2004-10-31

Lilith

(...)
E no amor que dei
e no Amor que tive
eu fui toda mulher – fui vertical

Eu fui mulher em espanto
fui mulher em espasmo
fui o canto proibido e solitário

Só tenho um itinerário: Amor-Mulher.

Manuela Amaral – Auto de Fé


Não quer a rotina da posse, nem o ciúme violento pelo que não tem tendo.

Nem quer o compromisso que cala em léxico ordeiro o desejo violento e verdadeiro.

Quer o encontro abençoado de corpos que se dão em liberdade, cantando na canção do sexo a música da paixão libertadora.

Será demónio condenado por não se privar de ser mais mulher do que farrapo, mais senhora do que capacho.

É o grito da independência em lugar de confissões mornas ou rosários da intolerância.

Não se põe rédeas nem peias, nem crises de moralidade, que não há pecado na natureza, só nos olhos e nas mentes que tentam domar o natural, recriando-o em artifício.

Filha da terra será. Filha pura e insubmissa, de Pai incógnito e ausente. Deusa pagã, matriarca, sem castas nem atilhos.

Dá-se. Por gozo, por prazer. Com fogo e sanha, voracidade. Prazer que se sacia para se renovar.

Não teme a liberdade de se dar por inteiro. Corpos nus rodopiantes, ao léu perante o fogo e o gelo.

É fogo. É gelo. É degelo em combustão.

Cai faminta ainda, voragem sugada e sugadora.

Em liberdade contra a mentira do pecado e a moral da subjugação.

Lilith será. Seremos...

2004-10-29

Desfolhada

"Corpo de linho
lábios de mosto
meu corpo lindo
meu fogo posto.
Eira de milho
luar de Agosto
quem faz um filho
fá-lo por gosto.
(..)"


José Carlos Ary dos Santos – Desfolhada


Hoje não me saiu da cabeça o dia inteiro. Um verso, pelo menos. O mais polémico: "quem faz um filho fá-lo por gosto".

Tesão puro, ou a admissão do direito ao prazer, ou a revolta à submissão, ou assumir o direito a gostar. Porque é preciso gostar. É bom, não é pecado, não pode ser pecado. E não engorda. E até faz bem à pele.

E às tantas a
Duende pôs-me a falar da Lilith e da revolta da primeira mulher contra o papel subalterno e a vontade de inverter papéis. A mulher que queria ficar por cima e um Adão dominador, castrador, insensível ao prazer de outro que não o seu. A Lilith apagada dos textos sagrados, porque não encaixou nunca na moral judaico-cristã obtusa e patriarcal.

E não há submissão quando se faz por gosto. E não há revoltas quando é por gosto. E não há vergonha, não ali. Não há pecado, nem mácula. Gozo e desejo e prazer. E a História deu muitas voltas e já nem é um grito de revolta querer fazer um filho por gosto.

(Questiono-me apenas sobre quantos gritos não são ainda silenciados nos segredos das alcovas...)

Vêm ai três dias de descanso, com uma hora de bónus. E não me sai da cabeça a "Desfolhada"...

Pois hoje até estou bem disposta e, portanto, bom proveito a todos quantos me vierem cá ler e resolverem pôr a desfolhada em prática, mesmo e até se a natalidade for apenas o pretexto... :)

2004-10-28

Deriva

Fora existe o mundo. Fora, a esplêndida violência

ou os bagos de uva de onde nascem

as raízes minúsculas do sol.


Herberto Helder – Sobre um Poema


Há dias em que me sinto perdida, sem rumo. Em que ao abrir a janela pela manhã e vendo como o céu se veste de nuvens escuras, ao ver como o negrume do dia se tinge de lágrimas de chuva, copiosas, sem descanso, só me apetece voltar para o quente da cama e esquecer-me. Esquecer-me que há dia, que há compromissos, tarefas por cumprir. Esquecer-me da neura que me turva. Esquecer-me das rotinas e do despertador inclemente. Esquecer-me que há responsabilidades e agendas e planos. Esquecer-me de toda a ordem que impus nos meus dias, a forma como cataloguei a vida e as vidas, os roteiros com hora marcada.


