Mas os dois técnicos lá o convenceram a descer até à oficina, para falar com o seu achado. Ao ver aquele bicho comprido, a preto e branco, de focinho pequeno, grandes bigodes, orelhas breves e olhar penetrante, o director disse logo:
- Mas isto é um furão! O meu avô era caçador e eu ainda me lembro de algumas coisas…
-Grande novidade… Largou o furão ironicamente.
-Ainda por cima fala. Disse Daniel
-Eu não disse? Atalhou Sebastião
O director, que nunca perdia a calma face à fantasia, puxou duma cadeira, ajeitou os óculos, cruzou as mãos e ainda incrédulo perguntou ao bicho:
- Mas afinal quem és tu?
- Chamo-me Viriato e vivo aqui neste teatro. Cansei-me da vida do campo, dos cães sempre a ladrar atrás de mim, além disso cada vez há menos coelhos nessas matas. Estou farto de ser um animal selvagem, ao menos aqui cultivo-me. Há sempre tanta coisa interessante a acontecer.. Respondeu o animal.
-Só me faltava esta! Que vamos fazer contigo?
- Deixa-me ficar por aqui. Suplicou Viriato. Prometo que não vou fazer disparates. Vocês até nem deram por mim até agora…
- Agora ficámos com um mascote! Bom, Sebastião, deixa-o na gaiola e dá-lhe de comer. Sentenciou Daniel ainda abalado pelos acontecimentos.

Bem, ao fim de uma semana no sector técnico, já ninguém podia escutar o furão na sua conversa lamuriosa:
- E eles não me deixam ver teatro! E eles não me deixam ver a dança! E estou a perder todos os ateliês! Estou farto de estar fechado sem aprender nada! E quando é que vocês me tiram daqui?
O doutor Vasques, que não gostava nada de perturbações, resolveu pedir aos rapazes que levassem o tal furão Viriato até ao balcão, para assistir ao último acto de uma peça que fazia sensação na cidade, pois já não podia com tanta guinchadeira. Poisada a gaiola lá em cima, o director financeiro pôs-se a observar a pequena besta, notando que alterava o seu comportamento a cada deixa dos actores, tendo terminado a peça de lágrima comovida escorrendo sobre o pelo.
-Já te topei… Não é que gostas mesmo de arte... Concluiu para si Vasques, esboçando um sorriso no seu rosto. Belo público que tu és!...
Na primeira oportunidade, abordou Daniel na escadaria, com uma estranha ideia:
-Sabes, eu acho que devíamos deixar o furão à solta para ver como ele reage dentro do teatro.
- Vasques, tens tomado os comprimidos para a tensão? Isto não é um jardim zoológico, é um teatro!
Mas Vasques, tranquilamente como é o seu hábito, convenceu Daniel a apresentar o Viriato a toda a equipa, num encontro informal a ter lugar no foyer, por exemplo. Depois de narradas as capacidades de espectador do furão, acedeu Daniel, marcando o encontro para a manhã seguinte.
E, no dia seguinte estavam todos lá!
Viriato, de pelo penteado e lustroso, apresentou-se a toda aquela gente espantada, usando o seu charme animal. Comentou espectáculos, desempenho dos actores e até deu sugestões no funcionamento prático do teatro. Renderam-se todos àquele bichinho…
Mas com quem surgiu um entendimento mágico, como se fora paixão ao primeiro olhar, foi com Mariana, a responsável pelos serviços educativos, que não resistiu a pegar no bicho ao colo.
Passou assim Viriato a andar às claras por todo o teatro, numa atitude prestável, bem diferente da clandestinidade em que tinha vivido. Ele verificava cabos nas zonas de difícil acesso, equilibrava-se sobre a teia consertando projectores, mas aquilo de que mais gostava era trabalhar com Mariana nas iniciativas do serviço educativo. Tinha aquela cumplicidade com as crianças, construída em segredo nas borlas que dava para os espectáculos e, ainda por cima, faziam-lhe festas em locais do corpo que não conseguia alcançar, causando-lhe arrepios de prazer. Era sempre divertido e interessante participar nos ateliês de Mariana; fazendo de guia, pois conhecia todos os recantos daquela casa mágica, ou assumindo uma postura bem profissional quando vestia o papel de monitor nas oficinas pedagógicas. Recebia as escolas na entrada principal, dava informações, fazia de cicerone, distribuía folhetos, conferia materiais e muitas outras tarefas. Sobretudo os meninos gostavam do jeito vivo e matreiro do bicho.
Apenas uma coisa não mudou: o seu carácter opinativo e crítico, um terror para as companhias visitantes, obrigando Mariana a exigir tento na língua, sob pena de o devolver às serranias beirãs.
Com o passar dos tempos, Viriato ganhou uma tal dose de popularidade entre as crianças da cidade, que Daniel, o director, não teve outra alternativa senão nomear aquele monitor felpudo: “Viriato o assessor do teatro”.

