2009-03-07

Ágora



«Havia em Alexandria uma mulher chamada Hipátia, filha do filósofo Theon, que fez tantas realizações em literatura e ciência que ultrapassou todos os filósofos de seu tempo. Tendo progredido na escola de Platão e Plotino, ela explicava os princípios da filosofia a quem a ouvisse, e muitos vinham de longe receber seus ensinamentos.»

A Vida de Hipátia, por Sócrates, o Escolástico


... e acabou assassinada às mãos do fundamentalismo cristão.

17 comentários:

JoãoG disse...

Hoje em dia isso só lhe aconteceria se vivesse numa sociedade islâmica, certo...?

Hipatia disse...

Vai dizer isso àquelas tantas de mulheres portuguesas que são todos os anos mortas à porrada no seio de um casamento muito católico.

JoãoG disse...

Estávamos a falar de fundamentalismos religiosos e nas atrocidades que cometem às mulheres.

Criminosos cobardes há infelizmente um pouco por todo o lado.

Hipatia disse...

Então vamos falar sobre os Bispos que acham que uma mulher - uma criança de nove anos até - deve morrer em lugar de interromper uma gravidez resultante de uma violação. Não é isso fundamentalismo religioso? Pois que também é crime cobarde; deve ser isso...

JoãoG disse...

Sim, é isso tudo, mas o que eu estava a querer dizer, e tu a não queres que eu diga, é que actualmente o máximo que os pontífices católicos fazem é excomungar (grande coisa!); enquanto que no fundamentalismo islâmico mandam matar e matam!

O fundamentalismo é todo mau por natureza, mas o islâmismo é um bocadinho pior. Só isso.

Hipatia disse...

Em qualquer país em que a lei religiosa se tenta impor e suplantar ao estado laico, obviamente que as mulheres estão sujeitas a maiores doses de fundamentalismo e às suas consequências. Ou então por uma estúpida estrutura patriarcal da própria sociedade, em que a tradição consegue impor-se à lei geral, como na Índia das castas e das sogras a assassinarem mulheres tidas por inférteis. Mas não é porque a estupidez e o fundamentalismo ficam escondidos que deixam de existir, ou que em Países ocidentais há ingerências perigosas do fundamentalismo cristão. Vê a treta do criacionismo nos EUA, a treta dos decretos que Berlusconi quis fazer à pressa para não permitir que Eluana visse respeitado o seu direito de morrer, ou o que aconteceu agora no Brasil a propósito da miúda de 9 anos. Não é porque é menos evidente ou menos cruel que não existe; não é porque na teoria se fez a separação entre o Estado laico e a religião. É uma realidade insidiosa que perpassa toda a sociedade, todas as condições. Está entranhada em gestos aparentemente pequenos, desde as mulheres que não progridem na carreira da mesma forma porque até faltam para irem com os filhos ao médico ou da forma como todos aceitam sem questionar que sejam as mulheres a faltar para irem com os filhos ao médico. Está implícito no discurso dos Bispos que aconselham que as mulheres não casem com muçulmanos e, no entanto, são bem capazes de as aconselhar a permanecerem casadas com brutamontes que as agridem. Está até na lei que, mesmo após o último referendo que permite a IVG até às dez semanas, continua a não dizer nada sobre quem ajudou a fazer o filho, antes ou depois das dez semanas. E, da maneira como olho para este pontificado (falando agora só dos católicos, que são os que temos mais perto) vejo um retrocesso evidente em direcção ao fundamentalismo. E só não é mais evidente porque a sociedade, melhor ou pior, se divorciou da igreja quando a condição social da maioria melhorou. Mas com uma crise económica profunda há sempre a hipótese do fundamentalismo regressar em força. Não digo que a ICAR consiga assim voltar a ganhar peso. Mas as seitas tipo IURD vão, com certeza, aumentar os seus dízimos.

JoãoG disse...

Declaração de interesses:
1-Fiz todo o meu percurso educacional e académico em entidades católicas ou de inspiração católica, tanto em Portugal como no estrangeiro;
2-A minha opção teve sempre a ver com a qualidade do ensino e de educação e em nenhuma delas fui aliciado a ter uma conduta em conformidade com os dogmas católicos;
3-Muito pelo contrário: católicos e não católicos eram muito bem-vindos na exacta medida em que houvesse um respeito mútuo ético pelos valores que cada um incorporava;
4-Não sou católico, nem de outra qualquer religião, mas sempre me interessei pelo ecumenismo e pela influência das religiões nas sociedades e nos estados;
5-Sou quase sempre eu que leva os meus filhos ao médico.

