O que Cirilo começou, levou séculos a redimir e, até hoje, não sei se foi completamente redimido.
No século IV, uma mulher podia ser directora da Biblioteca mais grandiosa de que há memória, o seu conselho era procurado pelos maiores intelectuais do seu tempo, a sua palavra respeitada e ouvida, o seu trabalho científico tido como de primeira água e os seus ensinamentos debatidos.
Mas os tempos estavam a mudar. Tinham já descartado o Evangelho de Maria Madalena, o seu papel de apóstola mais querida transformado no de primeira prostituta, todas as mulheres eram a encarnação do mal de uma Eva pecadora que come e dá a comer o fruto da perdição e os homens da Igreja relegavam a palavra e o saber das mulheres para as catacumbas da valia. Nesse mundo misógino, uma mulher do calibre de Hipátia não tinha lugar. No mundo que se construía, o seu papel de farol do conhecimento e de primazia sobre os homens que a ouviam e respeitavam, era um anacronismo.
Com a destruição da Biblioteca de Alexandria e o incêndio que queimou quase todos os livros que aí se reuniam, tirando um pequeno grupo menor que se guardava num anexo secundário, perdeu-se uma fatia de conhecimento inestimável. Até hoje, não se sabe o que se perdeu e o tanto de séculos necessários para outros serem retomados. A perda desse conhecimento andou a par da subalternização do papel feminino, pouco mais do que escravas dai em diante, sem direito a aprenderem a ler e a escrever, impedidas de pensarem.
Do fim da Biblioteca de Alexandria e da morte de Hipátia, nasce o período das Trevas, dos livros fechados em conventos, dos homens analfabetos educados apenas no manejo das armas e da morte, dos factos adaptados ao mito, das ideias adaptadas à verdade única teologal decretada em Concílios, da escuridão da prisão de não poder pensar.
O que Cirilo começou foi um mundo de retrocesso sob o punho de uma religião que se estendia e levava os seus valores e os seus dogmas, bem como os medos de homens menores que não queriam perder o domínio sobre as mentes e sobre o saber para assim melhor controlarem os seus rebanhos. O que Cirilo começou não acabou sequer para as mulheres no século das Luzes e nem aí o pensamento de metade da população do mundo encontrou lugar e direito. Até hoje, por esse mundo fora, há Hipátias silenciadas, escondidas sob véus, fechadas em casas, sem direito a opinião ou pensamento livre, sem poderem dispor de si mesmas e do seu direito a pensarem. O que Cirilo começou fez com que, mesmo no mundo ocidental do feminismo finalmente assumido e sutiãs queimados e quotas pro-igualdade, continue a ser uma batalha diária ver o saber feminino tido em conta sem um olhar condescendente. O que Cirilo começou, faz com que até hoje – e talvez o filme de Amenabar finalmente o corrija – o nome de Hipátia seja desconhecido.
Quando, em 2004, escolhi o nick Hipátia para assinar as minhas opiniões no mundo dos blogues, pensei que seria reconhecido como aquilo que representava: o nome de uma mulher pagã, uma das maiores cientistas de que há memória. Pensei que na blogosfera, um sítio que era então dominado por um punhado de gente relativamente privilegiada, com acesso rápido ao google e com vontade de escrever o que, quase sempre, indica pessoas que gostam de ler e de saber mais e mais coisas, o nome da Hipátia não fosse nem novidade nem sem significado para a maioria. Estava enganada. Enganada ao ponto de descobrir com espanto que nem a pronúncia correcta de Hipátia era sabida, que tinha de explicar que não rimava nem com simpatia nem com mania, que não era óbvio nem quem tinha sido nem o que representava.
Foi isso que Cirilo começou antes de ser canonizado. Foi isso que prevaleceu até hoje: mesmo quando os nomes da antiguidade clássica se tornaram referência e debatidos e estudados pelo mundo que queria voltar ao conhecimento perdido e retomar a Luz após a Idade das Trevas, ainda assim Hipátia ficou esquecida. Será que a esqueceram porque o seu conhecimento era menor do que o dos homens que ensinou ou dos que lhe pediram opinião e conselhos? Ou terá ficado esquecida por ser mulher?
No século IV, uma mulher podia ser directora da Biblioteca mais grandiosa de que há memória, o seu conselho era procurado pelos maiores intelectuais do seu tempo, a sua palavra respeitada e ouvida, o seu trabalho científico tido como de primeira água e os seus ensinamentos debatidos.
Mas os tempos estavam a mudar. Tinham já descartado o Evangelho de Maria Madalena, o seu papel de apóstola mais querida transformado no de primeira prostituta, todas as mulheres eram a encarnação do mal de uma Eva pecadora que come e dá a comer o fruto da perdição e os homens da Igreja relegavam a palavra e o saber das mulheres para as catacumbas da valia. Nesse mundo misógino, uma mulher do calibre de Hipátia não tinha lugar. No mundo que se construía, o seu papel de farol do conhecimento e de primazia sobre os homens que a ouviam e respeitavam, era um anacronismo.
Com a destruição da Biblioteca de Alexandria e o incêndio que queimou quase todos os livros que aí se reuniam, tirando um pequeno grupo menor que se guardava num anexo secundário, perdeu-se uma fatia de conhecimento inestimável. Até hoje, não se sabe o que se perdeu e o tanto de séculos necessários para outros serem retomados. A perda desse conhecimento andou a par da subalternização do papel feminino, pouco mais do que escravas dai em diante, sem direito a aprenderem a ler e a escrever, impedidas de pensarem.