Miguel Horta in revista "Boa União", Teatro Viriato, Viseu

2006-05-26

Desafio


Pudesse eu não ter laços nem limites
Ó vida de mil faces transbordantes
Para poder responder aos teus convites
Suspensos na surpresa dos instantes!

Sophia de Mello Breyner Andresen – Pudesse Eu


Há tantos poemas que poderia escolher. Há tantos que dizem o que não sei dizer, tecendo em palavras as emoções que me guiam. Há tantos, mas tantos poemas de amor, de dor, de negrume ou alegria, de paixões balançadas, ou de versos esguios. Há tanta palavra bailada, em ritmos sincopados, ou desenhando nas métricas pensamentos voláteis. Há tanto poema. Tanto! Que quase não sei escolher. E então fecho os olhos. E suspiro um "pudesse eu..." E deixo aqui Sophia. Porque sim. Porque há demasiados poemas. Ou porque estes quatro versos resumem o meu olhar sobre o futuro agrilhoado ao presente.


O texto é um repost, mas é também o desafio que vos deixo enquanto vou de férias: quero saber dos vossos poemas! Todos temos "aquele" poema especial. Este é o meu e gostava saber dos vossos...




A Voz vai fugir. Bem, não será bem a Voz. Vai fugir a Hipátia e, como o Gaivina parece andar avesso às teclas, cheira-me que, durante uns dias, a Voz não está cá. Ou não está cá actualizada. Ou não quer vir. Ou não pode.

A Voz vai a banhos. Vai comigo a banhos. Vamos as duas, pela beira deste calorzinho bom que vai fazendo, sentar o rabo na preguiça e não dizer nem fazer nada, excepto gozar em pleno a vontade de não dizer nem fazer nada.

Obviamente, a Voz será posta a um canto enquanto a Hipátia estiver a fazer todas as (in)decências permitidas a quem vai a banhos sem destino. Que lá porque a Voz é um umbigo, não precisa saber tudo o que se passa. Que assobie para o lado e faça de conta: durante uma semana, não é nada com a Voz. Aliás, também não é nada com a Hipátia. É tudo a ver com a pessoa que se esconde atrás da Voz e da Hipátia e que, muito às claras, vai pôr-se ao largo para bem longe daqui.

Qualquer coisinha, reclamem com o Gaivina, que o ex-sem-blogue anda demasiado preguiçoso.

Eu fui passear!

2006-05-25

Espantoso!

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Uma mulher, quando se sente observada, altera logo, mesmo que subtilmente, o seu comportamento. É como se notasse os holofotes. Às vezes retribui o olhar, daquele modo tão discreto e ao mesmo tempo tão óbvio. Olha em frente mas de perfil, de modo a que os seus olhos sejam visíveis. Mexe no cabelo. Mexe os dedos. Tira cabelos invisíveis da camisola. Não desata à gargalhada mesmo se o grupo de amigas desata à gargalhada. Mantém uma espécie de distância irónica face à sua circunstância, a mesma distância irónica que imagina no homem que a observa na mesa ao lado. Num ápice, fica muito sisuda e contente, um arzinho vagamente importunado e uma expressão enviesadamente divertida. Não se exibe: exibe a sua atenção. Como se estivesse alheada mas misteriosamente ligada ao homem que a observa e que talvez só a observe por mais dois minutos. Nada decisivo se joga ali, excepto o jogo sem o qual mesmo a felicidade conjugal não presta. Nessa intensidade coreográfica e sibilina, uma mulher não oferece nada; mas aceita, com uma complacência que é quase vontade, a nossa vontade complacente.