Dito isto, só quero frisar duas coisas - uma que mencionas e outra que voltas a não mencionar:

Primeiro, não é pela separação dos estados ocidentais das igrejas que os fundamentalismos ficam escondidos. É precisamente o contrário, tornam-se muito mais visíveis, tornam-se notícia, são imediatamente escrutinados (No Brasil, o PR já mostrou indignação; no caso da Eluana, a indignação foi generalizada e mundial e até aquela apreciação pessoal do Cardeal de Lisboa foi amplamente discutida e avaliada e, por último, queres coisa mais debatida que o criacionismo versus evolucionismo...?). Os efeitos das bolsas de fundamentalismo organizado ou espontâneo são diariamente monotorizados pela comunicação social. Porquê? Porque são notícia e têm directamente a ver com os direitos, liberdades e garantias dos cidadãos.

Segundo ponto, no Islamismo, quer em forma de Estado (quase todos os países do médio-oriente - ou como disse socrates, do médio-ocidente); quer com Estado laico (Turquia, Indonésia, Nigéria), sabes quantas mulheres são decapitadas por serem homossexuais, não excisadas, falarem com outros homens, destaparem o corpo ou o raio que os parta? Não, ninguém sabe. E porquê? porque é a religião mais fundamentalista, retrógada e fechada com maior número de crentes à face da terra. Falo de estados islâmicos e laicos onde predomina essa religião. E nem me venham falar dos denominados islâmicos moderados: só o dizem ser pq vivem no ocidente ou têm interesses económicos por cá.

Foi só este contraponto que quis frisar. Só.

Hipatia disse...

Há um ano atrás, o meu post do dia 8 de Março foi sobre Dua Khalil Aswad. Esse nome ainda te diz alguma coisa? A música que deixei no post é sobre a vida de uma mulher da Somália. Não questiono como é urgente e premente ver defendidos os direitos fundamentais de todas essas mulheres, a maior parte a viver em culturas fortemente patriarcais, muitas delas muçulmanas. Mas acho profundamente perigoso escamotearmos a misoginia latente da sociedade que, porque pôs em forma de lei uma suposta paridade, na prática continua a esconder profundos estigmas penalizadores da condição feminina. Querendo-se ou não, isso remete para o âmago dessas sociedades e a sua inspiração religiosa de base. Não fosse assim e há muito que mulheres seriam ordenadas padres no seio da religião católica. Lembrarmos apenas os casos extremos do fundamentalismo islâmico ou de sociedades islâmicas é perigoso. Porque desculpa as outras sociedades, aquelas que pensam que já não há discriminação porque a lei diz que não. É fechar os olhos ao que se passa diariamente à nossa volta, às mulheres que não chegam aos conselhos de administração, à crítica a Manuela Ferreira Leite porque escolheu ir conhecer o neto, ao estigma de lésbicas que sempre tentaram colar às feministas, às mulheres que regressam ao emprego após uma licença de parto e nem a secretária têm direito, as perguntas das hierarquias no início de cada ano para saber se alguma mulher vai engravidar, aos lugares que uma mulher não consegue porque implicam viagens permanentes e mesmo que não tenha filhos até pode vir a querer tê-los, mesmo que o CV da mulher que se apresenta a concurso seja muito superior ao de qualquer concorrente masculino, é a promoção que vai primeiro para um gajo, é o facto de sabermos – e nos lembrarem repetidamente – que em situação de igualdade de oportunidades temos de ser, sempre, um bocadinho melhores do que qualquer concorrente masculino, é termos de conviver permanentemente com o preconceito de sermos menos mulheres ou menos femininas porque escolhemos não casar, é a treta do “amar e obedecer” nos votos matrimoniais, é sermos galadas de cima abaixo por boçais que pensam que podem, porque aos homens isso é permitido, é estarmos ainda demasiado perto do tempo em que nem sequer podíamos ter propriedade em nosso nome ou registar um carro e era preciso pedir licença escrita ao marido para viajar, é o condicionamento da sociedade acerca do que é ou não é uma profissão para mulher, do difícil que é para uma engenheira civil ir a um obra ou não teres mulheres nas chefias do exército, ou a quantidade de mulheres que conseguem lugares na política e a forma como a Ségolène Royal foi mais comentada pelo seu aspecto do que pelo programa político ou porque é notícia de primeira página que a nova primeira ministra da Islândia é lésbica. É um mundo de preconceitos. É pior nos Países onde as mulheres nem sequer têm direitos? Claro que é. Mas também é perigoso pensar que a igualdade consagrada na lei trouxe de facto a igualdade e que uma mulher, num qualquer País que se diga evoluído, não tem sempre a vida muito mais dificultada do que um homem qualquer que partilhe iguais apetências e valias. E o pior é que muitas dessas mulheres até são capazes de desdenharem o 8 de Março. Como se já não fosse preciso; como se não continuassem a ganhar menos; como se não tivessem demasiadas portas trancadas; como se não fossem as primeiras a serem despedidas e as últimas a conseguirem emprego; como se demasiadas não trabalhassem como bestas durante oito horas para depois ainda irem para casa fazer de criadas de servir de filhos, maridos e até da sogra; como se fosse possível decretar a igualdade sem mudar a mentalidade.

