As I walk through the valley of the shadow of death
I take a look at my life and realize there's nothing left
Cause I've been blastin and laughing so long that
Even my mama thinks that my mind is gone
Coolio – Gangsta’s Paradise
A minha geração. Que nome pomposo, certo? Mas hoje não me saiu da cabeça, tudo à conta das mensagens a propósito do Live Aid e de como todas as gerações podem ter actos grandiosos.
E, no entanto, eu olho para trás e não me consigo visualizar como fazendo parte de uma geração de eleitos. Aliás, encontro-me antes perante um cenário de tragédia de reminiscências épicas, algo que os gregos teriam adorado.
A minha geração fez o primeiro Live Aid. Claro que o fez! Mas, nos intervalos, arranjava formas novas de meter heroína no corpo. Olho para trás e é disso que me lembro: cachimbos, seringas, tripes megalómanas, egos frágeis carcomidos por necessidades que não paravam de crescer.
Não sei se tive sorte ou simplesmente azar. É verdade que não sei. Porque arranjei maneira – ou me arranjaram – de evitar uma descida aos infernos. Ou, se calhar, nem foi bem assim, porque fui na mesma aos infernos à conta de outros. E não há nada que me faça mais mal até hoje do que ver quem gostamos em privação. Dói! Dói um absurdo.
Da “minha geração”, se por geração estiver a falar do grupo de adolescentes que se reunia ao cima da rua todas as noites depois de jantar, sobram poucos, demasiado poucos para que ainda faça sentido para mim a palavra geração. Do grupo que, da escola primária transitou para a preparatória, sobram-me os dedos de apenas uma mão para dizer quem não experimentou drogas duras. E sobram-me dedos de duas mãos para aqueles que, tendo experimentado, não acabaram agarrados. O trágico, ou nem por isso, é que um desses dedos sou eu.
Até hoje, pesa-me de alguma forma ter sobrevivido. Por ter andado tão perto do abismo sem lá cair. Por ter arranjado alguma forma de me segurar. Não sei o que havia em mim de diferente. É que não sei mesmo. Éramos todos tão parecidos, tão demasiado parecidos, que estranho o fim de uns, os caminhos que escolheram para esse fim, e os outros que, como eu, arranjaram formas de mudar de rumo.
Qual terá sido o leme? Não sei. Não sei mesmo! Sei apenas que já fui a demasiados funerais, que escolhi não pôr os pés em outros tantos. Sei que sobrevivi à adolescência, à necessidade de pertença a um grupo, às roupas e aos rituais de integração. E estou viva!
A solidão não nos abandona quando olhamos para trás e vemos como tantos dos “nossos” partiram antes do tempo. A minha geração é uma geração decepada de muita gente brilhante, que nem teve tempo para provar como era brilhante. É uma geração de sobreviventes. E os sobreviventes, apesar de tudo o que me possam dizer, não são necessariamente os melhores. São apenas os que tiveram sorte. Ou os covardes, porque ter parado pode não ter passado de covardia. Ou então corajosos, porque parar, perante o grupo, sempre foi um acto de coragem. Mas nunca, nunca, os melhores.
Os melhores, de todos os que conheci, já se foram. Partiram cedo, de forma extemporânea, encontraram o buraco no fundo de uma agulha ou dos caminhos para essa agulha.
E sobraram os outros, uns poucos de outros. A estes, resta viver com as memórias, com a noção de que sobraram por algum motivo desconhecido. E eu, de entre eles, ainda procuro o caminho para além da culpa. Porque a culpa é tramada. Faz-nos sentir a mais, faz-nos sentir usurpadores de vidas que não nos pertencem. Sim, vivo para além da culpa. Vivo para provar a mim mesma, todos os dias, que não preciso sentir-me culpada por ter sobrevivido.
Perdi demasiada gente. Custou encontrar-me. Mas estou viva!
E este post é para uma amiga especial que escolheu como rumo de vida provar a cada miúdo que vive na beira do abismo que há esperança para lá disso. Mesmo que a esperança se construa de salas de isolamento almofadadas. Porque o teu esforço diário para salvar a geração de amanhã faz-me desejar, hoje que olho para trás e vejo tudo quanto perdi, que alguém como tu tivesse visitado a minha geração. Ou, pelo menos, o pedaço da minha geração que se juntava, todas as noites, ao cimo da minha rua.