Nana Sousa Dias

E, de repente, quando a fé tropeça, lemos qualquer coisa que nos faz acreditar que sim, que é verdade, que os homens também podem compreender as mulheres e, por entre o fascínio mútuo, não exigirem uma qualquer igualdade neutra e impossível. Antes deliciam-se com um complemento bem jogado, onde arte e saber aplanam as diferenças, condescendendo vontades inquietas, feitas de roupagens diferentes por entre as suas semelhanças.

Conversas antigas


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Sabes, parece que anda a seguir uma dieta para aumentar massa muscular. Pelo aperitivo do Missão Impossível, está a fazer-lhe lindamente: não parece artificial, nem insuflado. Já quase concordo contigo: ainda pode vir a dar um excelente Surfista Prateado. Mas primeiro vai ser o Elvis

2006-05-24

Uma questão de tempo verbal


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Pois eles são contra o aborto, claro. Mas agora também são contra a inseminação. As desculpas dos embriões, no entanto, soam tão mal, mas tão mal, tão mal, que só não entendo porque é que estes beatos que não fodem nem saem de cima não ganham, finalmente, um par de colhões para dizerem o que realmente pensam: que filhos só no seio do casamento, absolutista e católico, com padreco a presidir e a cobrar serviços, pois está claro, mais os baptizados e as comunhões, os crismas e quejandos. Mães solteiras é coisa de fim do mundo; homossexuais são aberração da natureza, ou doença, ou outra treta do demo.

Agora, p’ró caralho com tanta beatice junta: o corpo é da mulher; a decisão é da mulher. Apenas ela é vida com consciência – e nunca o embrião que não é nada de nada, excepto a promessa do que pode vir a ser - e em consciência deve decidir se quer ou não ter filhos. Se pode abrir as pernas e fazer um, porque raios não há-de poder ir buscá-lo a um banco de esperma?

Eu do Bagão Felix até percebo: dificilmente alguém em juízo perfeito encomendaria um embrião ao homem. Mas e os outros? Raios se percebo o que os move! O fanatismo deveria ter limites e, se é para haver referendo, deixem-me é votar contra o absurdo dos referendos que os fanáticos deste país vão propondo.


(ok, a proposta é uma merda e precisa ser revista; mas mantém-se a questão de princípio)

...

(ok, ok, doem-me os dentes…)

Não quero ter juízo!


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Nunca antes na puta da vida tinha levado pontos. Hoje moram cá dois. Também é certo que nunca antes tinha tirado um dente. E agora o cabrão do siso que andava a consumir-me há semanas já não mora cá.

Mas não posso falar, tenho a música aos berros e não posso cantar, tenho um emplastro a criar uma bochecha de fazer inveja ao Marocas e o sangue não estanca e, para cúmulo, não posso comer.

Gelados? Mete lá os gelados por onde mais te der prazer, oh sádica que acabaste de me levar couro e cabelo e mais um dente. Esta merda dói! Quero o meu dente de volta! Quero o meu siso! Não quero ter juízo, porra!

Tenho fome!!!!!!

Roubei a vaca!



Gosta muito chocolatinho, e o meu pneu também, que o acolhe com alegria expansionista.

E também roubei a deliciosa resposta que a Lisa me deu, a propósito da vaca de chocolate. É que, de uma forma ou de outra, temos todas pneus em alegria expansionista...



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(Que blog é que não presta, afinal? E olha lá: desde quando é que ter princípios éticos ou morais passou a ser insulto? Só se for aos olhos de quem confunde liberdade com libertinagem...)

2006-05-23

Parabéns, Cap


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Queen - The Show Must Go On

Neste dia que é teu, oh capitão deste navio onde todos nos resolvemos a navegar, ofereço-te pouco. Ofereço-te, aliás, bem menos do que o tanto que já me deste. Mas ofereço-te o que sei que gostas. E, sempre renascido, sigo-te os passos, operando mais uma magia.

Continuemos o espectáculo. Ele não pode parar. Não pode, Cap! Que seria de todos nós sem o nosso timoneiro?