É só porque a falta de igualdade extrema não desculpa a desigualdade encapotada. Só.

JoãoG disse...

Sem entrar em delongas, porque penso não ser esse o propósito, respondo pelo fim:
1-Nunca afirmei ou sugeri que "a falta de igualdade extrema" desculpasse "a desigualdade encapotada". Só comparei (0,1 é 1000 vezes mais do que 0,0001) e comparar não é apagar nenhum dos termos, mas sublinhá-los - penso que nisto estamos de acordo;
2-Os dogmas pelos quais se regem os católicos só aos próprios lhes competem ajuizar, velar e fazer culto de obediência: o que temos a ver com o facto de não haver mulheres ordenadas padres, ou com "amar e obedecer" nos votos matrimoniais, se os próprios concordam e aceitam? Não há imposição no que é previa e voluntariamente aceite.
3-Modéstia à parte, fartei-me de ser "galado de cima abaixo por boçais"(?) mulheres. E achei que sim, que lhes era permitido, também por serem mulheres, terem sentido de oportunidade e bom gosto;
4-Todas as leis de paridade, como muitas outras, enquistam vontades e desejos que muitas vezes a sociedade não está disposta a acarretar (aqui, contraponho com meritocracia, mas pronto) e vice-versa: muitas outras situações deveriam ser acauteladas por lei e só não o foram porque ainda não se tornaram relevantes ou mediáticas;
5- Atenção ao que designas como "preconceito". Muito dele não é mais do que a constatação repetida e infinita de uma realidade táctil e factual. Preconceituar não implica necessariamente perjúrio ou exacerbado conservadorismo, mas tão-só uma mnemónica muito humana para com situações ímpares ainda não devidamente interiorizadas. Só começamos a falar de intolerância quando não devidamente aquilatadas.
6-E é só.

Hipatia disse...

Agora não tenho tempo para responder a tudo, mas deixa-me só referir esta tua frase: "Os dogmas pelos quais se regem os católicos só aos próprios lhes competem ajuizar, velar e fazer culto de obediência".

E os muçulmanos não poderão dizer o mesmo, que só a eles compete ajuizar, velar e fazer culto de obediência, até à sharia, por mais abjecta que essa pareça aos teus olhos?

Eu, que estou de fora e olho para as consequências e os males sem medo do dogma de qualquer espécie e não sinto necessidade de manter qualquer obediência ou zelar por qualquer imposição de cariz religioso, fico a achar que os juízos de valor, vistos assim, não fazem sentido. Mesmo que veja as consequências como mais nefastas num caso do que no outro, há sempre a questão do princípio e o preconceito veste variadíssimas formas. Tu estás pronto, desde o início, a marcar a diferenciação entre o que acontece hoje nas sociedade muçulmanas e nas cristãs, opondo umas às outras. E no entanto tens uma afirmação que resume muito do que eu digo, quando falo em mudanças de mentalidade, que nenhuma legislação vai conseguir impor. E não é preconceito?

JoãoG disse...

Desculpa lá mas não me podes cortar as frases e dar sentidos díspares. Transcrevo:
«Os dogmas pelos quais se regem os católicos só aos próprios lhes competem ajuizar, velar e fazer culto de obediência: o que temos a ver com o facto de não haver mulheres ordenadas padres, ou com "amar e obedecer" nos votos matrimoniais, se os próprios concordam e aceitam? Não há imposição no que é previa e voluntariamente aceite.» Esqueci-me de acrescentar: e livremente aceites.
Nos Estados Islâmicos não há cá dessas liberdades: ou obedeces ou és sumariamente punida; ou professas aquela religião ou estás lixada... Essa foi rasteira :P

Hipatia disse...

