2006-06-14

É para amanhã?

tu que buscas companhia
eu que busco quem quiser
ser o fim desta energia
ser um corpo de prazer
ser o fim de mais um dia

António Variações - Canção do Engate


É para amanhã? Bem que podíamos fazer hoje. É que o amanhã pode nem chegar. Se estás livre, eu também estou livre... E buscamos companhia, não é?

Entre o vazio da solidão, porque não a aventura dos sentidos, feita a dois neste momento que nem é de amor, porque o amor não é o tempo que o faz, nem a espera, nem a partilha. É só não ter tempo para amar, nem vontade de estender uma mão aberta pronta a fechar-se sobre um vazio igual.

Enchem-se as mãos antes de tacto e de pele, do calor do outro corpo e os pés que assim não estão gelados pela madrugada, excepto se foste embora, ou porque mandei, ou porque este não é o sítio onde ficares.

Estamos sós e o resto pouco importa. Somos dois e maiores e o sexo disseram-nos que não é tabu. Foder a dois, mesmo que pouco mais sejas do que o viabrador que acabei de comprar online, é sempre melhor do que foda nenhuma.

É só mais um dia que passa, pouco importa. Tratemos de o aproveitar. Gozemos o tesão que se acumulou durante mais um dia de frustrações e que bem que estarias entre as minhas pernas nesta fila interminável de trânsito em que o carro avança e recua num pára-arranca desesperado, enconado.

Dispo o teu corpo de personalidade. Não quero saber quem és. Quero a liberdade do corpo trespassado de prazer e sem grilhetas. O resto fica para amanhã. É sempre para amanhã.

Não, não me digas que podemos fazer o amor hoje. Hoje podemos brincar a fazer amor, não o amor. Deixa esse para amanhã, quando tivermos tempo e o jantar não seja mais do que qualquer coisa descongelada à pressa. É que não é o tempo que faz o amor, mas eu não sei fazer amor sem tempo. E no meu léxico há muito que cabem as rapidinhas e outros simulacros.

É uma coisa de geração, sabes? Ainda ouvimos dentro dos miolos o Variações a cantar que só estamos bem onde não estamos. Ou da urgência de ter um corpo e não deixar para amanhã o que podemos fazer hoje. Ou do urbano-depressivos, sempre bem fodidos, nem que seja só pela vida e do chique que, por vezes, esse ar nos dá.

É para hoje? Não, deixa para amanhã...

Hoje, continuamos a foder para não falar. Ou fodemos para acabar. Ou fodemos só porque nos disseram que tinha de ser, que todos fodem afinal. Ou só para não ficar a mastigar a perna de frango ultracongelada, em pé na cozinha, sem pachorra para cozinhar. Foder fast-food, de geração fast-food, a correr atrás do hoje que perdeu logo pela manhã.

De que momento falas afinal? O momento em que faço de conta que me dou e tu fazes de conta que te dás? Amanhã continuamos à espera de uma vida. Amanhã é um fio de esperança que ainda tentamos encontrar.


É para amanhã? Bem podias fazer hoje...


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Em Abril, a Maria Árvore pediu-me um post para publicar lá no Chez Maria. Este foi o post que escrevi e que hoje - porque não tenho paciência para continuar a aguentar as sufecas do Blogger - resolvi trazer para a Voz. Apesar do tom, amargo e desencantado, gosto dele. Além disso, as férias que depois fui gozar foram muito satisfatórias e fizeram milagres pelo meu estado de humor...

12 comentários:

Anónimo disse...

A única coisa neste mundo mais deprimente que essa música do António Variações, é o próprio António Variações, que ainda por cima já nem é deste mundo.
Num podias ter-te inspirado noutra coisa qualquer? :((
Bj casto na testa.

Alien (muito deprimido...)

manu disse...

acho o texto muito doce e encantado. muito mesmo.
tipo: é por essas e por outras ke vale a pena cá andar.
acho ke muitas vezes o cinzentismo está nas pessoas. e isso ofusca-as, obviamente.
o kê!?
fatela?
eh pah, desculpem lá acordei agora.

Hipatia disse...