Parabéns, meu amigo.

2006-05-20

Se a Voz acabasse aqui


aqui


Se a Voz acabasse aqui, deixava uma primeira página de que não me envergonho muito. Congelava assim, para memória futura, um blogue tal como eu o entendo: um registo diário de qualquer coisa que me apetece, a liberdade para a escrever, um reflexo de um estado de espírito.

Tudo o mais não cabe na minha Voz. Ou, pelo menos, não cabe “nesta” Voz. Os ensaios “sérios” gosto ainda de os ler em formato papel, com margens onde posso escrevinhar notas, perenes para além do amontoado de arquivos esquecidos, de páginas passadas, onde ninguém vai, excepto por engano.

Se a Voz acabasse aqui, tinha cumprido a sua função: um diário que não se leva a sério, uma série de entradas datadas e despretensiosas, um espaço anónimo e anódino que, algumas vezes, conseguiu tocar a corda de um qualquer sentimento de quem veio cá espreitar isso mesmo: a simplicidade de dizer coisas sem procurar nem fama nem proveito, correndo por gosto e por isso mesmo gostável.

Querer um blogue para mais do que isto parece-me supérfluo. Ou, pelo menos, manter um blogue para mais do que isto parece-me exagerado. Até a política, para ter valor, precisa ser feita no seio da coisa pública, onde mais do que a palavra, precisa valer o acto. Os púlpitos, por mais importantes que pareçam, existem apenas para as danças de cadeiras do costume e não podem basear-se em meia dúzia de atoardas com a data do calendário pespegada no topo.

Deve ser por isso que nunca liguei muito ao que tantos pretendem que sejam os mandamentos de S. Blog: demasiado ridículos, especialmente na sua vacuidade pretensiosa de fundamentos de doutrina.

Se a Voz acabasse aqui, congelava momentos da vida de uma pessoa banal que, no seu anonimato, escolheu o direito a esconder-se atrás de um nome que não lhe deram no baptismo. E até por isso consubstancia a liberdade profunda de escrever por vontade, atirar para o éter e deixar partir para os arquivos do esquecimento, palavras finitas e sentimentos passados.


O futuro continuará a ser feito das palavras ainda não ditas e, por isso mesmo, as únicas com real valor.




(E o "mood" está na música...)

2006-05-18

Auto-estima


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Devo ter uma auto-estima do caraças! E o caraças é que nem me lembro quando foi que a consegui. É que nunca fui nem particularmente bonita, nem particularmente boa, nem particularmente boa das outras, nem particularmente inteligente. Mas eu cá acho que até tenho pernas e mãos bonitas, a maioria das pessoas acha que tenho olhos bonitos e os gajos gostam das minhas mamas. Acontece que nada disso define a minha auto-estima. Acho que ela se faz bem mais da minha distracção e da minha falta de paciência. Quem não está bem que se ponha e não ando para aqui a galar gajos só porque mexem, muito menos a impedir que mexam os que já mexeram no que é meu. Também não me parece que tenha de me sentir menos do que alguém só porque quero lá saber da marca dos sapatos ou do preço da carteira, ou se o gajo que andam a comer tem carro topo de gama pago a prestações. Ainda por cima, tenho mesmo muito pouca paciência para rituais de acasalamento alardeados, ou pito aos saltos de gajas sem mais nada que fazer. E como nem disfarço o mau feitio, nem dou troco a azémolas, não me sinto particularmente odiada ou invejada por ninguém, nem me lembro de alguma vez invejar seja quem for por qualquer coisa desse género. Deve ser auto-estima, deve… Ou então é mesmo maravilhoso andar a leste. Não me levo demasiado a sério em tretas de aparência e, nas pessoas que estimo, é mesmo o que se esconde sob o couro cabeludo que mais me agrada. Óbvio que nem sempre por baixo de uma pele de burro está uma princesa e nem sempre os sapos, por mais beijados que sejam, viram príncipes. Mas cada um é como é e, a mim, basta-me cobiçar gargalhadas, inteligência e sentidos de humor. A ter inveja de alguma coisa, é da capacidade de alguns para a bonomia. E, se me querem ver feliz, elogiem-me a gargalhada: é que, para a terem ouvido, o dia estava a ser muito bom!