Uma frase como "Não há imposição no que é prévia e voluntariamente aceite" (e livremente, já sei) é de uma arrogância que vai lá vai! Então assumes que todos os muçulmanos o são por imposição e não por fé? Que é isso senão a velha mania da cruzada cristã, com vontade de ir salvar os coitadinhos e baptizá-los à força – ou mandá-los para a fogueira – se não assumissem a "verdadeira" fé? Não há escolha? Só se entenderes a fé no dogma como uma imposição e não como crença. Khomeini fez a revolução sozinho? Não existem crimes de honra em países como a Índia, a coberto da tradição hindu? Não há mulheres a defenderem convictamente a Sharia, mesmo quando ela lhes retira tantos direitos quando observamos aqui da nossa tradição ocidental? Nenhuma religião organizada se contentou alguma vez em ficar apenas no plano do espírito. Eu vejo no teu discurso – por mais articulado – preconceito, no juízo sumário com que encaras o mundo muçulmano como mau, como um papão que lixa indiscriminadamente, como algozes e, provavelmente, com aquele olhar do "vejam lá como nós somos melhores, que aqui não lixamos ninguém que pense diferente". Pois, para mim, toda e qualquer religião organizada é esteio bastante para temer o fundamentalismo, porque todas elas vão tentar impor-se pela interpretação aprovada da suposta palavra divina: interpretação feita por homens falíveis, com interesses bem materiais, à procura do lugar certo para transformarem questões de fé em questões de poder sobre as almas e, a partir daí, permitirem-se e perdoarem-se todos os crimes que lhes derem jeito contra quem pense diferente ou lhes possa enfraquecer o poder conquistado. Que alguns mantenham ainda o controlo bem terreno dos destinos de povos e outros agora só consigam mandar bitaites sobre a moralidade alheia é apenas um pormenor que ficará nos rodapés da História, como ficaram as caças às bruxas ou a Inquisição, isto se entretanto um qualquer futuro distópico não acabar num qualquer admirável mundo novo onde a religião até possa ser outra, mas a fórmula será sempre a mesma.

JoãoG disse...

Perfeito, chegaste finalmente onde, já adivinhara, irias chegar – finalmente todas as cartas na mesa.
Crês-te a Grande Ateia, a única que vê a grande distância e em qualquer religião (a Católica, mormente) um poderosíssimo e incontrolável instrumento de manipulação de massas, povos e sociedades, consubstanciando todo o seu apogeu no fundamentalismo ao serviço de interesses encapotados e donde os Estados podem e retiram soberanias que invariavelmente infligem às mulheres a mais bruta das punições. Para ti, não há religiões mais intolerantes do que outras; são todas regidas por homens, que valendo-se duma posição dominante gizada ao longo da História, só existem para sacanearem as mulheres.
Como respeito e compreendo o preconceito, nunca te iria chamar de intolerante face às religiões, mas, como Hipólita de Cítia, a primeira Rainha das Amazonas. Talvez até com aspirações a Papisa :)
Atenção, um indivíduo que tenha fé, crença numa religião, nos seus dogmas, os aceite de forma abnegada e livre, onde é que está a ser violentado? Alguém lhe impôs alguma coisa? Não. Mas só se houver liberdade religiosa sem leis punitivas anticonversão como existe em todos estes Estados Confessionais Islâmicos: Afeganistão, Arábia Saudita, Argélia, Bahrein, Bangladesh, Brunei, Ilhas Comores, Egipto, Emirados Árabes Unidos, Iémen, Irão, Iraque, Jordânia, Kuwait, Líbia, Malásia, Maldivas, Marrocos, Mauritânia, Omã, Paquistão, Qatar, Sudão (a partir de 1996) e Tunísia.
E que eu saiba, nenhum deles subscreveu A Declaração Universal dos Direitos Humanos*, nomeadamente no seu artigo 18:
Todo o homem tem direito à liberdade de pensamento, consciência e religião; este direito inclui a liberdade de mudar de religião ou crença e a liberdade de manifestar essa religião ou crença, pelo ensino, pela prática, pelo culto e pela observância, isolada ou colectivamente, em público ou em particular.
*À excepção do Egipto e da Pérsia que entretanto se tornou Irão.

Por último, uma perguntinha: Algum pontífice católico mandou condenar à morte (à morte, à morte, à morte) o tipo que escreveu o Código Da Vince, como fizeram a Salman Rushdie ou aos autores das caricaturas de Maomé…? É que o Diabo está mesmo nos detalhes…

Hipatia disse...