Há dias em que me sinto – e estou de facto – à deriva ...

2004-10-26

Aniversário


Ali podia eu maravilhar-me
Meu aniversário lá adiante mas os tempo girava em
derredor

Dylan Thomas – Poema de Outubro


Há nos aniversários um tom festivo e um direito à alegria. Desde e se ainda houver a companhia da família e dos amigos.

Não importa a idade. A companhia faz a festa. A festa é feita pela companhia.


Mesmo em dias chuvosos de Outono, com anúncios de temporal. Mesmo nesses dias, o calor da festa é ainda – e sempre – o calor feito das empatias e das vivências em comum.

Hoje houve festa. Não a minha. Mas festa ainda assim. E gente. Sempre gente a fazer a festa.

Mesmo que o tempo não perdoe e continue a girar em derredor. Mesmo que o tempo conte velas connosco, uma a uma, até ao sopro derradeiro.

Até lá, que haja festa. Que haja alegria. Que haja companhia. Que haja ainda muitas velas no dia de hoje. Velas acesas em festa. Velas feitas segredos e beijos e laçarotes coloridos.

Que o tempo deixe para bem longe o dia das velas de cera triste e os tons magoados do dia de Finados.

Que se contem muitos!

Em alegria; em companhia; em festa...

2004-10-24

Prenúncio

I think my heart must be made of clay,
'cause everyone said it would be broken someday.

Black – Sweetest Smile


Há muito que me sinto perdida num limbo e quase canibal de sentimentos alheios. Sou o ombro amigo, de emoções equilibradas, onde se busca o conselho, ou tão só a disponibilidade para ouvir.

Emoções minhas, dores minhas, paixões minhas... Quase sinto que lhes perdi há muito o rasto. Que, por vezes, só as invento para continuar a fazer frente a um quotidiano banal e cada vez mais banalizável.

E há todos os amigos que nunca consegui amar. Todas as portas que deixei que se fechassem. Todos os sentimentos que só me foi possível viver pela metade. Olho para tantos amigos e sinto-os a prazo na minha vida. Hoje ainda presentes e, com mais uma reviravolta do destino, mais uma recordação agradável perdida nos confins da memória. E há dias em que me pesa e lamento antecipadamente a falta do que ainda tenho.

Vou perdendo partes de mim pelo caminho. Perdendo para o tempo, para a distância. Perdendo para quem sabe sentir mais e melhor do que eu. Ou talvez não saiba, mas pelo menos sabe tolerar o sabor de sentir pela metade, conformista, já pouco esperançoso num futuro em que sentir por inteiro ainda é possível.

Dizem-me que há coisas que não vão mudar nunca. Faço de conta que acredito.

Dizem-me que não há necessidade de mudar nada. Faço de conta que acredito.

Dizem-me que há sempre espaço para todas as coisas. E eu faço de conta que acredito.

Mas a experiência diz-me que afinal vai mudar tudo. Que tem de mudar tudo. Que volta a ser minha a opção de sair ou ficar, enfrentando a mudança ou limitando-me a reagir a ela.

Já aconteceu tanta vez que nem é sequer uma novidade. Fico ainda? Vou já? Será que aguento a dor prolongada de ver mais uma agonia anunciada?

2004-10-22

Sentir


I just wish I was made of wood,

I might not feel pain,
even if I should, even if I should,
if I should.

Black - The Sweetest Smile


Não! Não queria ser feita de madeira e deixar de sentir dor. Ou deixar de sentir prazer. Ou o quente e o frio. Ou o áspero e o suave. Ou uma lágrima. Ou um sorriso...

Sentir é viver a vida em pleno, saboreá-la. Talvez mais do que isso: é degustá-la com o empenho de enólogo intoxicado pelo seu sabor. E este sentir é vital para mim. Não um sentir qualquer. Um sentir entranhado, quase dolorido, claro no alcance das garras com que me prende. Mirro quando me sinto alheada de sentimentos fortes, paixões dominadoras, encantamentos peremptórios.


