Daniel, o director artístico do teatro, há muito vinha sentindo uma presença estranha no seu gabinete: Um restolhar de papeis, um projecto não encontrado ou um ruído esquisito na hora de fechar as luzes do seu espaço.
O pessoal da bilheteira queixava-se, ao sereno director financeiro, o doutor Vasques, do desaparecimento de bilhetes, afirmando que reconheciam um sorriso matreiro em dois ou três miúdos da Rua Escura que entravam sempre legalmente nos espectáculos do teatro.
A coisa começou a tomar uma escala mais evidente, quando um actor, de um desses grupos de novo circo, participou o furto de um adereço cómico fundamental para o seu “número”, num pranto incontrolável.
Daniel só ficou verdadeiramente alarmado no dia em que Letícia, bailarina de grande mérito, lhe exigiu de nariz empinado, que corresse dos ensaios aquele alguém, que não conseguia identificar, pois não suportava o risinho trocista a cada falhanço no palco. Assim, na reunião semanal, lá estava aquele ponto na ordem de trabalhos; se alguém visse algo de estranho, que avisasse logo o director a fim de se tomarem as respectivas medidas.
O primeiro contacto com a criatura deu-se na zona técnica.
Uma bela manhã de Inverno, ao pegar do trabalho, os homens do palco deram-se conta que alguém virara a oficina de pantanas, usando tudo quanto pudera encontrar, para construir uma enorme árvore de natal mesmo no meio da sala. E estava lá tudo: Lâmpadas, fios, cabos projectores, todo o tipo de objectos empinados sobre uma estrutura de cenário, a lampejar…a lampejar…a lampejar.
-Mau Maria!... Exclamou Chico Gordo, o electricista de cena.
Durante uns segundos fitaram boquiabertos aquela estranha escultura.
Ainda mal refeitos da surpresa, viram passar à sua frente uma sombra veloz que se escondeu num dos armários metálicos do sector.
-Deve ser uma ratazana. Disse Chico.
-Não me pareceu… Mas embora agarrá-la? Propôs Sebastião, o técnico das luzes.
Se assim o pensaram, assim o fizeram. Sebastião pegou numa rede que ficara de uma peça sobre o mar e, coordenados, abriram as portas do armário, capturando o animal que se ficou a debater preso nas malhas. O animal começou logo a guinchar:
- Não me façam mal! Calma, não me façam mal!
- Olha, o bicho fala. Disse Chico coçando a cabeça.
- Parece que caímos no meio de uma fábula… Murmurou Sebastião, esfregando os olhos para ver melhor. Isto de trabalhar num teatro, não é nada bom para a saúde!
- Eu explico! Eu explico tudo. Gritava o bicho.
- Explicas tudo, é dentro desta gaiola que ficou cá do circo! Disse Chico colocando o animal dentro de uma pequena jaula.
E correram os dois, ao gabinete do director, para dar parte da situação.
Daniel, que achava os beirões grandes beberrões, aconselhou os funcionários a consumirem menos vinho Dão durante as horas de serviço. Aquela história era demasiado irreal para estar a acontecer no seu teatro. Mas os dois técnicos lá o convenceram a descer até à oficina, para falar com o seu achado. Ao ver aquele bicho comprido, a preto e branco, de focinho pequeno, grandes bigodes, orelhas breves e olhar penetrante, o director disse logo:
- Mas isto é um furão! O meu avô era caçador e eu ainda me lembro de algumas coisas…
-Grande novidade… Largou o furão ironicamente.
-Ainda por cima fala. Disse Daniel
-Eu não disse? Atalhou Sebastião
O director, que nunca perdia a calma face à fantasia, puxou duma cadeira, ajeitou os óculos, cruzou as mãos e ainda incrédulo perguntou ao bicho:
- Mas afinal quem és tu?
- Chamo-me Viriato e vivo aqui neste teatro. Cansei-me da vida do campo, dos cães sempre a ladrar atrás de mim, além disso cada vez há menos coelhos nessas matas. Estou farto de ser um animal selvagem, ao menos aqui cultivo-me. Há sempre tanta coisa interessante a acontecer.. Respondeu o animal.
