2007-01-04

Sou terrorista


Billie Holiday - Strange Fruit


Southern trees bear strange fruit,
Blood on the leaves and blood at the root,
Black bodies swinging in the southern breeze,
Strange fruit hanging from the poplar trees.

Pastoral scene of the gallant south,
The bulging eyes and the twisted mouth,
Scent of magnolias, sweet and fresh,
Then the sudden smell of burning flesh.

Here is fruit for the crows to pluck,
For the rain to gather, for the wind to suck,
For the sun to rot, for the trees to drop,
Here is a strange and bitter crop.


Não sei muito bem como fizeram os meus pais… Não me lembro de grandes prelecções sobre o certo e o errado, ou doses maciças de valores a serem-me enfiados goela abaixo com um copo de leite. Nem me lembro sequer de muito tempo em família, que a minha mãe – ao contrário da maioria das mães que conhecia então – trabalhava fora. Como não recordo qualquer tentativa de me forçarem a acreditar em coisas que não percebia, sem que as tentassem explicar. Ou alguma vez me fazeram ter medo do escuro, de aranhas, ou dos cães, ou dos gatos, ou dos pombos, ou até das cobras que só vi a primeira vez já entrada na adolescência. Como não aprendi a ter medo de estranhos, mesmo sabendo que não devia falar com eles. Nem a distinguir bons e maus em função da cor da pele, ou do penteado, ou da língua que falavam.

Lembro-me vagamente de falarem em ciganos que roubavam coisas. Mas eu, que fui criada a brincar na rua no meio de um grupo enorme e barulhento de crianças, tinha uma amiga cigana que só podia brincar às vezes e era sempre bem recebida por todos e, talvez por isso mesmo, nem sequer acreditava nas histórias dos assaltos. A única pessoa que me tentou alguma vez roubar alguma coisa (uma boneca pavorosa de que eu nem gostava, mas era minha, caraças!), foi uma miúda loirinha e cheia de lacinhos cor-de-rosa, com ar de sonsa e voz esganiçada.

E em minha casa as dúvidas eram transformadas em perguntas e havia respostas. E nunca vivi à sombra de qualquer deus castigador, habilitado apenas para salvar uns poucos escolhidos e a desdenhar todos os demais. Como também não lembro grandes proibições, tirando as óbvias, como nunca faltar ao respeito a ninguém, que isso sim era pecado em minha casa, como o era mentir ou arranjar alvos fáceis para cima de quem atirar as culpas.

Lembro-me sim de apanhar palmadas – todas elas mais que merecidas, devo confessar – de todas as vezes que pisei o risco, quase sempre sabendo que o estava a pisar e fazendo-o só porque sim. Como lembro a proibição de fazer furos nas orelhas "até ter idade para ter juízo" (ainda não estão furadas, pelo que ainda não devo ter juizo) e de não haver roupas novas sempre que queria, mas antes de andar sempre vestida à rapazinho, por herdar as roupas dos meus primos. Mas isso nunca me importou realmente, que sempre preferi jogar à bola ou correr às caçadinhas e até hoje não tenho jeito algum para panelas ou brincar às casinhas.

E é por isso que, olhando para trás, nem percebo bem como conseguiram os meus pais fazerem crescer – salvo opinião devidamente fundamentada – duas mulheres adultas, independentes e com tão poucos medos do mundo e dos outros. A vida foi acontecendo ao correr do tempo, sem que nos impusessem grandes traumas e nos impedissem de dar uns quantos trambolhões para aprendermos que cair dói, mas que depois passa, desde que saibamos voltar a erguer-nos. E ninguém aprende a ficar em pé se não aprender a cair, se não aprender a baloiçar com o vento da vida.

Sei que precisaria ser mãe para entender muita coisa que não percebo realmente. Até porque nem sei bem esmiuçar onde estiveram (tão) bem os meus próprios pais. Mas se arranjei qualquer preconceito com idade, não foi por culpa deles certamente. É que em minha casa não se faziam distinções dessas, nem nos poderíamos atrever a tal veleidade. E talvez seja por isso que, tanta vez, os meus preconceitos me conduzam a pessoas aparentemente tão normais, que se acham tão normais, que julgam deter o segredo da vida e do universo e o querem ainda impor a todos os outros. Deve ser por isso que os meus preconceitos não são nunca raciais ou religiosos, mas são quase sempre profundamente intelectuais.