Por vezes, as rotinas em que nos embrenhámos no dia a dia, distanciam-nos desta capacidade de sentir por inteiro. Como borboletas presas no fascínio da luz, sabemos que chegar demasiado perto, sentir por inteiro, pode ser a chama que nos queima as asas.


Mas sou passional por vontade e convicção. E, ainda que também eu fuja da chama ilusória e tentadora da paixão com que resolvi encarar a vida, por motivos quase covardes no seu alcance, acabo enredada nas teias desta dicotomia. Viver apaixonadamente pode ser muito pouco seguro para qualquer coração que se quer saudável. E a experiência traz-nos os limites do conformismo...

Que me sobra então? Sobra-me escrever. Porque ao escrever mantenho em equilíbrio a paixão e a razão, encontro de novo o meu passo, evito riscos sem me privar de sentir.

Escrever liberta-me. Faz-me bem à alma. Deixa-me livre para todos os sentimentos, os bons e os maus. Deixa-me livre com as minhas memórias, as minhas penas, os meus fantasmas. Mas também com os meus prazeres, os meus desejos, os meus sonhos, os meus anjos. Escrever é o acto onde me retiro para mim, o espaço solitário onde alinhavo pensamentos desordenados. Escrever é a minha fuga contra a rotina, contra o tempo, contra o espaço, contra a covardia tolhedora do quotidiano indiferente. Escrever é a minha estrada perdida, o meu casulo, o ventre onde cresço para novos dias.

Escrevo para mim. Porque preciso. Porque não escrever me deixa encarquilhada em sentimentos a precisarem de libertação. Porque é quase uma necessidade física.

Penso que, quando escrevo, passo a ideia de uma pessoa triste, deprimida, egocêntrica e solitária. Talvez com um coração partido. Talvez abandonada pela sorte. Talvez doente. Talvez simplesmente infeliz. E, no entanto, sou normalmente considerada uma pessoa divertida, de gargalhada fácil, piada certeira.


Mas não sei ser feliz na escrita. Acho que tem a ver com os motivos porque escrevo. Escrevo em busca de alívio, como panaceia. Escrevo para poder continuar a ser uma pessoa contente. Escrevo porque assim exorcizo os meus demónios e assim lhes ponho rédeas.

Suponho que todos temos um lado negro, tristonho, cansado da vida e do mundo. E todos temos uma forma de lidar com ele. Escrever é a forma de domar a negritude que, por vezes, quer tomar conta de mim.

E, de cada vez que espalho numa folha ou num écran em branco todo o escuro que se acumula em mim, escorraço-o para longe.

2004-10-19

Nunca discuta com uma criança

1 - Uma menina estava a conversar com a sua professora. E a professora disse que era fisicamente impossível uma baleia engolir um ser humano porque, apesar de ser um mamífero muito grande, a sua garganta é muito pequena.
A menina afirmou, então, que Jonas foi engolido por uma baleia. Irritada, a professora repetiu que uma baleia não poderia engolir nenhum ser humano; era fisicamente impossível.
A menina, então disse:
- "Quando eu morrer e for para o céu, vou perguntar ao Jonas".
A professora perguntou-lhe:
- "E o que vai acontecer se o Jonas tiver ido ao inferno?"
E a menina respondeu:
- "Então é a senhora que lhe vai perguntar."

2 - Uma professora de creche observava as crianças da sua turma desenhando. Ocasionalmente, passeava pela sala para ver os trabalhos de cada criança. Quando chegou perto de uma menina que trabalhava intensamente, perguntou-lhe o que é que ela desenhava. A menina respondeu:
- "Estou desenhando Deus."
A professora parou e disse:
- "Mas ninguém sabe como é Deus.
Sem piscar e sem levantar os olhos de seu desenho, a menina respondeu:
- "Saberão dentro de um minuto".

3 - Uma honesta menina de sete anos admitiu calmamente a seus pais que Luís Miguel lhe havia dado um beijo depois da aula.
-"E como aconteceu isso?", perguntou a mãe assustada.
- "Não foi fácil", admitiu a pequena senhorita, "mas três meninas me ajudaram a segurá-lo".

