2005-07-02

A minha geração

As I walk through the valley of the shadow of death
I take a look at my life and realize there's nothing left
Cause I've been blastin and laughing so long that
Even my mama thinks that my mind is gone

Coolio – Gangsta’s Paradise



A minha geração. Que nome pomposo, certo? Mas hoje não me saiu da cabeça, tudo à conta das mensagens a propósito do Live Aid e de como todas as gerações podem ter actos grandiosos.

E, no entanto, eu olho para trás e não me consigo visualizar como fazendo parte de uma geração de eleitos. Aliás, encontro-me antes perante um cenário de tragédia de reminiscências épicas, algo que os gregos teriam adorado.

A minha geração fez o primeiro Live Aid. Claro que o fez! Mas, nos intervalos, arranjava formas novas de meter heroína no corpo. Olho para trás e é disso que me lembro: cachimbos, seringas, tripes megalómanas, egos frágeis carcomidos por necessidades que não paravam de crescer.

Não sei se tive sorte ou simplesmente azar. É verdade que não sei. Porque arranjei maneira – ou me arranjaram – de evitar uma descida aos infernos. Ou, se calhar, nem foi bem assim, porque fui na mesma aos infernos à conta de outros. E não há nada que me faça mais mal até hoje do que ver quem gostamos em privação. Dói! Dói um absurdo.

Da “minha geração”, se por geração estiver a falar do grupo de adolescentes que se reunia ao cima da rua todas as noites depois de jantar, sobram poucos, demasiado poucos para que ainda faça sentido para mim a palavra geração. Do grupo que, da escola primária transitou para a preparatória, sobram-me os dedos de apenas uma mão para dizer quem não experimentou drogas duras. E sobram-me dedos de duas mãos para aqueles que, tendo experimentado, não acabaram agarrados. O trágico, ou nem por isso, é que um desses dedos sou eu.

Até hoje, pesa-me de alguma forma ter sobrevivido. Por ter andado tão perto do abismo sem lá cair. Por ter arranjado alguma forma de me segurar. Não sei o que havia em mim de diferente. É que não sei mesmo. Éramos todos tão parecidos, tão demasiado parecidos, que estranho o fim de uns, os caminhos que escolheram para esse fim, e os outros que, como eu, arranjaram formas de mudar de rumo.

Qual terá sido o leme? Não sei. Não sei mesmo! Sei apenas que já fui a demasiados funerais, que escolhi não pôr os pés em outros tantos. Sei que sobrevivi à adolescência, à necessidade de pertença a um grupo, às roupas e aos rituais de integração. E estou viva!

A solidão não nos abandona quando olhamos para trás e vemos como tantos dos “nossos” partiram antes do tempo. A minha geração é uma geração decepada de muita gente brilhante, que nem teve tempo para provar como era brilhante. É uma geração de sobreviventes. E os sobreviventes, apesar de tudo o que me possam dizer, não são necessariamente os melhores. São apenas os que tiveram sorte. Ou os covardes, porque ter parado pode não ter passado de covardia. Ou então corajosos, porque parar, perante o grupo, sempre foi um acto de coragem. Mas nunca, nunca, os melhores.

Os melhores, de todos os que conheci, já se foram. Partiram cedo, de forma extemporânea, encontraram o buraco no fundo de uma agulha ou dos caminhos para essa agulha.

E sobraram os outros, uns poucos de outros. A estes, resta viver com as memórias, com a noção de que sobraram por algum motivo desconhecido. E eu, de entre eles, ainda procuro o caminho para além da culpa. Porque a culpa é tramada. Faz-nos sentir a mais, faz-nos sentir usurpadores de vidas que não nos pertencem. Sim, vivo para além da culpa. Vivo para provar a mim mesma, todos os dias, que não preciso sentir-me culpada por ter sobrevivido.

Perdi demasiada gente. Custou encontrar-me. Mas estou viva!