No fundo, acho que sou mesmo uma terrorista: devo representar o medo para todos aqueles que sempre quiseram um mundo ordenado e a preto e branco, com hierarquias, dogmas e estratos, o nós de um lado e os outros, os diferentes, lá longe, no vão da escada da vida. Talvez eu personifique de facto o terror daqueles que não sabem o tanto de medo que os move: mulher branca, adulta, com direito a voto e voz, independente, senhora do meu ganha-pão e autoridade para dispor dos seus proveitos, que nunca quis ser só esposa, ou só mãe e muito menos cônjuge, defensora do direito à vida cada vez que o carrasco se aproxima com o nó corrediço ou a injecção letal; defensora da vida de todas as mulheres, até daquelas que não querem ser mães; defensora da eutanásia, porque somos livres de dispor do nosso corpo enquanto ainda temos capacidade para decidir em consciência; defensora da pesquisa científica, mesmo que em células embrionárias, porque todas as vidas que podem ser salvas merecem esse esforço; defensora do preservativo e dos contraceptivos; defensora de uma igreja que, se se quer virar para a família e fomentar valores familiares, então tem de passar a saber o que é constituir família; defensora de impostos para os padres; defensora de um Estado laico onde os representantes de apenas uma igreja, bem como os símbolos dessa mesma igreja, não têm lugar em cerimónias que se dirigem aos cidadãos, todos os cidadãos, sem diferenciar nem credo, nem raça, nem género.

Hoje sou uma terrorista porque os meus pais – e nem sem bem como – me ensinaram a viver longe do terror e a apreciar a liberdade de pensamento e todos os direitos que tantas gerações antes da minha se empenharam em alcançar.

Sou terrorista, sim. Uma dessas terroristas de que fala o Papa nazi. E não quero frutos estranhos nas árvores da minha vida!

15 comentários:

TheOldMan disse...

Quanto à última parte é apenas uma questão de ter cuidado ao "escolher a fruta", Hipatia.

;-)

deep disse...

Olá, terrorista!
Ainda bem que és tudo isso!

Um 2007 muito bom para ti.

José Leite disse...

Você vai ao "fundo" da questão!
Deus, que certamente se passeia ao fim da tarde num iate de luxo, deu-nos a todos a capacidade de opinar. Há, de facto, um exacerbado culto da tolice quando se proibe o uso do preservativo e a interrupção voluntaária da gravidez (em certos casos); o papa é dogmático, fundamentalista, não sei quantos anos demorará a Igreja a acompanhar a carruagem, mas , infelizmente, constatamos que é o "carro vassoura" do progresso.

Anónimo disse...

Tiveste sorte com os pais, mas apesar de não ter sido assim educada, também não tenho medos porque aprendi a contestação muito cedo e a pôr tudo em causa.
Também acho que o papa é um nazi, nem sequer bem disfarçado.
E como diz o Deep ainda bem que és isso tudo e mais terrorista.
As minhas saudações.

Maria Arvore disse...

Hipatia,
primeiro quero agradecer-te o facto de me fazeres sentir normal porque também ainda não tenho as orelhas furadas. ;))

Depois, se ser terrorista é defender a responsabilidade e liberdade de todos os indíviduos, sejamos então todos terroristas que o mundo até vai funcionar melhor, não será?...;)

O Ratzinguer defende as restrições e imposições na terra, para os outros, para estes desejarem o paraíso no céu e poder assim ele manter o seu poder e privilégios cá na terra. ;)) É uma imagem muito terra a terra mas é mesmo o que eu penso. O Vaticano e o seu Papa defendem o que os mantenha no poder, assim a modos como o faziam os fariseus no Templo.

No fundo é a mesma história de sempre. Desde os primeiros xamãs na humanidade, quando estes perceberam que o facto de serem eles a interpretar o mágico-religioso e a transmiti-lo aos outros humanos lhe conferia o poder, nunca mais quiseram abandoná-lo.

Hipatia disse...

Esta música da Billie Holiday, que fala dos negros pendurados nas árvores do sul racista, foi a bandeira dos direitos civis dos afro-americanos. A letra foi escrita por um judeu, Lewis Allan. Ouvi-a no primeiro dia do ano e resolvi fazer dela um hino para estes frutos pobres que querem continuar a colar às nossas liberdades em nome do medo.

Hipatia disse...

Olá Deep terrorista :D Bom ano para ti. Beijinho

Hipatia disse...

Esta igreja, deste Papa, limita-se a seguir os sinais dos tempos e fazer a inversão de marcha em direcção à pré-história dos direitos humanos, massacrados em nome de um qualquer fundamentalismo.

Acho que há um exacerbado culto do medo (especialmente de perda de poder) de quem tão prontamente nos aponta como terroristas por não temermos defender outros caminhos.

Não sei se é "ir ao fundo". Sei é que me irrita profundamente, Rouxinol.

Hipatia disse...

Marta, eu nem questiono a sorte que tive com os meus pais. Mas é algo mais complexo. A geração - que é a minha - que teve pela primeira vez acesso livre à educação e ao conhecimento, às vezes parece-me não saber fazer uso do tanto que lhe foi oferecido de bandeja. Engole, por isso, qualquer patranha por verdade, não pondera, não questiona, quer tudo de mascar e deitar fora. E vai, provavelmente, ficar em casa, alapada no sofá no próximo dia 11 de Fevereiro, alheada do Mundo. E o Papa, por mais que me tenha irritado, nem sequer é o meu alvo predilecto para esta minha revolta.

Hipatia disse...