4 - Um dia, uma menina estava sentada a observar a mãe a lavar os pratos na cozinha. De repente, percebeu que a mãe tinha vários cabelos brancos que sobressaíam entre a cabeleira escura. Olhou para a mãe e lhe perguntou:
- "Porque tens tantos cabelos brancos, mamã?"
A mãe respondeu:
- "Bom, cada vez que tu fazes algo de mau e me fazes chorar ou ficar triste, um dos meus cabelos fica branco.
A menina digeriu esta revelação por alguns instantes e logo disse:
- "Mãe, porque TODOS os cabelos da minha avó estão brancos?"

5 - Um menino de três anos foi com o pai ver uma ninhada de gatinhos que tinha acabado de nascer. De volta à casa, contou com excitação à mãe que havia gatinhos e gatinhas.
- "Como sabes isso?", perguntou a mãe.
- "O papá levantou-os e olhou por baixo", respondeu o menino. "Acho que era ali que estava a etiqueta".

6 - Todas as crianças tinham ficado na fotografia da turma e a professora estava a tentar persuadi-los a comprar uma cópia da foto do grupo.
- "Imaginem que bonito será quando vocês forem grandes e todos disserem "Ali está Catarina, é advogada", ou então "Este é o Miguel. Agora é médico".
Eis que se ouve uma vozinha vinda do fundo da sala:
- "E ali está a professora. Já morreu."



Sim, sinto saudades da infância e de um tempo em que me era possível acreditar em verdades absolutas; um tempo em que as convicções não se envergonhavam; um tempo em que certo e errado não tinham tons intermédios.

"Isto" que deixo acima chegou-me por mail e, por cada sorriso que abri, este dia triste, escuro e chuvoso, ficou menos pesado.

Há uma inocência plácida e imberbe que me foge; há uma vontade enorme de não a perder completamente...

2004-10-18

Chuva

(...)Mes yeux et la fatigue doivent avoir la couleur de mes mains. Quelle grimace au soleil, mère Confiance, pour n'obtenir que la pluie.(...)

Paul Éluard - Les fleurs


Tenho neste tempo de transição entre um Inverno que se aproxima e um Verão que não vai embora uma tendência recorrente para a melancolia.

Enquanto os dias se tornam mais breves, a minha alegria estival esvai-se à velocidade dos pingos gelados das primeiras chuvas.

A minha cidade fica triste também, cada vez mais cinzenta nos seus cinzentos, as neblinas transformam-se em nevoeiro, o cheiro das castanhas envolve-nos e os guarda-chuvas tropeçam-se.

Vejo o rio e está cinzento também, pesado, triste, cheio de águas novas e lamacentas e corre furioso a atirar-se nos braços do mar revolto, espumoso e atrevido.

Não há muitos sorrisos por entre os ruídos das gentes que passam. Só pressa em chegar a qualquer destino, afã de fuga para os interiores aquecidos de uma cidade que gela lentamente, vestindo-se das humidades e dos frios outonais.

Sinto-me a encolher com os dias, a encolher para o quente aconchego de uma manta sempre a postos, um casaco de lã tão velho que já não lhe sei os anos, as pantufas quentinhas que trouxe da Estrela.

Encolho-me no sofá, a TV pronta a suspirar sozinha num último ai com hora pré-programada. Encolho-me no sofá como encolhem os dias. Enovelo-me no calor da minha casa e durmo as sestas do frio.

Cheira já a Inverno. Os dias encolhem. Eu encolho com os dias e acerto o passo com esta melancolia que me percorre.

2004-10-17

Beijo

¡Mi corazón
amo de naufragios
no sabe cómo sobrevivir a la esperanza!

María Clara González - Corceles de Fuego


Dá-me um beijo!

Dá-me um beijo só. Um que faça a fronteira entre o hoje e o ontem. Um que me aqueça e me esqueça.

Dá-me um beijo pequenino. Não preciso de grandes doses de beijos. Só um especial. O tal que faça a fronteira entre o que sou e o que fui.

Dá-me um beijo. Faz dele o meu degelo. Quero um beijo pequenino que me aqueça.

