No céu cinzento sob o astro mudo
Batendo as asas pela noite calada
Vêm em bandos com pés veludo
Chupar o sangue fresco da manada
Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhes franqueia as portas à chegada
Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
A toda a parte chegam os vampiros
Poisam nos prédios poisam nas calçadas
Trazem no ventre despojos antigos
Mas nada os prende às vidas acabadas
São os mordomos do universo todo
Senhores à força mandadores sem lei
Enchem as tulhas bebem vinho novo
Dançam a ronda no pinhal do rei
Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
No chão do medo tombam os vencidos
Ouvem-se os gritos na noite abafada
Jazem nos fossos vítimas dum credo
E não se esgota o sangue da manada
Se alguém se engana com seu ar sisudo
E lhe franqueia as portas à chegada
Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
Eles comem tudo eles comem tudo
Eles comem tudo e não deixam nada
Zeca Afonso - Vampiros
Para a Mar:
"Maçonaria vai entregar lista de informadores da PIDE à Torre do Tombo"
Fico a fazer equilibrismo entre duas vontades. Por um lado, o temor dos bufos ainda estarem entre nós, disfarçados, a contabilizarem segredos depois trocados por misérias e dor; por outro, a ideia de que não pode haver futuro se não formos capazes de fechar as feridas do passado.
A maçonaria guardou até este Abril o segredo de uma lista com 3600 nomes. Três mil e seiscentos bufos que se acolitaram por este País fora, sangraram vidas, mataram destinos nas celas da PIDE/DGS.
Mas tanto pode ser o pequeno pulha que contou um mero conto a troco da velha cunha, como pode ser alguém ainda alcantilado em lugares de destaque de um regime que, melhor ou pior, fez a sua transição para a democracia sem dinamitar verdadeiramente as raízes do Estado velho.
A lista vai ficar em segredo. Precisa ficar em segredo? Talvez precise. Revelar hoje o que não foi dito em 1974 e nos anos seguintes, talvez só levante entre as massas a velha vontade inquisitorial que permitiu, se formos a ver bem, que os bufos se transformassem numa força oculta dos vampiros do poder, perpetuando as chagas de um regime baseado na lei do bufo, na lei do medo.
Não sei até que ponto a democracia conseguiu apear os vampiros. A lei da cunha e do segredinho continua por aí. Trocam-se favores numa lógica velha, tão velha como este nosso Portugal. Fazem-se e desfazem-se carreiras com base no boato. Fez-se a última campanha política bufando segredos de alcova. Dar 3600 nomes a bufos do regime deposto não serviria apenas para causar mal estar? E os bufos de agora? Alguém os contabiliza? E quando se fecham de vez as feridas ainda mal suturadas do País que fomos, tão parecido ainda hoje com o País que somos?
Os vampiros ainda aí estão. Os bufos sempre foram as suas armas, as melhores armas, porque toupeiras silenciosas, mesquinhas, fazendo da convivência e da proximidade a porta para os segredos a revelar. Os bufos de agora terão, talvez, ares de doutor, em vez de serem o padeiro do cimo da rua. Mas as lógicas que permitem que os vampiros continuem a engordar, abafam as histórias até um qualquer interesse as levar a público. Décadas depois de se conhecerem os factos, porque foram agora – e só agora – bufados os escândalos da Casa Pia? E este é só um exemplo. Mais haveria, nesta terra de vampiros e bufos. Haver uma lista de bufos velhos aberta a toda a coscuvilhice, resolverá verdadeiramente as lógicas subversivas que continuam a perpetuar as suas existências?