Do fim da Biblioteca de Alexandria e da morte de Hipátia, nasce o período das Trevas, dos livros fechados em conventos, dos homens analfabetos educados apenas no manejo das armas e da morte, dos factos adaptados ao mito, das ideias adaptadas à verdade única teologal decretada em Concílios, da escuridão da prisão de não poder pensar.
O que Cirilo começou foi um mundo de retrocesso sob o punho de uma religião que se estendia e levava os seus valores e os seus dogmas, bem como os medos de homens menores que não queriam perder o domínio sobre as mentes e sobre o saber para assim melhor controlarem os seus rebanhos. O que Cirilo começou não acabou sequer para as mulheres no século das Luzes e nem aí o pensamento de metade da população do mundo encontrou lugar e direito. Até hoje, por esse mundo fora, há Hipátias silenciadas, escondidas sob véus, fechadas em casas, sem direito a opinião ou pensamento livre, sem poderem dispor de si mesmas e do seu direito a pensarem. O que Cirilo começou fez com que, mesmo no mundo ocidental do feminismo finalmente assumido e sutiãs queimados e quotas pro-igualdade, continue a ser uma batalha diária ver o saber feminino tido em conta sem um olhar condescendente. O que Cirilo começou, faz com que até hoje – e talvez o filme de Amenabar finalmente o corrija – o nome de Hipátia seja desconhecido.
Quando, em 2004, escolhi o nick Hipátia para assinar as minhas opiniões no mundo dos blogues, pensei que seria reconhecido como aquilo que representava: o nome de uma mulher pagã, uma das maiores cientistas de que há memória. Pensei que na blogosfera, um sítio que era então dominado por um punhado de gente relativamente privilegiada, com acesso rápido ao google e com vontade de escrever o que, quase sempre, indica pessoas que gostam de ler e de saber mais e mais coisas, o nome da Hipátia não fosse nem novidade nem sem significado para a maioria. Estava enganada. Enganada ao ponto de descobrir com espanto que nem a pronúncia correcta de Hipátia era sabida, que tinha de explicar que não rimava nem com simpatia nem com mania, que não era óbvio nem quem tinha sido nem o que representava.
Foi isso que Cirilo começou antes de ser canonizado. Foi isso que prevaleceu até hoje: mesmo quando os nomes da antiguidade clássica se tornaram referência e debatidos e estudados pelo mundo que queria voltar ao conhecimento perdido e retomar a Luz após a Idade das Trevas, ainda assim Hipátia ficou esquecida. Será que a esqueceram porque o seu conhecimento era menor do que o dos homens que ensinou ou dos que lhe pediram opinião e conselhos? Ou terá ficado esquecida por ser mulher?
6 comentários:
Ninguém pode perder este filme.
E para ti... o melhor ano de todos.
Esse que aí vem, esse 2010 que seja o melhor de todos.
Um grande beijo por seres mulher e uma boa amiga.
Talvez a ânsia desmedida pelo poder absoluto, tenha raízes mais antigas e, Cirilo tenha sido um dos primeiros insígnes que não olharam a meios nem a princípios para o obter.
Mas, impõe-se uma questão, uma dúvida: teria, terá de ser assim, para que o homem mantenha vivo o desejo que o mantem caminhando, rumu ao encontro marcado com o futuro?
Os ensinamentos Cristãos, aqueles que a sua origem está na palavra de Cristo, assentam em vários princípios fundamentais, a verdade, a fraternidade, a universalidade e o ser.
Deveríam ser estes princípios tambem, a nortear a actuação da religião católica, por forma a cumprir integralmente a função para que foi nomeada... congregar e aglutinar a humanidade.
Beijo para ti, Manel. E que tenhas em dobro o que tão simpaticamente me desejas :)
Quando a Biblioteca de Alexandria foi queimada e a Hipatia lapidada, estávamos já longe do séc. I. Ou seja, um punhado de gajos já tinha conseguido deturpar e muito - escolhendo por exemplo quais os evangelhos a reter e todos os que passariam a apócrifos – aquela que pudemos supor ter sido a verdadeira palavra do Cristo da História. Isso fez toda a diferença. O Cristo da História congregou homens e mulheres e não os discriminou em função do sexo. Não eram as 3 Marias parte integrante do seu grupo de seguidores? Não estiveram todas presentes na crucifixação enquanto os apóstolos se mantinham escondidos? E não foram as escrituras sobejamente interpretadas e reinterpretadas ao sabor dos interesses daqueles que queriam manter-se na crista do poder de uma religião cada vez mais triunfante? Como poderia Hipátia ter sobrevivido se defendia de forma clara ideias que estavam dogmaticamente já transformadas em heresia? Que aconteceu a Copérnico e a Galileu séculos mais tarde? Se uma verdade da Igreja é posta em causa, todo edifício treme, já que a Igreja fez os seus alicerces na suposta infalibilidade das suas verdades. Cirilo, já Patriarca, tinha de defender essas verdades, nem que para isso tivesse de decretar como hereges todos os que se lhe opusessem. E, naquele momento histórico, travava-se uma luta entre três religiões pelo controlo das mentes e dos rebanhos. A mais fanática foi a que supostamente pretendia ser a mais integradora, conciliadora e tolerante. Mas isso não é sequer novidade. Hipátia di-lo inclusive no filme: em que é que o novo Deus estava a provar-se melhor e mais tolerante do que os precederam?
Sempre soube que rimava com audácia. Desculpa, mas li o post de esguelha cheio de medo que contasses tudo do filme... afinal quero ver!
Podes ler à vontade. Não disse nada que já não soubesses e o filme foi, como de costume, um mote para falar (também) de outras coisas :)
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