Dá-me o futuro num beijo...

2004-10-15

Slides

I'm running out of time
I'm out of step and closing down
and never sleep for wanting hours
the empty hours of greed
and uselessly always the need
to feel again the real belief
of something more than mockery
if only I could fill my heart with love.


The Cure - Closedown


Fecho os olhos e sinto os pedaços da memória a agruparem-se em fila. Sinto-os em pontas, à espera da vez, para me povoarem novamente das suas energias.

Como slides, deslizam, fazem-se presentes.

Lembro uma cara, um sorriso, um fantasma que ainda me habita. Lembro o tempo e o cheiro e até o sabor roubado de uma boca.

Lembro uma sala, um jardim, um copo que vejo umas vezes meio cheio, outras só meio vazio. Sinto ainda um toque gotejante e o som de um riso ténue e respondo com a gargalhada de outrora.

Fecho os olhos e vejo pedaços de mim mofados, encanecidos, suspiros que já não há, ais que já perdi.

Fecho os olhos e vejo conchas de segredos e ainda sinto a velha maresia que me prende, hoje como antes, às ondas das recordações adormecidas.

Fecho os olhos para me abrir à memória desbotada. Pinto novamente cada slide que desliza e se agrupa e me faz sentir invernos que foram estios e primaveras que nunca despertaram.

Fecho os olhos e vejo cada slide da memória que se esfuma e não lhes encontro já nem as dores nem as alegrias. Só recordações de tempos trágicos e de alegrias breves, ou breves tragédias que se vestiram de alegria.

Slides que me invadem quando fecho os olhos. Memórias que me violam a consciência e me ferem sem no entanto causarem uma dor real.

Slides que deslizam, dando a vez ao que se perfila. Slides com corpos, ou só cabeças, ou só mãos, ou só sorrisos. Slides que apenas trazem cheiros. Outros que trazem sons e músicas. Outros que me afloram ainda a pele com o mesmo toque que um dia foi sorriso, cabeça, corpo, cheiro, mãos e música.

Fecho os olhos e o tempo escoa-se mas não se esquece. Fecho os olhos e vejo tudo, o que tem volta, o que já não. Fecho os olhos e vejo-me a mim, perdida ainda nos confins da minha memória. E não descanso.

Vivo perdida no meio de fantasmas e não descanso quando fecho os olhos...

2004-10-13

Secura

El lirio azul el lirio fucsia el lirio
de color colorado el lirio triste
con pétalos de cera se reviste
y va a la fiesta convertido en cirio

En cirio gris en cirio negro en cirio
de las aguas sin luz en cirio triste
que al llegar de la fiesta se desviste
y vuelve a ser en el jardín un lirio

O este espejo se está poniendo viejo
o lo que estoy mirando es un delirio
dice la flor hablándole al espejo

Adentro del azogue brota un cirio
y al tiempo que se enciende su reflejo
al fondo del jardín se apaga un lirio


Oscar Hahn – De Cirios y de Lirios


Às vezes penso que sequei algures no tempo. Não a secura completa da indiferença pura, mas ainda assim, uma parte de mim secou.

Secou talvez a parte mais pura, fruto de ilusões, aquela feita das pequenas coisas. E ficou só a secura da miragem que se dissipa.

Alguns chamarão a este seco que trago em mim, crescer. Outros amadurecer. Outros ainda chamarão um chorrilho de palavrões de análises descontínuas a almas cada vez mais descrentes, indiferentes, embrutecidas.

Eu digo que sequei. Sequei tanto que até as lágrimas são cada vez mais difíceis. Tanto que até sinto que, em alguns dias, até à dor me habituei. Dores várias, do corpo, dos olhos, da mente. Dores do físico, dores do espírito. E a alma que seca e mirra um pouco mais.

Sequei. Seco um bocadinho mais todos os dias. E nem sei como parar esta fuga de mim.

(Lá longe, a infância parece-me cada vez mais o paraíso perdido. O tempo certo das magias e das ilusões. O jardim em flor onde os risos eram fontes e as lágrimas encharcavam o solo fértil feito esperança, num quotidiano com as magias de uma primavera sempre viva.)