-Só me faltava esta! Que vamos fazer contigo?
- Deixa-me ficar por aqui. Suplicou Viriato. Prometo que não vou fazer disparates. Vocês até nem deram por mim até agora…
- Agora ficámos com um mascote! Bom, Sebastião, deixa-o na gaiola e dá-lhe de comer. Sentenciou Daniel ainda abalado pelos acontecimentos.
Bem, ao fim de uma semana no sector técnico, já ninguém podia escutar o furão na sua conversa lamuriosa:
- E eles não me deixam ver teatro! E eles não me deixam ver a dança! E estou a perder todos os ateliês! Estou farto de estar fechado sem aprender nada! E quando é que vocês me tiram daqui?
O doutor Vasques, que não gostava nada de perturbações, resolveu pedir aos rapazes que levassem o tal furão Viriato até ao balcão, para assistir ao último acto de uma peça que fazia sensação na cidade, pois já não podia com tanta guinchadeira. Poisada a gaiola lá em cima, o director financeiro pôs-se a observar a pequena besta, notando que alterava o seu comportamento a cada deixa dos actores, tendo terminado a peça de lágrima comovida escorrendo sobre o pelo.
-Já te topei… Não é que gostas mesmo de arte... Concluiu para si Vasques, esboçando um sorriso no seu rosto. Belo público que tu és!...
Na primeira oportunidade, abordou Daniel na escadaria, com uma estranha ideia:
-Sabes, eu acho que devíamos deixar o furão à solta para ver como ele reage dentro do teatro.
- Vasques, tens tomado os comprimidos para a tensão? Isto não é um jardim zoológico, é um teatro!
Mas Vasques, tranquilamente como é o seu hábito, convenceu Daniel a apresentar o Viriato a toda a equipa, num encontro informal a ter lugar no foyer, por exemplo. Depois de narradas as capacidades de espectador do furão, acedeu Daniel, marcando o encontro para a manhã seguinte.
E, no dia seguinte estavam todos lá!
Viriato, de pelo penteado e lustroso, apresentou-se a toda aquela gente espantada, usando o seu charme animal. Comentou espectáculos, desempenho dos actores e até deu sugestões no funcionamento prático do teatro. Renderam-se todos àquele bichinho…
Mas com quem surgiu um entendimento mágico, como se fora paixão ao primeiro olhar, foi com Mariana, a responsável pelos serviços educativos, que não resistiu a pegar no bicho ao colo.
Passou assim Viriato a andar às claras por todo o teatro, numa atitude prestável, bem diferente da clandestinidade em que tinha vivido. Ele verificava cabos nas zonas de difícil acesso, equilibrava-se sobre a teia consertando projectores, mas aquilo de que mais gostava era trabalhar com Mariana nas iniciativas do serviço educativo. Tinha aquela cumplicidade com as crianças, construída em segredo nas borlas que dava para os espectáculos e, ainda por cima, faziam-lhe festas em locais do corpo que não conseguia alcançar, causando-lhe arrepios de prazer. Era sempre divertido e interessante participar nos ateliês de Mariana; fazendo de guia, pois conhecia todos os recantos daquela casa mágica, ou assumindo uma postura bem profissional quando vestia o papel de monitor nas oficinas pedagógicas. Recebia as escolas na entrada principal, dava informações, fazia de cicerone, distribuía folhetos, conferia materiais e muitas outras tarefas. Sobretudo os meninos gostavam do jeito vivo e matreiro do bicho.
Apenas uma coisa não mudou: o seu carácter opinativo e crítico, um terror para as companhias visitantes, obrigando Mariana a exigir tento na língua, sob pena de o devolver às serranias beirãs.
Com o passar dos tempos, Viriato ganhou uma tal dose de popularidade entre as crianças da cidade, que Daniel, o director, não teve outra alternativa senão nomear aquele monitor felpudo: “Viriato o assessor do teatro”.
Miguel Horta in revista "Boa União", Teatro Viriato, Viseu