2005-08-10

(anti)natura

O toi, le plus savant et le plus beau des Anges,
Dieu trahi par le sort et prive de louanges,

O Satan, prends pitie de ma longue misere!

Charles Baudelaire


Ontem, a fazer zapping pela TV, já semi-inconsciente - ando ultimamente com um sono que nem me seguro -, fui parar a um daqueles programas ditos científicos. Uma coisa cheia de imagens de laboratório, doenças raras, síndromas mais raros ainda e células, muitas células, estaminais e das outras. Até por lá apareceu a falecida ovelha Dolly, morta muito antes do suposto e sem que ninguém ainda tenha a certeza se o facto de ser um clone ajudou a empurrá-la para o céu das ovelhinhas.

O certo é que me parece necessário estabelecer em boas bases o limite "de vida" até onde se pode mexer.

Se é verdade que as células do nariz podem curar uma espinal medula seccionada, venham daí mais estudos. Se for possível implantar células estaminais para regenerar um fígado de um desgraçado que tem um tipo de sangue tão raro que não há lista de dadores que lhe valha, venham daí as células. Mas é preciso saber parar!

E o Homem alguma vez soube parar?

Na verdade, o Homem sempre sonhou ser um Homem Novo, um Homem Melhorado, o espécimen perfeito. No entretanto, reclamou a soberania do planeta sobre todas as outras espécies. Impôs a sua presença como a mais daninha das pragas, reproduz-se loucamente, exaure recursos e impõe domínio.

Uma das questões que se colocavam no programa - com direito a entrevistas e estatísticas de amostragem por países - era se a Natureza (assim mesmo, com maiúscula, para poder englobar tudo) não acabaria por, de alguma forma, se vingar desta nossa geração travestida de criatura e criador. Não há resposta para isso, certo? Só uma catrafilada de perguntas novas...

E uma das propostas no programa era a proibição total, a nível mundial, das experiências de clonagem com seres humanos. Só que eu não conheço uma única lei mundial e, muito menos, reconheço a qualquer organismo a capacidade para a implementar.

Estamos, portanto, em presença de um Homem que apeou as divindades e, agora, quer ser criatura e criador, quer clonar vida, ousa pensar fazer selecção de fetos e de espécimens a caminho do Homem melhorado, ou da imortalidade possível, isto se pelo caminho a inteligência não o levar à total auto-destruição.

Um dos cientistas desculpava-se com a hipótese do mundo acabar mais depressa numa explosão einsteiniana do que num suspiro mengueliano. E a comparação deixou-se petrificada. Porque Einstein rabiscou muita coisa em caderninhos e quadros negros, mas Mengele fez trabalho de campo, um horripilante trabalho de campo.

Mas, pelos vistos, não importa medir sequer as barbaridades que são ditas, desde que não se perca o quinhão da busca da imortalidade.

A Natureza logo há-de ver o que nos faz....

1 comentário:

Hipatia disse...

On : 8/10/2005 3:18:23 PM Jacky (www) said:

Bem, se houvesse ética no mundo científico, ficaria menos preocupada mas...


On : 8/10/2005 3:48:09 PM Hipatia (www) said:

Pois

(Estava para aqui a preparar um post levezinho. Não pensei que alguém se desse ao trabalho de ler este testamento. És uma resistente, Jacky )


On : 8/10/2005 4:26:31 PM Zu (www) said:

Duas resistentes: eu também li. E concordo inteiramente. Não gosto do homem a brincar aos deuses.


On : 8/10/2005 4:34:34 PM riquita (www) said:

hipatia às vezes aquilo que a imprensa distribui a propósito da clonagem transmite a ideia de que se está a criar monstros o que não é bem verdade.
a finalidade desses estudos vai mais no sentido de se conseguir reproduzir celulas que substituam outras, que no organismo não consigam desempenhar a sua função.
é o classico caso das celulas que produzem a insulina.
ainda estamos muitissimo longe da clonagem humana, acho eu.
se alguma vez estivermos em condições de a fazer, se calhar já nem há planeta.
um beijo


On : 8/10/2005 4:42:11 PM Hipatia (www) said:

Também não gosto, Zu. Daí o título do post. Mas nós já apeamos os deuses, não é? Que mais falta fazer?


On : 8/10/2005 4:45:55 PM Hipatia (www) said:

Com o que dizes concordo, Riquita. Daí que tenha falado no caso dos estudos para regenerarem danos graves em órgãos como o fígado ou na espinal medula. Como podia ter falado nos casos em que se tenta, pura e simplesmente, erradicar deficiências genéticas terríveis. Não estou contra, percebes? Só não tenho é qualquer fé na capacidade do Homem para parar em algum ponto. Porque tem de haver, necessariamente, uma qualquer barreira que não nos compete transpor.