2004-10-12

Institucionalizados


Bolo Posted by Hello

Ele faz o noivo correto
Ela faz que quase desmaia
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a casa caia
Até que a casa caia

Ele é o empregado discreto
Ela engoma o seu colarinho
Vão viver sob o mesmo teto
Até explodir o ninho
Até explodir o ninho

Ele faz o macho irrequieto
Ela faz crianças de monte
Vão viver sob o mesmo teto
Até secar a fonte
Até secar a fonte

Ele é o funcionário completo
Ela aprende a fazer suspiros
Vão viver sob o mesmo teto
Até trocarem tiros
Até trocarem tiros

Ele tem um caso secreto
Ela diz que não sai dos trilhos
Vão viver sob o mesmo teto
Até casarem os filhos
Até casarem os filhos

Ele fala de cianureto
Ela sonha com formicida
Vão viver sob o mesmo teto
Até que alguém decida
Até que alguém decida

Ele tem um velho projeto
Ela tem um monte de estrias
Vão viver sob o mesmo teto
Até o fim dos dias
Até o fim dos dias

Ele às vezes cede um afeto
Ela só se despe no escuro
Vão viver sob o mesmo teto
Até um breve futuro
Até um breve futuro

Ela esquenta a papa do neto
Ele quase que fez fortuna
Vão viver sob o mesmo teto
Até que a morte os una
Até que a morte os una

Chico Buarque - O Casamento dos Pequeno Burgueses, in Ópera do Malandro


Será que ainda dá para nos espantarmos por ser uma instituição em crise? E daí... ainda me espanta mais quem repete a dose. :)

2004-10-11

Racismo

Encontrei uma preta
que estava a chorar
pedi-lhe uma lágrima
para a analisar.

Recolhi a lágrima
com todo o cuidado
num tubo de ensaio
bem esterilizado.

Olhei-a de um lado,
do outro e de frente:
tinha um ar de gota
muito transparente.

Mandei vir os ácidos,
as bases e os sais,
as drogas usadas
em casos que tais.

Ensaiei a frio,
experimentei ao lume,
de todas as vezes
deu-me o que é costume:

nem sinais de negro,
nem vestígios de ódio.
Água (quase tudo)
e cloreto de sódio.

António Gedeão - Lágrima de Preta



Vamos lá fazer um teste e tentar descobrir se somos ou não racistas. Só é preciso responder rápido. A solução está nos comentários ali ao lado.

Pergunta:

Num galinheiro existem 30 galinhas. Um preto levou 10 galinhas. Quantas galinhas ficaram no galinheiro?

2004-10-10

Projectos


Projectos à Portuguesa Posted by Hello



E, depois de não sei quantos milhões de euros gastos, ainda falta saber se a respectiva Câmara Municipal deu o O.K. ou ainda vai ser necessário abrir a bolsa para uns últimos ajustes...

2004-10-09

Kick it

Ai se ele cai
Vai se partir

Xutos & Pontapés


Ando a rir-me. Ando a rir-me à custa das asneiras infantis que estes politiqueiros de trazer por casa, que até acham que já chegaram à maioridade política, vão cometendo a torto e a direito. À custa de censuras mal feitas ainda vamos ver este Governo não democraticamente eleito ser obrigado a ir a eleições. Depois digam que a culpa é do grande capital. Deve ser o mesmo grande capital que vai às putas com a política...

2004-10-07

Sim, senhor ministro


Sim, senhor ministro Posted by Hello



Confesso! Ando siderada pelo espectáculo mediático que se tem gerado em torno da Quinta das Celebridades, em geral, e do José Castelo Branco, em particular. Nas revistas, nas ruas, nos mercados, a Quinta e os seu freaks superam em passo largo os freaks da política made in Portugal.

Talvez porque nos devolve algum direito à democracia. Afinal, prometem-nos que o nosso voto conta. E, depois, não andam por lá com ar empertigado e a censura que existe não viola a constituição. E enquanto nos rimos destes freaks célebres, não temos que temer pelo destino das economias, das mentalidades, da democracia...

