2005-07-26

Fado

(...)
O fado é tudo o que eu digo
Mais o que eu não sei dizer


Aníbal Nazaré - Tudo Isto é Fado



Tinham-lhe dito que o mundo seria dela lá pelos trinta anos. Tinham-lhe dito que, com paciência, chegaria a sua vez. Afinal, era filha da democracia, da igualdade no acesso à educação e à cidadania. Já não era propriedade dos pais, do marido, dos filhos ou da moral. Era senhora do seu corpo, do seu destino, das escolhas que quisesse fazer, onde e quando, sem responder a porquês.

Tinham-lhe prometido liberdade e ninguém lhe explicou que a liberdade também tem preço. Libertou o seu corpo ao primeiro namorado e nasceu o primeiro filho. Tinha dezassete anos e afinal o futuro era presente.

Afogou as mágoas nos corpos de outros homens, sem nunca saber, porque nunca ninguém se lembrou de lhe explicar, como evitar os filhos e as doenças. Acabou com mais dois filhos, de pais ausentes, pensões prometidas e nunca pagas. E fama de puta, lá pela terra, que as mentalidades não mudam só porque mudam as leis.

Chegou aos trinta a limpar as casas dos outros e a apanhar porrada do novo companheiro, de cada vez que o carrascão se substituía ao sangue das veias. Umas quantas visitas à polícia e ao hospital e o peso da vergonha. Porque as putas até merecem apanhar nas trombas e o gajo de certeza que tem razão.

Já não sonha com futuro, limita-se a esperar o amanhã. Descobriu entretanto que arranjou uma nova companheira de viagem. Uma chamada SIDA, que lhe arrendou a vida depois de o companheiro fazer mais uma visita às putas da Estrada Nacional.

Já não há mais sonhos.

1 comentário:

Hipatia disse...

On : 7/26/2005 4:17:35 PM Cristina (www) said:

Pôrra pá!!!

Que vida cruel... e o pior, que real!!!


On : 7/26/2005 6:18:17 PM corpo visível (www) said:

Apesar de toas as vicissitudes, acredito que o ser humano dificilmente perde a capacidade de sonhar.
E se o sonho comandar a vida...
.
A parte menos má é que nos tempos que correm a SIDA é já uma doença crónica. Ainda possibilita muitos anos aos sonhos.
.
Beijo!


On : 7/26/2005 7:05:56 PM mocho falante (www) said:

Violento mas muito arrebatador.

Adorei espreitar o teu poiso, prometo voltar.


On : 7/27/2005 7:31:23 AM Margens (www) said:



Meu Deus....



On : 7/27/2005 7:49:43 AM Hipatia (www) said:

Sabes, Cristina, a Maria Árvore diz ali ao lado nas Outras Vozes que todos conhecemos uma história semelhante para podemos fazer um paralelo com esta. Talvez por isso te pareça tão real.


On : 7/27/2005 7:53:18 AM Hipatia (www) said:

Mas mesmo para conviver com esse "crónica" (que já não é o caso: a infecção por HIV já se transformou mesmo em doença, aliás, doenças e uma delas vai levar esta mulher mais dia menos dia) é preciso conhecimento, conhecimentos, dinheiro, apoios... acho que esta mulher nunca os teve. É uma história de miséria humana, uma que eu gostaria de imaginar inadmissível na nossa geração; uma que espero que nunca mais se repita na geração que nos vai substituir.


On : 7/27/2005 7:53:40 AM Hipatia (www) said:

Obrigada, Mocho


On : 7/27/2005 7:57:40 AM Hipatia (www) said:

Os primeiros a virarem as costas a esta mulher foram o padre da aldeia e as suas beatas. Deus, a existir, por certo não concordaria, Margens. Mas o certo é que aqueles que se afirmam seus mandatários o fazem a toda a hora e em todo o lugar. O preservativo não está de acordo com o dogma, não é? Quem defende o seu uso, sujeita-se à ira dogmática e caduca de uns quantos imbecis que ainda se acham intermediários da fé verdadeira.


On : 7/27/2005 8:23:14 AM corpo visível (www) said:

Hipatia, os medicamentos para o HIV são gratuitos. Os doentes têm é de ser encaminhados para consultas de infecciologia (através de um P1 do médico de família).
Se calhar o 1º passo é ir ao médico assistente ou à assistente social da área.
Ainda se pode fazer muito por essa mulher e outras pessoas na mesma circunstâncias. É preciso informar, de facto.
Beijinhos!


On : 7/27/2005 8:34:21 AM Hipatia (www) said:

Mas até mesmo os centros de saúde não escapam à maior das viroses, Corpo Visível: o desconhecimento, feito tabu, feito preconceito. E às vezes ter formação daquela dita superior também não serve de nada. Acreditas que ontem me recriminaram por ter cumprimentado esta mulher com dois beijos na cara?



On : 7/28/2005 9:18:57 AM corpo visível (www) said:

Infelizmente acredito...