As religiões são "um poderosíssimo e incontrolável instrumento de manipulação de massas, povos e sociedades". Há dúvidas? Não há nem pode haver. E, no meu último comentário, em parte alguma declinei dai que o eram exclusivamente para subordinar a condição feminina. É para subordinar tudo e todos; uma questão de poder puro e simples: quem o conquista não o quer perder. Obviamente que se temos uma organização patriarcal, feita essencialmente por homens, dominada por homens, escrita e reescrita por homens – os mesmos que até esconderam como apócrifo o Evangelho de Maria Madalena porque, obviamente, não dava jeito nenhum ter uma mulher que se tinha provado mais intima do tal profeta do que aqueles que, então, pretendiam fazer uma igreja à sua medida – então o papel feminino estará ainda mais menorizado do que todos os outros. Também não terá sido à toa a mania da missa em latim que só uns poucos entendiam – e que agora até querem que regresse – porque o que não é entendido sem mediação não pode ser contestado.

E podes dizer que sou intolerante em relação às religiões. Sou mesmo. Não o sou em relação à crença, nem ao divino, nem à fé. Mas sou profundamente intolerante para com todas as formas de me organizarem o pensamento e o meu direito a falar com o divino na primeira pessoa, ou que me imponham dogmas que considero falaciosos. Nesse sentido, sou provavelmente ainda mais intolerante do que tu em relação ao fundamentalismo islâmico. Mas sou-o sem precisar defender o cristianismo tentando lavar a História dos seus efeitos nefastos. Que as religiões nos países ocidentais estão hoje menos perigosas e mais condicionadas por factores que, se fosse da estrita vontade dos senhores da igreja, nem sequer teriam viabilidade, como o facto de haver separação entre a sociedade civil pública e o que ficou remetido para o campo da crença privada (e é só vê-los a quererem continuar a aparecer em todas as manifestações laicas, como se não houvesse essa separação), ou facto de a alfabetização ser um facto e já não bastar olhar para pinturas encomendadas para saber as histórinhas do livro, ou a tal da liberdade religiosa que lhes faz tanta mossa que até avisam contra os perigos das outras religiões, não me merece contestação. E nada disso me faz deixar de suspeitar que muitos, se pudessem, fabricariam uma qualquer forma de "sharia" cristã, à medida do Novo Testamento ou, às tantas, do Velho Testamento, com o seu Deus tão vingativo.

E continuo a questionar essa coisa de afirmares tão convictamente que as sociedades islâmicas não são livres na crença. Tanto o são que os seus membros, quando longe dos seus países de origem, continuam a acreditar no mesmo e provavelmente da mesma forma. Devem ser todos bombistas suicidas, não é? Afinal, se estão a viver num qualquer País que respeite a liberdade religiosa e, ainda assim, não mudam de fé, só podem ser uns terroristas malucos e fundamentalistas, ali estacionados só para lixarem alguém, todos uns Torquemadas de turbante. Mas, lá está, às tantas eu estou a falar de crença e tu a falares de legislação de inspiração religiosa. Não são bem a mesma coisa, pois não?

Quantos exemplos de condenados à morte (à morte, à morte, à morte) por Pontífices católicos queres? Podemos começar por Giordano Bruno? Ou também te passou ao lado que eu acho que alguns mantêm ainda o controlo bem terreno dos destinos de povos e outros agora só conseguem mandar bitaites sobre a moralidade alheia e que isso é apenas um pormenor que ficará nos rodapés da História, como disse no meu comentário anterior? Quando a santa Igreja estava a queimar gente, o mundo muçulmano florescia, havia convivência pacífica entre religiões (vê o sul de Espanha) e a liberdade era, a todos os níveis, maior. Mas a História tem destas coisas – e é cíclica – sendo que, se deixarmos, se aceitarmos que esse tal "poderosíssimo e incontrolável instrumento de manipulação de massas, povos e sociedades" volte a ganhar preponderância, estamos neste Ocidente laico a um passo de retroagir aos tempos da Inquisição. Da mesma forma que não há nada que garanta que, em qualquer um dos países que nomeias, esse tal instrumento castrador da liberdade não perca poder e seja (novamente, olha aqui o novamente) subjugado a uma sociedade onde muitas mais liberdades são toleradas. É. Está tudo nos pormenores. E eu não vejo a evolução da sociedade muçulmana como estática nem condenada ao fundamentalismo, da mesma maneira que não esqueço que a tal da (agora) sociedade mais tolerante já primou por igual vigor nos seus atentados às liberdades individuais.