Dos outros freaks, os do poleiro, cada um a tentar ser mais galo do que o outro, é que começo a ter um medo verdadeiro. Até pela saúde dos meus tímpanos, sempre que o homem que não diz os R se lembra de abrir a boca...

2004-10-06

Nada de novo...

Na frente ocidental nada de novo.
O povo
Continua a resistir.
Sem ninguém que lhe valha,
Geme e trabalha
Até cair.


Miguel Torga – Comunicado


O povo trabalha, pois então. Que mais há de fazer o povo? O povo que vê as anedotas das reformas dos outros, que vê as cunhas em debandada, sem rédeas. O povo que paga os aumentos de gasolina ou suporta os aumentos do pão. O povo que resiste, resiste e vai levando, continuando a tentar não cair. Vai gemendo. Geme cada vez mais este povo. Um povo a que impõem os fardos, mas não se lembram de dar migalha, só sermão.

Vai gemendo, povo, enquanto trabalhas. Sol a sol, que ainda há disso. Mais as horas que passas no trânsito, povo, a remoer o que não tens. Tu povo, o que sustentas o país. E se não tens como te sustentar, povo, cada vez mais pobre e sem quinhão da fartura das elites, como sustentarás todos os outros, os comedores, os arrivistas?

Resiste, povo. Mais não te sobra. Geme e resiste.

Nada de novo na frente ocidental, povo. Já conheces bem esta cantiga, povo. Trabalha e geme e resiste.

Lá nos ministérios, nomeiam em média mais treze comedores por dia. É o teu número do azar, povo, pois se lhes ocupam o tempo a assinar nomeações, onde arranjarão depois tempo para ti?

2004-10-05

Coisas de Gajas...


Stephen Dorff Posted by Hello


Já houve quem por várias vezes me acusasse de ser assim um bocadinho "toca-e-foge", um bocadinho coquette também. E suponho que o sou. Aliás, suponho que todas as mulheres o sabem ser. Terá, sem dúvida, a ver com a forma como por vezes olho para os outros, ou o que ainda é mais provável, com a forma como gosto de brincar, num jogo que abusa dos segundos sentidos.

Mas não me julgo especialmente adepta das "conversas de gajas"; aliás, é uma arte onde dificilmente me sinto especialista. Sempre preferi uma boa conversa com temas "ligeiramente" mais profundos e nunca tive grande jeito para debater os últimos cremes e as suas maravilhas, até porque nem gosto de cremes, muito menos os sapatos pink que estão na moda e que são ultra chic, porque sapatos pink e eu são coisas que não combinam.

E, no entanto, no passado fim-de-semana, fui por várias vezes acusada de estar a fomentar "conversas de gajas". Ora bolas! Conversas de gajas? Só porque se falava de qualquer coisa que não era nem bola nem música? Só porque uma mulher tem olhos na cara e acha que o melhor do novo teledisco da Britney Spears é o Stephen Dorff?

Gajos! Vá-se lá entendê-los....

2004-10-04

O Rei dos Sentados

Is everybody in?
Is everybody in?
Is everybody in?
The ceremony is about to begin.


WAKE UP!


The Doors – Ghost Song


Dois dias em cima dos meus pés e a sensação de que já tenho uma década a mais em cima dos ossos; ou então a simples constatação de que talvez viva espectáculos sentados de pé e espectáculos em pé com a vontade de estar sentada; ou ainda o reconhecimento pelo cheiro a mofo de toda uma certa "intelectualidade" renitente, sem idade, sempre igual a ela própria, com palas nos olhos e nos ouvidos; ou talvez a simples constatação de por que nunca quis para mim qualquer rótulo, tendo sempre preferido mover-me nas franjas de todas as catalogações...