A nossa geração anda meio tramada com o que tentou fazer e os resultados que obteve. E isso é deprimente, quando deixamos que seja, ou quando tudo à nossa volta nos leva para um estado depressivo. De qualquer forma, foi neste estado que cheguei à Rocha em Abril. Nem sei como me aturaram :)))

E podes voltar a dizer mal do clima da minha terra à vontade: acabo de chegar a casa molhada até aos ossos. Lá se foi o Grito de Ipiranga da véspera do feriado. Acho que vou tomar um banho quente e dormir.

Beijo (pouco casto) onde quiseres ;)

Hipatia disse...

Obviamente que o cinzento está sempre em nós. Acabamos submergidos pelo cinzento, a mais das vezes quando olhamos para o que sonhamos ao entrar na vida adulta e o confrontamos com o agora. E nem me atrevo a imaginar a tua idade Manu. É que acho que também já fui assim :)))

manu disse...

hipatia, as consequências das gerações só se manifestam ao fim de pelo menos, uma década. é provável ke em portugal isso keira dizer 3 décadas. por isso, acho ke estamos deprimidos pelo ke as gerações de 30, 40 ou 50 fizeram. (ou não fizeram)

em relação à idade, tenho bastante mais do ke imaginas, é ke eu já voltei a ser o ke tu já foste.

Hipatia disse...

Somos a geração que herdou o mundo pronto e nem sequer está a fazer um bom serviço para o manter; a geração que herdou o medo, já não das guerras, mas um medo mais pequenino e atrofiado, de tal forma que se enfia em guetos e lhes chama subúrbios. O fim do século caiu-nos em cima da cabeça e sobrou apenas a noção de que, sendo materialmente bem mais ricos do que algumas vez os nossos avós, ou até mesmo os nossos pais, sonharam, ainda assim estamos emocionalmente debilitados. É uma geração que encontrou tudo pronto: todos os grandes sonhos já sonhados; todas as grandes causas já debatidas, algumas delas já decrépitas, sem encontrar-lhes alternativa. E sobra muito pouco, para além da batalha diária para manter e aumentar o património material onde parecemos enterrar o que sobra da esperança, haja ou não dinheiro no fim do mês para pagar as prestações. E estamos prostituídos às obrigações e até os filhos são encargos que se atiram para a frente das televisões, à espera que saiam já prontos, como uma qualquer refeição ultracongelada. E não há paciência para muito mais: perdemo-la logo pela manhã mal toca o despertador. Os sonhos é que continuam a ser deixados para amanhã.

deep disse...

Olá! Do teu último comentário resultaria na perfeição outro "post". Gostei do teu texto. Fizeste bem em "trazê-lo" para aqui.
Bjs e bom resto de feriado.

Maria Arvore disse...

Sempre gostei muito deste teu texto, Hipatia!
Exactamente pelo desencanto que revela de uma geração que aceitou ser como lhe impuseram e não se sonhou. Um geração arrastada na velocidade de corresponder à velocidade dos tempos modernos, tornando-se a si própria fast food.

E apesar disso, continuar a ter nostalgia de um bom cozido à portuguesa ;)é que alegra a «ialma». ;))

Hipatia disse...

Era o texto de alguém muito cansado, Velvet. Acho que é isso que mais se nota :) Obrigada!

Hipatia disse...

Talvez um dia ainda dê, Deep ;-) Afinal, estão lá algumas ideias que ficaram só pela rama :) Obrigada!

Hipatia disse...

Escrevi o texto porque me pediste e, na altura, não gostei nada dele. Lembro-me que te disse isso mesmo por mail e que me respondeste que, quando voltasse de férias e o relesse, ele não pareceria tão mau. Tinhas razão: à distância de meses, depois de ter gozado férias, depois de um prémio e mais uma promoção (e mais umas coisinhas) já não estou tão deprimida e já não saberia escrever um texto assim. Mesmo que continue a achar que está cheio de verdades sobre esta nossa geração, que nunca soube ser mais do que a geração de transição dos pobrezinhos mas orgulhosos, para os endividados e sem vergonha na cara :S

Anónimo disse...

Mais Vozes

Diferente.
E.A. | Homepage | 06.14.06 - 8:29 pm | #

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Eu, em finais de Abril, estava um caco, E.A. Deve estar ai a grande diferença
Hipatia | Homepage | 06.15.06 - 12:33 am | #