Concordo em absoluto contigo nas apreciações que fazes a esse agarrar ao poleiro do poder e dos privilégios da Igreja Católica e das demais igrejas organizadas a ficarem sem fregueses. E há uma inflexão que me assusta em direcção a um discurso cada vez mais fechado e coactivo, onde a liberdade não conta nem pode contar. E não estamos assim tão longe do Portugalinho em que as mulheres para viajarem tinham de pedir licença escrita ao marido ou ao pai, não é?

Não gosto de ser insultada. Nem pelo Papa de uma igreja que tanto aterrorizou sempre com visões deprimentes do Inferno e com actos concretos; nem por todos os imbecis que metem todos as mulheres num saco geral de pobres de espírito, incapazes de tomarem decisões conscientes e ponderadas e que, entre um sujeito de direito (a mulher) e um amontoado de células que nada é ainda, me questiona sobre um coração que bate e sobre a vida.

Pois o meu coração bate. Bate irritado. Cada vez mais irritado, aliás.

Anónimo disse...

o ano novo acertou-te em cheio.
continuas a acertar em cheio.
continuas cheia de tudo, e tudo cheio de nada, embora haja uns tantos a tentar encher à pressão.
a irritação deve ser demorada,é que o músculo cardíaco só te agradece, os outros filhos da puta é que não.
;)*

Anónimo disse...

É o que eu digo, deixam-nas ir à escola, aprender coisas mais para além de saber conferir os trocos na mercearia, e é o que dá. Daí a nada estão a trabalhar, usar calças, viajar sozinhas, a viver em pecado com homens, a tomar a pílula e a dizer que não querem isto e aquilo porque pensam assim e assado. Umas terroristas. E eles não lhes ficam atrás, os malandros, que os há por aí que até gostam destas mulheres arraçadas de homem, jasus.

Pois é, é.
E ainda há quem viva com saudades disto e queira manter privilégios antigos, uma forma de poder medonha que se entranha pelas consciências e amordaça a voz e estrangula o corpo.

Não digo que sou dona da minha barriga, não vou por essa linha de orientação e argumentação. Mas a verdade é que quem nos chama terroristas quer-nos agrilhoar o corpo para melhor vergar a vontade.

Há lá coisa mais perigosa que uma pessoa (nem digo mulher) de pensamento livre? Capaz de decidir em consciência, sem constrangimentos de culpa e pecado?

Terrorista desse antigo status quo me assumo, que nem sei ser de outra maneira ;)

Hipatia disse...

O ano novo apanhou-me mesmo em cheio, Jaquelina Pandemónio. Desde o absurdo de saber o outro a estrebuchar na ponta do laço, passando pelos discursos inócuos ou imbecis de todos quantos têm um púlpito, até esta irritação profunda de ver que o ano mudou mas a merda ainda cheira ao mesmo.

Hipatia disse...

Tens toda a razão, I. Em cada palavrinha que escreves, até nessa ironia sobre a condição pobre a que tantos ainda querem votar a mulher nos nossos dias. E atrevem-se eles a darem palpites sobre a Burkah... Fazem igual ou pior, só que de maneira mais encoberta, para ser ainda mais nocivo.

É tudo tão assustadoramente reaccionário! Diziam os cyberpunks "bem vindos à barbárie". Mas é pior ainda. Nos tempos realmente bárbaros, não se faziam construções falaciosas com argumentos que se pretendem lógicos, para mascarar interesses tão mesquinhos. A liberdade pode - tem de - ser mesmo profundamente assustadora para quem nunca a soube desejar, implementar, fomentar e, por fim, agradecer.

Anónimo disse...

Mais Vozes

a Igreja (ou as Igrejas) só será verdadeiramente espiritual quando não se reger por dogmas, quando for aberta a tudo e a todos. qual é a probabilidade disso acontecer?!
não interessa qual é o nome do dEUS em que acreditamos, tá podemos não acreditar em nenum (como é o meu caso), ser bom, contribuir para uma sociedade e mundo melhores, é o verdadeiro caminho espiritual!
mas que se pode esperar duma Igreja que condena o preservativo? só se pode esperar mesmo que ao aborto chame acto de terrorismo!
fábula | Homepage | 01.04.07 - 12:43 pm | #

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tá = até
fábula | Homepage | 01.04.07 - 12:44 pm | #

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E à eutanásia; e à pesquisa científica; e à contracepção... Não te sentes profundamente irritada e insultada por quem - lá do púlpito - te junta assim a todos os Bin Laden e George W. Bush do Mundo?
Hipatia | Homepage | 01.04.07 - 11:49 pm | #

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irritada é pouco! grrrrrrr...

(às vezes pergunto-me qual foi o benefício que a existência das religiões trouxe ao mundo, é que só vejo mesmo coisas negativas, mas eu (como ateia) sou suspeita...)
fábula | Homepage | 01.05.07 - 9:57 am | #

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Tentaram organizar a sociedade sub sino, dando-lhe um sentido de pertença, unidade e memória mitológica e histórica. Mas, depois, já não lhes era mais possível salvaguardarem-se sem recorrerem ao medo que foi, aliás, provavelmente o grande motivo porque os grupos humanos se organizaram desde o início.
Hipatia | Homepage | 01.05.07 - 6:38 pm | #