aqui
Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega
para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinas
em esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.
Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas:
quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava.
Acreditava,
porque ao teu lado
todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos,
era no tempo em que o teu corpo era um aquário,
era no tempo em que os meus olhos
eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos.
É pouco mas é verdade,
uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.
Quando agora digo: meu amor,
já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certezade que todas as coisas estremeciam
só de murmurar o teu nome
no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.
Dentro de ti
não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.
Eugénio de Andrade - Adeus
...e um "até amanhã, camaradas" por Álvaro Cunhal e Vasco Gonçalves.
1 comentário:
Mais Vozes
Basta existir..para se ser lembrado quanto mais não seja.. pelos seus..
a vida essa .. (A)deus pertence.
carlos barros | | Email | Homepage | 06.13.05 - 6:08 pm | #
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Estamos todos unidos pelo menos pela dor, a reflexão que deixo é que não vislumbro (talvez seja culpa minha) pessoas com a verticalidade e dedicação à causa, nem tão pouco ideologia que nos próximos tempos possa ser comparada com os mesmos principios de igualdade e fraternidade.
Um beijo ... e continuo a achar que podes ir ainda mais longe.
Luis_Duverge | | Email | 06.13.05 - 6:16 pm | #
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Penso que estes três homens conquistaram - cada um à sua maneira - o direito de serem recordados por mais do que apenas "os seus", Carlos
Hipatia | | Email | Homepage | 06.13.05 - 6:19 pm | #
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Bem sei que preferias ver-me aqui a escrever sobre outros temas, Luís. E às vezes, faço-o. Mas a Voz ainda assim serve bem mais para desabafos umbilicais e para me deixar de bem com o mundo. Vir falar de política, de políticos, de economia, de desgraças, acabaria por deixar-me deprimida, irritada, irascível. É sobretudo por isso que evito fazê-lo.
E não, também não sei se ainda haverá nesta nossa geração quem fique na História pelo poder das convicções, pela intransigência em as deixar partir a troco de quase nada.
Hipatia | | Email | Homepage | 06.13.05 - 6:26 pm | #
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pois.. hoje foi forte. embora a idade fosse já avançada, temos sempre a ideia de que estas personalidades são imortais. está tudo a desaparecer.
E o Eugénio... depois da Sophia de Mello Breyner. Bolas!
beijinhos*
mysticat | | 06.13.05 - 6:48 pm | #
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Está "tudo" a desaparecer de um Portugal que já não há; alguns foram leme, outros foram rota, outros deram-lhe voz. E, no meio das convulsões, sobra um País cada vez mais sem leme, muito menos rota e quase sem voz.
Esperemos que "tudo" não passe que de sinal evidente da renovação necessária rumo ao futuro.
Beijinhos
Hipatia | | Email | Homepage | 06.13.05 - 8:53 pm | #
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Curiosa escolha para quem não gosta da palavra adeus...
Este é um dos poemas de que eu mais gosto. É lindíssimo!
E sim. Vamos sentir muito a falta do Eugénio. Quase que só nos resta o Cesariny e o Cruzeiro Seixas...
Beijo!
corpo visivel | | Email | Homepage | 06.14.05 - 12:13 am | #
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É verdade, Corpo Visível. E, no entanto, escolhi a palavra "adeus" para título e o poema de propósito. Como se o acaso, ao juntar assim 3 mortes, quisesse dizer-nos qualquer coisa. Ou porque, a acreditar em Deus, foram em poucos dias 3 almas entregues. E não há volta, excepto pelo que fizeram em vida, que será necessário não esquecer
Hipatia | | Email | Homepage | 06.14.05 - 12:18 am | #
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Adeus a três grandes homens, três grandes figuras, três grandes contributos (cada um à sua maneira) para o que somos hoje. Que se eternizem.
Noite | | Homepage | 06.14.05 - 3:04 am | #
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Cada um à sua maneira, sim, Noite. E mesmo que não se concorde com a obra, que se admire a coragem de quem nunca temeu deixar obra.
Hipatia | | Email | Homepage | 06.14.05 - 6:03 pm | #
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Se não gostava deles vivos, não é de certeza depois de mortos que vou passar a gostar
vanus | | Homepage | 06.14.05 - 6:31 pm | #
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Eu sei
Mas, mesmo não gostando, há que lhes reconhecer um lugar na história do séc. XX português.
(e eu gosto do Eugénio de Andrade, das suas palavras, da forma como, mais do que uma vez, o ouvi declamar poesia...)
Hipatia | | Email | Homepage | 06.14.05 - 6:40 pm | #
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Isenção é isso mesmo
Eu gostava dos três, admirava-os e reconheço-lhes o valor.
Mar | | Email | Homepage | 06.14.05 - 8:50 pm | #
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Sim, eu reconheço-lhes um lugar na história Hipatia, mas não significa que seja bom. Pertencer à história ou às histórias não é sempre sinal de boas prestações, como para mim é o caso destes três.
E não, não mudo a minha opinião só porque as pessoas morreram, e lhes faço elogios só porque já estão mortos. Não gosto de nenhum, e pessoalmente não me fazem falta, mas isso sou eu, naturalmente
(e o homem a declamar era péssimo...lol)
vanus | | Homepage | 06.14.05 - 11:39 pm | #
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