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É preciso dizer que naquela altura vivia-se muito pela imaginação. Ainda quase não se via televisão, os livros eram mais reais do que o real quotidiano.
Manuel Alegre – Rafael
Lembro-me de um café perto da Escola Secundária. Era um café banal, escuro, como muitos outros cafés que se espalham pelas esquinas do Porto. Tinha até uma tabacaria, na porta ao lado, daquelas que ficam num pequeno cubículo, quase um corredor, onde só cabe uma pessoa. Foi nessa tabacaria que comprei os primeiros cigarros, avulso claro, que o dinheiro era contado até ao último centavo. E a passagem na tabacaria era paragem obrigatória antes de entrar no café.
É que esse café tinha – suponho que ainda tenha – um recuado. A parte de frente do café era uma montra, com grandes vidros para a rua, mesas pequenas, normalmente ocupadas por senhores de chapéu entretidos a lerem o jornal. Mas, lá atrás, escondidas por uns lambris de madeira falsa, ficavam as mesas onde se podia fumar sem que os professores nos vissem. E sonhar o mundo de amanhã, que ia ser nosso.
Nesse espaço reservado, onde cabiam pouco mais de quatro mesas, estão as memórias de muitas das minhas primeiras iniciações. Lembro-me de quando me emprestaram um livro já gasto com os poemas do Jim Morrison; lembro-me dos primeiros finos, da primeira Amêndoa Amarga. Lembro-me dos sorrisos e dos primeiros namoricos. Lembro-me da troca de vinis e da forma como gravávamos cassetes roufenhas como se fossem preciosidades. Lembro-me dos olhos do Rui, azuis fosfato, grandes, inquiridores. Lembro-me da bonomia do empregado, do sorriso com que me trazia o meu cimbalino e copo de água. Lembro-me de conversas intermináveis, em jeito de discussão, sobre prioridades, sonhos, projectos para fazer um mundo melhor. Lembro-me de combinar as primeiras idas à discoteca - de tarde porque era grátis para as mulheres e não havia necessidade de dar explicações em casa. Lembro-me dos rostos todos, de cada nome, de cada sonho e cada promessa de vida como se tivesse estado lá ontem.
Mas não estive.
Desse grupo de amigos – que pensei que iria preservar para todo o sempre – perdi o contacto com quase todos. A alguns, que recordo tão bem nos seus rostos adolescentes, custa-me reconhecê-los quando nos cruzamos em qualquer canto. Olho-os com espanto, pensando como estão velhos, esquecendo por momentos que também eu envelheci. A maior parte dos sonhos ficou perdida. A vida tomou rumos insuspeitos. Nunca conseguimos mudar o mundo.
E o café também mudou, acho. Não voltei mais lá depois de, passados uns anos, ter entrado e pedido o meu cimbalino e copo de água. O rosto que me trouxe o pedido não era conhecido, não tinha sorriso. Tentou cobrar-me dez escudos por um copo de água…
Recordo um café perdido numa cápsula de tempo. Um café com recuado onde um grupo de amigos se reunia. Também o grupo ficou preso no tempo, preso na minha memória.
E, como não ponho preço nas minhas memórias, não regresso mais àquele café. Poderiam querer cobrar-me dez escudos por um pedaço de mim…
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(A minha amiga mais antiga, companheira de Escola Primária, viu hoje o filho pela primeira vez, numa ecografia em que o rapaz, pouco dado a pruridos, deixou as pernas bem abertas para que não restassem dúvidas de que seria um menino da mamã. E, à conta disso, lembrei-me de um dos
posts que mais gostei de escrever sobre amigos e memórias.)