On : 7/28/2005 11:43:09 AM Hipatia (www) said:

O preconceito é tramado. E é demasiado fácil encontrá-lo onde menos se espera


On : 7/28/2005 12:39:44 PM corpo visível (www) said:

E depois há também o medo que paralisa e tolda consciências...


On : 7/28/2005 4:49:27 PM Hipatia (www) said:

Ainda é mais frustrante quando damos conta que o medo, sentimento irracional entre todos, acaba por fazer esquecer o que todos sabemos racionalmente: não se pega com um beijo no rosto, com um abraço, com um aperto de mão...


On : 10/14/2005 7:18:14 PM Hipatia (www) said:

Mais Vozes

é a pior das companheiras, mas há que sobreviver com esperança...dos dias que ai vem mesmo que dificeis.
Carlos Barros | Homepage | 07.26.05 - 8:46 pm | #

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Suponho que seja mesmo. Ao olhar para o rosto desta mulher, hoje, senti-me quase perdida. Não a via já há uns meses. Num instante, ficou velha, demasiado velha. E, no entanto, é da minha geração. Talvez seja afinal tudo uma questão de acasos e, nesses acasos, uma dose certa de sorte. Tivesse sido eu a nascer naquela família, na terriola perdida da Beira Alta, às tantas era a minha história. Talvez seja isso o que mais me custa, já que não consigo deixar de agradecer "o meu fado", olhando estarrecida o fado alheio.
Hipatia | 07.26.05 - 8:53 pm | #

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És da beira alta?
Inês Casanova | 07.26.05 - 9:12 pm | #

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Não é preciso ser da Beira Alta, ter engravidado aos 16 anos, ou ter um companheiro amante de conquistas de beira de estrada. Por vezes, no nosso próprio círculo de amigos, a "companheira" esconde-se por trás de gente aparentemente sã e feliz, com um futuro promissor brutalmente interrompido. Cada vez está mais perto de nós.
Luna | Homepage | 07.26.05 - 10:35 pm | #

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Para além da história brutal que todos conhecemos alguém a quem a colar e assim nos tocas a todos , registo a tua frase «as mentalidades não mudam só porque mudam as leis».

É ténue o esforço de sensibilização para questões básicas da vida, para a educação sexual.

Se calhar, propalar que todos temos direito a ser felizes é muito subversivo.
maria arvore | Homepage | 07.26.05 - 11:18 pm | #

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E, concerteza, que ela continua a sofrer em silêncio e sozinha. Não é só o peso do olhar dos outros que ela carrega mas também o seu.
Condessa às Avessas | Homepage | 07.27.05 - 12:08 am | #

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Não, Inês. Sou do Porto. A mulher de quem falo é que é da Beira Alta. Por acaso, chegou a ser minha empregada durante uns tempos e, ontem, contou-me tudo isto porque, ultimanente, trabalha sem seguro o que, como podes calcular, não lhe está a facilitar em nada as idas à farmácia e ao médico.
Hipatia | Homepage | 07.27.05 - 2:10 pm | #

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Não, Luna, não é preciso ter uma história vinda da Beira Alta, com companheiros violentos e filhos a precisarem ser criados para se arranjar uma companhia destas. Mas, na maior parte das vezes, o desamparo não é assim grande, assim evidente. Nem a vergonha e o ostracismo a que são votados pelas pessoas que lhes deviam ser mais próximas. Suponho que tu, tal como eu, não terias problemas em conviver com amigos infectados, nem te afastarias de amigos em estados terminais. Mas também suponho que saibas que a ignorância ainda é uma das grandes pragas da nossa sociedade. E às tantas é nossa sorte termos essa ignorância mais longe de nós.
Hipatia | Homepage | 07.27.05 - 2:15 pm | #

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É exactamente isso, Maria Árvore. E essa frase que escolhes é, quanto a mim, uma das mais importantes do texto que escrevi. Aliás, escrevi-a a pensar nas recentes polémicas a propósito da educação sexual nas escolas e na defesa, pelo Padre Feitor Pinto, do uso do preservativo para evitar contágios.

E deve ser muito subversivo propalar a defesa da felicidade e do conhecimento. Aliás, todas as épocas nos mostraram isso mesmo: conhecimento é poder, um poder roubado a quem gosta e quer manter o próprio poder. E a forma mais básica para impedir essa fuga do poder dos punhos de uns quantos, sempre foi pelo medo, pela culpa. Ora, nem o medo nem a culpa, que a cultura judaico-cristã impôs em todos nós, lida bem com qualquer resquício de felicidade. É suposto sermos filhos de um Deus castigador e castrador e irmãos de um outro Deus flagelado. A pomba acho que só lá esteve sempre para enganar...
Hipatia | Homepage | 07.27.05 - 2:22 pm | #

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Claro que sim, Condessa. Ela não deixa de ser fruto de uma mentalidade carregada de noções de vergonha e de culpa. Provavelmente, até era bem capaz de ter uma atitude condenatória para com outra mulher com uma vida semelhante. E, no entanto, o mal não está nela, não é?
Hipatia | Homepage | 07.27.05 - 2:26 pm | #