E este post é para uma amiga especial que escolheu como rumo de vida provar a cada miúdo que vive na beira do abismo que há esperança para lá disso. Mesmo que a esperança se construa de salas de isolamento almofadadas. Porque o teu esforço diário para salvar a geração de amanhã faz-me desejar, hoje que olho para trás e vejo tudo quanto perdi, que alguém como tu tivesse visitado a minha geração. Ou, pelo menos, o pedaço da minha geração que se juntava, todas as noites, ao cimo da minha rua.

1 comentário:

Hipatia disse...

On : 7/2/2005 6:43:40 PM riquita (www) said:

a maior parte de nós viveu a sua juventude na fase de explosão das drogas no nosso pais. de facto, são poucos os que resistimos a um caminho que na altura era o mais fácil. mas, como dizes estamos vivos e o que não nos mata deixa-nos mais fortes.


On : 7/2/2005 7:06:11 PM mysticat (www) said:

hoje foi um dia de emoções ao rubro. não por ver a nata musical na tv, mas pela causa que os faz mover.
são conhecidos, pois, mas há heróis anónimos como essa tua amiga. e cada um é heróis à sua maneira, para o bem e para o mal, porque a Vida é madrasta, não faz sentido e assusta.
Porque no fundo, a vida é uma constante luta, e realmente é tudo muito muito relativo.
Hoje dei por mim a pensar:
"És muita besta! tu a lamuriares-te por um mp3 quando há tanta gente que nem um grão de arroz tem ao fim do dia..."

Passei o dia nisto... num misto de emoção, revolta e gratidão por estar viva e aqui, em vez de semi-morta e ali naqueles filmes que passaram ao longo dos concertos de hoje.

Mas a memória é curta...

beijinhos. eu dps volto cá, que hoje não aguento muito mais...


On : 7/3/2005 7:50:13 PM Noite (www) said:

Não tens que te sentir culpada se escolheste outro rumo, Hip. Se tu escolheste o teu, os outros escolheram o seu e foi essa a sua vontade. Ou muito provavelmente ninguém escolheu o seu destino; ele apoderou-se de cada um e levou-os para onde achou melhor.
Vivi sempre muito à margem dessas coisas, felizmente. Eu e as pessoas próximas. Éramos mais copos.


On : 7/4/2005 7:31:01 AM Margens (www) said:

Felizmente que existe quem se dá totalmente aos outros, que acredita e que luta com todas as suas forças pela vida dos outros, quando ninguém mais acredita, nem eles mesmo, quando ninguém se digna a olhar para o lado... A essa tua amiga, a ti, o meu muito obrigada.

Beijos para as duas.


On : 7/4/2005 7:55:35 AM jp (www) said:

Será que eras assim tão igual Mia?
Olha que não...


On : 7/4/2005 8:15:53 AM Zu (www) said:

Estou como a Noite, vivi sempre longe desses problemas. Acho que tu não te podes culpar por teres trilhado um caminho diferente. Ainda bem que o fizeste! E que há quem viva para mostrar que existe esperança.


On : 7/4/2005 4:53:20 PM Hipatia (www) said:

Não sei se nos deixou melhores, Riquita. Mas uma coisa é certa: marcou muita gente e ajudou a mudar as mentalidades


On : 7/4/2005 4:55:13 PM Hipatia (www) said:

Sabes o que me apetece dizer depois de te ler, Misty?

"Sou muita besta! A lamuriare-me para aqui quando há tanta gente que nem um grão de arroz tem ao fim do dia..."




On : 7/4/2005 5:00:10 PM Hipatia (www) said:

Mas houve sempre escolhas, Noite. Podem é não ter sido as mais acertadas

E "culpa" talvez não fosse a palavra mais correcta... Não sei! No fundo, é um misto de sentimentos, com muita impotência, muita revolta, muita sensação de vazio. No dia em que escrevi o post, tinha estado com a mãe de um desses amigos. Perante ela, sinto-me sempre culpada, mesmo sabendo, em termos racionais, que não tenho culpa nenhuma. Percebe-se o que quero dizer com culpa? Não sei se se percebe...