Gosto de coisas estranhas. Gosto. Mas também gosto de coisas simples. Não tenho por hábito pôr etiquetas nos meus gostos, não rotulo o que vejo, o que ouço. Recuso-me a ver um festival sentado com a pré-concepção de que não me seria permitido levantar e dançar e cantarolar e bater o pé ao som do ritmo certo. Recuso-me a seguir o rebanho do cachimbo e das barbas e das saias com ar disco-sound e das sabrinas com collants por baixo num Outono ainda tão estio, ou do livrinho de apontamentos onde se vão pedir autógrafos de coisas que se foram ver e nem sei bem se gostam mesmo, ou se só lá foram porque faz parte da onda do rebanho naquele dado momento.

Gosto de ser surpreendida pelo que vejo, pelo que ouço. Na Sexta, enquanto uma menina-mulher, com uma vozinha ridícula, me levava às alturas com o vozeirão com que cantava depois, nada me preparava para o que vi depois. E quase me sentia envergonhada pelas palas dos outros, pela falta de abertura a outros caminhos, caminhos em pé para os quais não encontraram caminho, porque só estava no programa em letras bem pequeninas e nem esteve, por certo, presente nos comentários de qualquer tertúlia intelectualoide. Mas era Sexta e pensei que o cansaço da semana ainda pudesse ser desculpa...

No Sábado, gente sentada ficou em pé, cativada pela magia de uma bateria e 4 guitarras e um homem em cima do palco com uma figura que ia desde um Cristo em jeans até a um Jim Morrison sem calças de couro, passando pelo Marley... e "a woman do cry" quando vê algo surpreendente.

Diziam-me então que depois, daqui a uns tempos, posso sempre dizer que os vi no início da carreira. E eu dizia que nunca mais vou gostar tanto. Que nunca mais vou ser assim surpreendida. Que aquelas guitarras, em camadas de som, que aqueles pés descalços e as influências de tanta parte para onde me transportavam a um tempo, me fizeram sonhar com uma mítica Louisiana, ou as Caraíbas, ou até uma certa Andaluzia nuns acordes perdidos e o muito rock depurado de uma costa oeste aberta a todas as influências, ou uma American Prayer revisitada.

Sem rótulos. Não merecem os meus rótulos. Não merecem que os encerre numa qualquer etiqueta e, depois, ponha uma saia disco-sound e umas sabrinas e vá à caça deles, à caça do autógrafo, à caça de outra coisa do que esta maravilhosa surpresa que ninguém me tira. E, sim, vi-os em pé, quase em pé, o em pé que me era permitido por estes dez anos a mais que não quero perder e me pesam ainda assim.

E vi os outros, muitos outros, com menos uma década de experiência ou sabedoria ou o que for, em debandada de novo, rebanho organizado na hora da saída, porque não estava no programa sentado estar em pé. Como vi os resistentes, aqueles que nem em pé era suposto estarem. E em pé fico eu para a homenagem possível a uma figura desconhecida, que revi nas duas noites. Um homem baixinho, com mais dez anos ainda, talvez, ou então foi a vida que lhe pôs mais anos na cara. Não podia dançar; estar em pé devia ser desconfortável. Ser obrigado a caminhar com uma muleta não qualifica ninguém para festival de gente em pé. Mas ele esteve. Os dois dias. Depois do fim daquilo que o Miguel chamou "feira dos sentados". E fez-me pensar que os da feira, o rebanho, os andarilhos sem vontade de explorar o que não está programado, deviam, como eu, ficar em pé para o rei do sentados. O rei que, não podendo, ficou em pé.

2004-10-01

Abro janelas

(...)
Agora que o vento arrasta
As cartas e os vícios delas
Ficaram-me as mãos libertas
É manhã abro janelas


José Saramago – Nem sempre a mesma rima


Confesso: tenho um amor antigo de volta e vai ser difícil desdobrar-me em tantas letras.

Mas há demasiadas histórias, demasiados amigos, demasiado reconhecimento, demasiado História, num percurso que, podendo ser já velho, sempre me surge como renovado.

Tratarei para que haja tempo para tudo e intensidade suficiente para percursos complementares. Que não sei esquecer espaços, que gosto de construir memórias novas, mas também gosto de renovar memórias antigas e prazerosas.

Na combinação possível entre amores velhos e novos, tentarei encontrar em mim este amor maior pela escrita e pelo que dela sempre consegui tirar.

Abro janelas...