2006-05-17

Recomendo


aqui

Amanhã logo vejo se também recomendo este e, a partir de quinta-feira, não resisto a ir ver que volta deram a este.

No entretanto, confesso o meu desagrado por todas as invenções que andam acrescentando a esta, de tal forma que já nem podemos pedir uma descansados, sem termos que saber todas as declinações possíveis e imaginárias.



(Escrever a sério é que fica para outro dia…)

2006-05-15

Ausências


aqui

O início de Maio costuma ser sempre um período fdp para mim. Mais por hábito que outra coisa qualquer, canso-me de mim mesma, agonizo em ritmos repetidos e faço balanços. Por costume, não me agrada o resultado e entro num buraco de autocomiseração insuportavelmente mofado e datado.

Estafa-me sempre o tanto que comprometi a vontade a esta coisa de crescer e ter responsabilidades, enquanto alinho todos os objectivos que não atingi, subtraio todas as encruzilhadas e acrescento novos caminhos. Depois de mais uma contabilidade, sinto-me quase sempre demasiado velha, demasiado cansada, demasiado gasta.

Com o seguir do mês, deixo que a Primavera me invada e tomo fôlego para o tanto de cansaço que se avizinha, quando ao serviço dobrado ainda acrescento as férias dos outros e, no rescaldo, sobra sempre muito pouco tempo para o lamber das feridas.

De seguida, já de gatas, tacteio o resto do caminho até três semanas de férias porem em ordem as prioridades. Mas Maio é fdp mesmo! Fica a meio do caminho, é um nim que não gosto, este ver o tempo a esquentar e os dias a crescerem e eu fechada, com horário prolongado para bem além do que seria meu, com pilhas e pilhas de papéis amontoados e a sem vontade do costume para limpar toda a tralha, como nunca fui capaz de limpar a tralha que acarto na memória.

Seria um bom período para entrelaçar letras e ordenar palavras e espalhá-las por aqui e por casas amigas. E, no entanto, este ano as coisas não me correm como previsto, ou sou só eu que, finalmente, inverti a tendência de mais de uma década.

Na verdade, não me apetece ter pena de mim, nem fazer a contabilidade. Ou estar fechada em frente a um computador a inventar vida e Primavera, ou a recontar a vida e a Primavera. Apetecem-me as esplanadas ao fim da tarde, o chilrear dos pássaros ao vivo, as conversas dos outros apanhadas à socapa, a vida em directo.

Apetece-me um corte, um que não suture demasiado depressa, um que infecte até. Poderia inclusive ser dolorido e, de permeio, injectar vida nova em mim. Fazer uma cicatriz pequenina, marcar mais uma linha, estabelecer a fronteira entre o ontem e o hoje.

Estou com vontade de arejar tudo, de expurgar o acessório. Estou com vontade de quebrar rotinas e vícios. E a Voz vai pagando. Porque tem sido ao longo deste tempo todo um Norte, mas é um ponto cardeal estafado de rotinas e vícios. Um deles serão os tantos de cigarros que acendo para queimarem entre os dedos enquanto tento escrever seja o que for. E, se quero diminuir os cigarros, o ritmo de escrita terá de abrandar também. Uma concessão necessária, uma quase obrigação.

Não é ainda um fim. Sou demasiado teimosa. É só mesmo um espaço que preciso. Reduzo, por isso, a(s) dependência(s), mesmo consciente de que sem o vício de escrever não sei existir.

Águas rasas


aqui

Diz-me como pode ter acontecido que, agora, no centro do meu quarto se encontre uma piscina, quando ontem - ia jurar -, nadávamos juntos numa pequena lagoa de água rasa…

2006-05-14

Mãe Terra


Monica Sjöö - Mother Earth in pain...


Sou pagã no meu afecto pela nossa Terra, mãe suprema e dolorida. É, talvez, o culto que não sei ter a outros deuses. É o oráculo a que presto vassalagem sem revoltas, mesmo quando a agrido.

E, nos dias em que Maio vai chegando com os seus cheiros a flores e a frutos maduros, escuto o seu ventre borbulhante de vida e afasto os seus cabelos feitos ramos, enquanto dou as voltas deleitosas que o frio me impede de saborear.