On : 7/4/2005 5:02:51 PM Hipatia (www) said:

Sim, Margens, o texto era mesmo para uma pessoa que não baixa os braços, nem nos piores dias, para tentar encontrar um rumo para quem anda demasiado próximo do abismo. O resto é só resultado da minha lamechice do costume e deste umbigo centrifugador


On : 7/4/2005 5:04:25 PM Hipatia (www) said:

JP, mesmo não sabendo quem é a Mia, agradeço-te a visita à Voz e a simpatia do comentário

Mas na adolescência não somos sempre todos demasiado parecidos?


On : 7/4/2005 5:12:10 PM Hipatia (www) said:

Percebo o que dizes, Zu. Também conheço muita gente que permaneceu resguardada destas histórias. E, no entanto, conhecerão, por certo, outras tão ou mais complicadas. Nenhum de nós chegou aqui incólume, por um motivo ou outro. E depois há pessoas como a nossa amiga, que escolhem "chafurdar" nestes assuntos e encontrar um qualquer jeito de resolver o que se pode.


On : 7/4/2005 6:07:22 PM Zu (www) said:

Bem me parecia que sabia a quem te referias. Também eu a admiro, e à sua energia, e à alegria que transmite.


On : 7/4/2005 6:17:21 PM Hipatia (www) said:

Pois

(bem que ela merecia qualquer coisa menos lamechas; mas foi o que saiu, a propósito de uma história que me contou)


On : 7/5/2005 5:47:27 PM Condessa às Avessas (www) said:


Eu sei que já não vais ler isto mas não posso deixar de usar a tua bonecada.

O resto vai em correio directo! Muitíssimo atrasado mas só quando os meus dois neurónios de serviço articularem umas ideias com o mínimo de jeito.

Obrigada, amiga!!!


On : 7/5/2005 6:02:25 PM Hipatia (www) said:

Eu leio tudo...

Beijo


On : 10/14/2005 6:18:43 PM Hipatia (www) said:

Mais Vozes

A culpa é um conceito judaico-cristão que muito me desagrada. Paralisa.
Os consumos de tóxicos não são nada lineares, com imensas variáveis à mistura (particularidades individuais, ambiente social, genética, etc) daí que alguns "entrem" e já não saiam, outros passam incólumes e outros ainda nem sequer se aproximam. Agora culpa por ter "sobrevivido"... Acho que também somos as escolhas que fazemos.
Quanto à "nossa" geração sou bem mais optimista, acho que somos os melhores. "O mundo é nosso, vamos a ele, o mundo é nosso, vamos com ele brincar"!
corpo visivel | Homepage | 07.03.05 - 12:54 am | #

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Penso que é ainda mais complexo e passa também por geografia, física e emocional, Corpo Visível. Zonas mais permeáveis do que outras, com maior facilidade de acessos, mas também com maior poder económico. Lembro, por isso, "filhos de família" a quem os papás deram tudo o que não tinham tido na adolescência: as motas, as férias da Páscoa no Algarve, as roupas de marca, os óculos, as botas, os estudos em qualquer externato bem pago, depois a carta, o carro, o estatuto, sei lá!

Não era suposto ser ali; não eram guetos degradados, famílias disfuncionais. Eram, muitas vezes, tão só miúdos mimados com tempo e dinheiro a mais entre mãos. E uma ânsia de experimentar tudo, viver tudo demasiado depressa.

Claro que há explicações lógicas para cada um dos casos. Claro que sei que não há necessidade de culpa. E, no entanto, emocionalmente, tive de aprender a viver com ela. Culpa e raiva. E muita, muita impotência.

Óbvio, também, que o texto está exagerado: culpa talvez não seja a palavra mais certa. Mas existe até hoje em mim uma ideia de arbitrariedade e essa tenho-a colada à pele. E quando uma amiga me fala dos "seus rapazes", esses sim provenientes de meios sociais degradados onde estaríamos à espera de ver (demasiados) caminhos sem volta, eu recordo quem podia ter tido tudo e não soube ter. E é desses que falo, porque os conheci de perto e fazem parte, até hoje, do retrato iconográfico daquilo a que chamo "a minha geração".
Hipatia | Homepage | 07.04.05 - 10:43 pm | #