2009-12-10

Dos retalhos

Foi-se tudo
como areia fina escoada pelos dedos.
Mãe! aqui me tens,
metade de mim,
sem saber que metade me pertence.
Aqui me tens,
de gestos saqueados,
onde resta a saudade de ti
e do teu mundo de medos.
Meus braços, vê-os, estão gastos
de pedir luz
e de roubar distâncias.
Meus braços
cruzados
em cruz de calvário dos meus degredos.
Ai que isto de correr pela vida,
dissipando a riqueza que me deste,
de levar em cada beijo
a pureza que pariste e embalaste,
ai, mãe, só um louco ou um Messias
estendendo a face de justo

para os homens cuspirem o fel das veias,
só um louco, ou um poeta ou um Cristo
poderá beijar as rosas que os espinhos sangram
e, embora rasgado, beber o perfume
e continuar cantando.
Mãe! tu nunca previste
as geadas e os bichos
roendo os campos adubados
e o vizinho largando a fúria dos rebanhos
pela flor menina dos meus prados.
E assim, geraste-me despido
como as ervas,
e não olhaste os pegos nem as cobras,
verdes, viscosas, espreitando dos nichos.
De mão nua, entregaste-me ao destino.
Os anjos ficaram lá em cima, cobardes, ansiosos.
E sem elmos ou gibões,
nem lutei nem vivi:
fiquei quieto, absorto, em lágrimas
— e lá ao fundo esperavam-me valados
e chacais rancorosos.

Mãe! aqui me tens,
restos de mim.
Guarda-me contigo agora,
que és tu a minha justiça e o exílio
do perdido e do achado.
Guarda-me contigo agora
e adormece-me as feridas
com as guitarras do fado.

Mas caberá no teu regaço
o fantasma do perdido?


Poema Cansado de Certos Momentos, Fernando Namora




aqui

Serras, veredas, atalhos,
Estradas e fragas de vento,
Onde se encontram retalhos
De vidas em sofrimento

Retalhos fundos nos rostos,
Mãos duras e retalhadas
Pelo suor do desgosto,
Retalha as caras fechadas

O caminho que seguiste,
Entre gente pobre e rude,
Muitas vezes tu abriste
Uma rosa de saúde

[refrão]
Cada história é um retalho
Cortado no coração
De um homem que no trabalho
Reparte a vida e o pão

As vidas que defendeste,
E o pão que repartiste,
São lágrimas que tu bebeste
Dos olhos de um povo triste

E depois de tanto mundo,
Retalhado de verdade,
Também tu chegaste ao fundo
Da doença da cidade

Da que não vem na sebenta,
Daquela que não se ensina,
Da pobreza que afugenta
Os barões da medicina

Tu sabes quanto fizeste,
A miséria não segura,
Nem mesmo quando lhe deste
A receita da ternura


Retalhos da Vida de Um Médico, José Carlos Ary dos Santos


2 comentários:

Bartolomeu disse...

"metade de mim,
sem saber que metade me pertence"
Não sei se os "Gatos Fedorentos" leram Namora, duvido, senão tinham pegado nestas linhas do poema, para fazer o anúncio do «MEO»...
ou então, não... sei lá!

Hipatia disse...

E metiam meio Pai Natal na lareira? O Namora nem sabia se chegava só metade a um regaço e duvido que acreditasse no Pai Natal ;-)