Lá no alto, andorinhas procuravam os beirais depois de matarem a sede do fim da tarde, no tempo escasso de nascer, crescer e partir. Ali ao fundo, as árvores envolvem-me no seu cheiro, enquanto navegam por entre as ondas de vento as finas névoas do pólen-vida. E as flores abrem-se de cores e esperança, renascendo ainda para mais um ano de doçura e este calor que vai chegando, verdejando o horizonte, amadurecendo os odores, reconstruindo a paisagem.

E a Terra, bola redonda de brincar, prenha de vida na sua forma feminina, arredondada de promessas, faz-me tecer os sonhos das suas vestes de mar azul e algodão branco, enquanto alongo os meus desejos nos ocres e nos verdes dos seus ais. Corpo de fartura, avara promessa de vida. Aqui. Só ainda está aqui. E, a cada dia que passa, mais pequeno o respeito que lhe temos; cada vez mais fartas as dores que lhe impomos.

Lá no alto, parecem-me cada vez menos as andorinhas que chegam. Lá ao longe, suspeito de mais queimadas que impomos a este ventre que nos sustenta. Lá, no futuro, suspeito que a Mãe Terra se revoltará numa dor irada contra estes seus filhos que tanto a maltratam…

Saio para a rua e vou aproveitar a Primavera, enquanto a Primavera ainda chega.

2006-05-11

O que calo




Tinha um fim-de-semana todo para contar e, no entanto, não há forma de alinhavar as letras de maneira a garantir que, assim, tal e qual como está, ainda bem vivo na minha memória, não perde nem pedaço nem doçura. Como se apesar do tanto que me dispo nas palavras, coisas houvesse que devem permanecer longe delas. Ou porque não as sei contar; ou porque - egoísta - quero saboreá-las sem partilhas. E nem chego bem a saber como seria possível sequer dizer do tanto e tanto que foi. Porque foi, sendo ainda. Porque não sei até onde vai, ou poderá ir. Ou sequer se tem de ir ou se tenho de saber que vai. Mas é sentimento, é gosto, sabor, sentidos. Ficam pobres na descrição possível da falta do jeito que tenho para as contar. Como o sopro do vento gelado de Marvão, ou a água fresca de Castelo de Vide. Aqui não é possível sentir nem um nem outro; não há palavras que lhes cheguem. E não há muito mais a dizer do que isto.

Talvez depois, daqui a umas semanas ou então só muitos meses, costure mais este trapo descosturado pelo tempo...

Livro aberto



There are promises broken and promises kept
Angry words that were spoken, when I should have wept
There's a chapter of secrets, and words to confess
If I lose everything that I possess
There's a chapter on loss and a ghost who won't die
There's a chapter on love where the ink's never dry
There are sentences served in a prison I built out of lies.

Though the pages are numbered
I can't see where they lead
For the end is a mystery no-one can read
In the book of my life



Sting - The Book of My Life

É só mais um...

2006-05-10

Slides


AnneKarin Glass - Lost in Memory


Fecho os olhos e sinto os pedaços da memória a agruparem-se em fila. Sinto-os em pontas, à espera da vez, para me povoarem novamente das suas energias. Como slides, deslizam, fazem-se presentes.

Lembro uma cara, um sorriso, um fantasma que ainda me habita. Lembro o tempo e o cheiro e até o sabor roubado de uma boca.

Lembro uma sala, um jardim, um copo que vejo umas vezes meio cheio, outras só meio vazio. Sinto ainda um toque gotejante e o som de um riso ténue e respondo com a gargalhada de outrora.

Fecho os olhos e vejo pedaços de mim mofados, encanecidos, suspiros que já não há, ais que já perdi.

Fecho os olhos e vejo conchas de segredos e ainda sinto a velha maresia que me prende, hoje como antes, às ondas das recordações adormecidas.

Fecho os olhos para me abrir à memória desbotada. Pinto novamente cada slide que desliza e se agrupa e me faz sentir invernos que foram estios e primaveras que nunca despertaram.

