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Moravam os dois fantasmas, “dos livros que ainda não foram lidos”, lá num casarão perdido no meio da Vila. Uma mansão mais parecida com as “casas dos Brasileiros”, bem típicas lá de Aveiro.
A casa era ampla e tinham muito espaço para deambular. Ainda por cima estava vazia pois ninguém a queria habitar.
Voltejavam com os seus lençóis brancos, percorrendo a casa toda numa inquietude de quem procura alguma coisa. E o seu lugar favorito, dentro da grande casa, era a biblioteca escondida lá nos fundos.
Bem tentou o proprietário alugar aquela casa, mas quem por lá passava pouco tempo ficava.
Era um desassossego durante a noite...
Som de coisas partindo-se, correntes de ar percorrendo a casa, vindas de lugar nenhum e livros tombando no chão da biblioteca. Sem nenhuma explicação...
- Ninguém pregava o olho!
Até que um dia, surgiu na vila um casal disposto a alugar aquela casa amaldiçoada. Eram gente de longe com um filho de olhos muito grandes, cheios de vontade de conhecer as coisas do mundo.
O caseiro, encarregado da transacção, ainda perguntou ao casal depois da decisão:
- Mas não têm medo da casa e da sua assombração?
Logo ali contou a história daquela triste mansão.
Tinha sido a casa de dois irmãos gémeos e professores, por sinal. Tinham vivido ali durante muito tempo e, dizem, nunca conseguiram ler a biblioteca toda até ao final. Morreram os dois no mesmo dia, vai-se lá saber porquê. Sem terem lido todos os livros da sua biblioteca.
O menino ficou logo curioso com a biblioteca, enquanto os pais assinavam o contrato de arrendamento.
Passado algum tempo já estavam instalados naquele velho sobrado de águas largas e árvores frondosas.
Acostumados aos ruídos da grande cidade não deram por nada, dormindo a sono solto. Mas quando a casa fez sentir seu silêncio, começaram a reparar nos sons nocturnos que vinham da vasta biblioteca.
Era um restolhar de papéis, livros caindo no soalho, janelas e portas fechando e abrindo lá no coração da noite.
Começaram logo a pensar nas palavras do velho caseiro...
Mas o menino tinha olhos grandes. É sabido que olhos grandes servem para ver o mundo até na mais completa escuridão.
Assim, uma noite em que os pais se revolviam nos lençóis sem conseguir dormir, o menino dirigiu-se à fonte de todos os ruídos: a Biblioteca.
Entrou, sentiu a corrente de ar e viu um livro aberto no chão. Tinha talvez tombado de uma das grandes estantes... Pegou nele e leu precisamente a página que estava aberta:
“Assim que entrou em casa, Gepeto agarrou logo nas ferramentas e pôs-se a esculpir e a construir o seu boneco.
Que nome lhe hei-de dar? – Disse de si para si. – Quero que se chame Pinóquio”
- Mas eu conheço esta história... Pensou o menino.
E continuou a ler, desta vez em voz alta, recostando-se num cadeirão.
As correntes de ar cessaram e até teve a sensação de que alguém lia o livro ao mesmo tempo do que ele, espreitando por cima do seu ombro. Quando terminou a história foi-se deitar numa casa agora mergulhada em sossego. O pai já ressonava com a mãe agarrada ao seu corpo.
Neste ponto, terei que dar uma explicação aceitável sobre os nossos fantasmas dos “livros que ainda não foram lidos” ou, se quiserem, dos “livros que ainda estão por ler”.
Como é sabido, os fantasmas não têm dedos. Como hão-de consultar uma biblioteca? Ora bem... Só provocando correntes de ar ou outras coisas menos materiais para fazer tombar os livros das estantes... Caído o livro no chão, basta só uma pequena aragem para mudar de página...nem sempre é fácil. O problema reside em tirar os livros que ainda não foram lidos das prateleiras. É necessária uma boa dose de esforço e de sorte.
- Este menino veio mesmo a calhar. - pensou logo um dos irmãos fantasmas, sentindo a concordância do outro que agitou o seu lençol afirmativamente.
No dia seguinte, ou melhor, na noite seguinte, o menino dirigiu-se à biblioteca assim que escutou o som da escova de dentes percorrendo energicamente a boca do pai.
Já lá estava alguma agitação... A janela abriu-se de repente e o acervo da estante superior agitou-se destacando uma lombada.
- Grim? Interrogou-se o menino.
- Pois bem, estão seja...
Sentou-se confortavelmente no cadeirão da biblioteca e começou a ler, sentindo de novo aquele arrepiozinho agradável de quem não está só. Mas os “contos de Grim” são extensos e o menino começou a ficar com sono. Então poisou o livro, aberto, sobre a grande mesa da biblioteca e foi-se deitar. A casa estava calma e cheirava a sono.
Na manhã seguinte, foi dar uma espreitadela à biblioteca. O livro que havia deixado aberto, estava agora fechado com a contracapa para cima.
- Ahhh...Então leram.- pensou, cheio de vontade que chegasse a noite. Mas o pai já estava lá fora às apitadelas, convocando-o para um dia de escola.
Chegada a noite, sentindo que os pais já se recolhiam no quarto, entrou na biblioteca assombrada: e lá estava um livro tombado no chão!
Pegou no livro e leu... Matilde Rosa Araújo.
Chegou rapidamente à conclusão que aqueles dois fantasmas se tinham esquecido de ler os livros das suas infâncias. Só assim se justificava aquele tipo de escolha. Não leram nada quando eram meninos... Pensou.
De qualquer forma estava a divertir-se bastante com aquelas leituras nocturnas.
Leu um pedacinho do livro e deixou-o ficar aberto em cima da mesa.
Claro está, durante a noite, os fantasmas leram o livro todo.
A partir daquele momento, o grande casarão passou a ser uma casa serena.
Um dia, o Pai, vendo o filho descer as escadas perguntou:
- Onde vais a esta hora?
- Vou dar de ler aos fantasmas. - respondeu a criança.
Agora tenho uma pergunta para vocês, leitores.
E quando se acabarem os livros da grande biblioteca? Será que podem levar convosco estes dois fantasmas, que ainda não leram tudo, para vossa casa?
À velocidade a que os livros tombam no chão da biblioteca, daqui a pouco acaba-se a literatura para a infância.
Um texto de Miguel Horta