E há mais uma coisinha em que te enganas redondamente mas, lá está, na ânsia de poderes chamar-me isso, acabaste por meter os pés pelas mãos: posso ser muita coisa, posso até ser agnóstica, mas ateia não sou nem nunca fui. Só não me tentem é impingir uma versão da Divindade fabricado à medida dos interesses dos seus autores.

JoãoG disse...

Que grande salgalhada.
Sempre te tive, e tenho, como alguém capaz de discutir ponto por ponto com toda a lisura e honestidade intelectual todo e qualquer assunto. É, portanto, perplexo e com estranheza que te vejo truncar frases, comparar o não equiparável, e abordar com alguma ligeireza, e toda a certeza do mundo, aquilo que há-de ser sempre discutido enquanto o Homem por cá andar.
Repara bem, eu nunca saí disto: comparar a religião islâmica com as outras monoteístas (no caso, a católica), nos dias de hoje (actualmente), quanto às suas vertentes de tolerância religiosa, ligação aos Estados, sentido ecuménico, liberdades religiosas, liberdade e garantias dos cidadãos. E nunca saí disto. Nunca tive volições em alargar o tema para questões tão pantanosas como evolução das mentalidades e costumes ao longo da História, ou previsões ad aeternum do futuro das instituições religiosas ao longo do tempo. E sabes porquê? Por duas ordens de razão muito simples. Primeiro, porque sou humilde. Não tenho arcaboiço para juntar e interagir tantas áreas de conhecimento (filosofia, teologia, sociologia, história, direito, etc) para debitar opiniões definitivas sobre este assunto. Segundo, porque tenho e assumo um preconceito em relação à Historia propriamente dita como ciência e aos seus investigadores e estudiosos. Vou mais longe e adianto: houvesse câmaras de filmar nos sécs. XVIII e XIX (para não ir mais longe), chegassem até nós os seus registos, e quase de certeza que tudo o que fosse “visto” (cá está), seria muito diferente do que foi “escrito”(lá está), para além de que acredito muito naquela máxima em que a História só conta a versão dos vencedores.
De forma que, sem essas volições, sem sair de três ou quatro pontos chave, formulo opiniões (as minhas) consubstanciadas simplesmente em factos constatados. Não tento teorizar, nem prever ou fazer análises históricas daquilo que não tenho certeza. Não. Tenho este meu tempo de vida e é nele que ajuízo o que nele se passa sem, obviamente, menosprezar o que já foi anteriormente estudado, feito e provado (cultura).
Dito isto, fico triste quando a uma simples pergunta tão fácil e óbvia como(Algum pontífice católico mandou condenar à morte (à morte, à morte, à morte) o tipo que escreveu o Código Da Vince, como fizeram a Salman Rushdie ou aos autores das caricaturas de Maomé…? ), respondes com a condenação à morte de um Bruno não sei quantos, há não sei quantos séculos atrás, quando sabias que abordávamos a actualidade, só para supostamente não dares o braço a torcer.
Por último, segundo achas, as religiões são o mal deste mundo, mas esqueces que estas só existem porque antes delas já existiam as crenças (que não condenas), que sempre fizeram parte do Homem. Por esta ordem de razão, e tal como defendia Hobbes, a natureza humana é má. E se o Homem está imbuído de maldade por natureza e é propenso ao culto da Divindade, o que fazer? Exterminá-lo, talvez. De preferência, antes de terem surgido as religiões.

Eu faço um desenho:

Homem => Culto do Divino => Crença e fé => Religiões

Hipatia disse...

A tua sorte foi eu ter-me lesionado, lol. Agora já não é hora para a resposta. Mas não há mal: hei-de voltar ao assunto ;-)

Anónimo disse...

Mais Vozes

pronto, está visto, um filme inteirinho sobre ti. que vais fazer agora que vais ficar (ainda mais) famosa?
fabulosa | Homepage | 03.07.09 - 2:37 pm | #

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Depois do post sobre aqueles idiotas que se dizem católicos lá no Brasil, achei que ficava aqui bem o que acontece há séculos e séculos, num Março distante, aos cientistas que se metem com o fundamentalismo cristão. Cirilo também era um Bispo - lá em Alexandria - e foi o grande culpado de Hipátia ter sido lapidada, desmembrada e queimada, bem como pelo fim de um dos maiores arquivos científicos de que há memória: a Biblioteca de Alexandria.
Hipatia | Homepage | 03.07.09 - 4:02 pm | #

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