Fecho os olhos e vejo cada slide da memória que se esfuma e não lhes encontro já nem as dores nem as alegrias. Só recordações de tempos trágicos e de alegrias breves, ou breves tragédias que se vestiram de alegria.

Slides que me invadem quando fecho os olhos. Memórias que me violam a consciência e me ferem sem no entanto causarem uma dor real.

Slides que deslizam, dando a vez ao que se perfila. Slides com corpos, ou só cabeças, ou só mãos, ou só sorrisos. Slides que apenas trazem cheiros. Outros que trazem sons e músicas. Outros que me afloram ainda a pele com o mesmo toque que um dia foi sorriso, cabeça, corpo, cheiro, mãos e música.

Fecho os olhos e o tempo escoa-se mas não se esquece. Fecho os olhos e vejo tudo, o que tem volta, o que já não. Fecho os olhos e vejo-me a mim, perdida ainda nos confins da minha memória...

2006-05-09

Mais um...

You Are Midnight

You are more than a little eccentric, and you're apt to keep very unusual habits.
Whether you're a nightowl, living in a commune, or taking a vow of silence - you like to experiment with your lifestyle.
Expressing your individuality is important to you, and you often lie awake in bed thinking about the world and your place in it.
You enjoy staying home, but that doesn't mean you're a hermit. You also appreciate quality time with family and close friends.


Não estranho o resultado, que sempre fui "coruja". Mas voto de silêncio? Será que a voz ainda me foge de vez?


("roubado" à
Velvet)

2006-05-08

As segundas-feiras deviam ser proibidas!


Marc Chagall - Adam and Eve Expelled from Paradise (1954-67)

Depois da cobra, da auréola e do fruto da tentação, hoje só venho mesmo cá dizer que, ultimamente, até já me preocupo com tanta alegoria bíblica. Mas é que o dia teve um sabor demasiado acre, como se provasse um travo da expulsão do Paraíso...

2006-05-05

Frutos maduros


aqui


Às vezes até me espanto com o quanto me sinto melhor hoje do que quando - por diferentes padrões - até estava de facto melhor. Não me sinto particularmente envelhecida em qualquer aspecto e até o corpo parece também ainda não se sentir a caducar, mesmo que lhe fuja já parte da frescura de outros tempos. Na verdade, o meu corpo e eu amadurecemos e - talvez por também eu gostar mais de frutos maduros e sumarentos - gosto de mim assim.

Por isso - e apesar da falta que os cigarros estão a fazer-me - vou aproveitar o fim de semana para regalar de mimos o corpo e o espírito. Para que a próxima semana, sem feriados nem mordomias, não me pese uma tonelada de irritações, para que as pernas não se queixem dos maus tratos, para que o humor não se faça em farrapos.

Só espero que o S. Pedro seja meu amigo. Quero sol! Fiquei com desejos de sol desde que, hoje, provei as primeiras cerejas do ano...


Bom fim de semana!

2006-05-03

Lol!


Oh Catarina, lembras-te do Honda? Vê lá se isto te ajuda a recordar :))

Que dança?


imagem "roubada" à Emiéle

(a ver se me passa o mau humor que, finalmente, decidi-me pelos selos antitabágicos, mas continuo com vontade de fumar; só que os cigarros sabem-me agora a palha e eu ainda não desci - não completamente, ou não todos os dias, pelo menos - à condição de ruminante… mas já faltou mais! Vou-me à pinga, que é melhor...)

2006-05-02

Estou triste!


aqui


Pode Alguém Ser Quem Não é - Joana Melo + Sérgio Godinho


E se, em vez de Sérgio Godinho, te oferecer um carregamento de estrogénio?

Língua bífida


aqui


Às vezes, parece-me haver mais línguas bífidas do que línguas afiadas. Criticar pela negativa é sempre tão mais fácil! Entrar em jogos persecutórios mais fácil ainda. Ler nos outros os nossos medos, os nossos traumas, os nossos preconceitos, é um hábito de que se abusa. Essa é a parte da net de que não gosto. Uma net feita pavilhão de caça de uma série de gente minguada perante a vida. E contra ela me revolto. Mesmo também tendo, muita vez, uma língua afiada. Demasiado afiada.

Estou a ficar cansada...