2008-01-06

Gueto

As coisas podem nunca parecer o que elas são
E é por isso que tu vais engolindo toda a droga que te dão
E se um dia fazes ondas de mais, tiram-te a ração...
A bem da nossa civilização

Jorge Palma – A Bem Da Nossa Civilização



JPT não se indigna contra a nova Lei do Tabaco; nem sequer questiona a validade de vários pontos da lei. Não é sequer essa a questão que incomoda JPT. Nem a mim. Parece-me legítimo que o meu fumo não incomode a liberdade dos outros de não fumarem. Sempre me pareceu legítimo, aliás, que espaços fechados estivessem equipados com mecanismos que evitassem a concentração de fumo. Quantos de nós, por exemplo, já não acordaram na manhã seguinte a uma noite de copos enojados com o cheiro que se desprende dos cabelos e da roupa, prontinha para ir lavar?

Mas, se a liberdade dos não fumadores foi cerceada durante demasiado tempo, temos agora o oposto e são os fumadores que perderam quase toda a liberdade. Os absurdos desta lei mais papista do que o Papa são evidentes, desde as prisões onde se pode continuar a meter veneno para a veia, mas não um bocado de fumo para os pulmões. Aliás, nem sei bem o que me parece esse absurdo: eu recusei sempre o uso das drogas ditas duras, mas nunca vi mal algum em se fazer um muito agradável charro. E os charros sempre os fiz e vi fazer misturados com tabaco. E em forma de cigarro. Será que se podem fumar charros nas salas de chuto?

Nunca questionei que, quando me metia num avião, os cigarros deviam estar no fundo da mala e que era suposto aguentar-me sem eles até ao fim da viagem. Nos comboios, mesmo quando o Alfa ainda nos dava uma carruagem para fumadores, sempre optei por um lugar numa das outras. E aguentei as viagens. Como não fumo nos táxis, nos autocarros, nos metros, nos carros de não fumadores, nos hospitais, nas clínicas, nos tribunais… Não é fácil, mas aguenta-se. Sempre se aguentou.

Os restaurantes e os cafés sempre foram sítios onde fumei. Aliás, como muitos, tive sempre o vício de juntar ao vício do cigarro, o vício dos cafés e o das conversas. E ficar sem esses espaços vai custar-me mas, mais uma vez, aguenta-se. E até se entende: não havendo mecanismos para exaustão do fumo, era eu que cerceava a liberdade dos outros e até a saúde dos outros.

As discotecas e os bares, por outro lado, já me parecem sítios mais estranhos: tirando aqueles que criaram espaços para fumadores, nos outros todos poderemos continuar a ver putos cada vez mais novos a chegarem ao coma alcoólico ou a meterem pastilhas atrás de pastilhas, desde que não caiam no pecado de acender um cigarrinho. Lei estranha…

Mas o que me revolta mesmo é o facto de todos os fumadores, que vão continuar a suportar o Estado com os impostos absurdos que caem sobre os cigarros – e não vejo ninguém a tentar proibir de vez a venda do tabaco, que acabava a galinha dos ovos de ouro fiscal – sejam remetidos para guetos. Ou então pura e simplesmente esquecidos. Como nos aeroportos. Sim, que entre o check-in e a viagem propriamente dita, mais o desembarque e a espera pelas malas ou os atrasos sistemáticos nos voos e nas ligações, ninguém se lembrou da porcaria de uma sala para fumadores. E, convenhamos, se a lei é para cercear a liberdade de todos os que são viciados em tabaco, então que o diga claramente. Se é para proteger apenas os outros, que não faça de conta que os que fumam não existem e não merecem ter espaço(s).

Já agora, se queremos copiar os exemplos alheios, que se olhe para eles com atenção. Veja-se a Irlanda: a lei do tabaco não reduziu o seu consumo. O consumo apenas diminui quando as terapias passaram a ser comparticipadas. Uma breve análise ao custo de medicamentos, pastilhas, tratamentos vários, dirá a qualquer um de nós que fica mais barato continuar a fumar. E em tempo de apertar o cinto, até aos pregos se fazem contas. Aliás, quantos têm presente que este é um hábito que causa mais dependência do que uma droga dura, mais ainda do que a heroína? Provavelmente não os mesmos que legislam sobre salas de chuto, mas proíbem os cigarros.

Vamos lá assinar a
petição que não é bem uma petição que o JPT lançou. Se eu, fumadora, tentarei não cercear a liberdade de todos os que não estão viciados nesta treta, então respeitem a minha liberdade também, dando-me mais do que o céu, a chuva e o frio para poder ainda acender um cigarro. Gueto sim – já estou preparada para ele – mas com um mínimo de condições!



(E que se acabe com as legislações paternalistas, porra! Ou daqui a uns tempos, à conta das DST, já nem o refrão do Abrunhosa nos sobra e já não há sequer o "e agora o que vamos nós fazer?/ talvez foder, talvez foder".)

19 comentários:

jpt disse...

obrigado pela referência. E, ainda mais, pelo texto que lhe junta, no qual me revejo. Cumprimentos.

Hipatia disse...

Temo esta moralidade por decreto. Temo mais ainda que, daqui a uns tempos, com o mesmo objecto melífluo de nos salvar de nós mesmos, o Estado legisle sobre quantas calorias podemos ingerir, quanto álcool beber (onde comer a ASAE já vai tratando do caso), com quem fornicar e como o fazer, de que cor pintar o cabelo ou as unhas, se se está demasiado bronzeado e a fabricar um carcinoma, se se está demasiado gordo e a fabricar um ataque cardíaco, se se está demasiado velho, ou novo, ou claro, ou escuro, ou assim ou assado. E a partir do momento em que permitimos que a nossa liberdade passe a valer nada face a um mítico bem comum aprovado com maioria (des)qualificada, abrimos precedentes que me assustam. A eugenia é só um deles; mais ainda, temo o que os patrões, por exemplo, possam aproveitar daqui: C.V. onde vale mais se o peso está certo, a dieta está correcta, a cor é a que convém e não há cigarros a dar cabo das artérias. No fim, talvez haja alguém competente, mas a competência nunca foi o grande objectivo de quem tenta fabricar o homem novo por medida. E, tantos anos depois do velho das botas ter caído da cadeira, voltamos à legislação paternalista. Talvez seja nossa sina, mas acho que é muito mais a nossa incapacidade para autonomia. E quem aceita tudo o que lhe impingem sem protestar talvez mereça realmente o que acaba por ter. Dai que tenha dado seguimento ao seu protesto, JPT: bem-haja por ele!

Filipa Paramés disse...

Nunca acertamos não é?
Não sei, mas eu cá para mim nos outros países não há estas merdices mal amanhadas. Pensam em proibir e pensam em condições para quem fuma. Não é atirá-los a um canto miserável qual cães raivosos. É suposto criar vergonha a quem fuma? Será esta a política de prevenção?

Ah e eu não fumo.

beijinho

cereja disse...

Ora cá está uma posição correctíssima.
Tenho passeado por aí e continuado a ver extremos de fundamentalismos de parte a parte. A tua lista de aceitação de lugares onde se não deve fumar é suficiente aberta para me satisfazer inteiramente. Como muito bem dizes, dantes era quem não fumava que sofria e de que maneira! Lembro-me de que uma vez há muitos, muitos anos, decidi por brincadeira fornecer de máscaras hospitalares as três colegas e eu, que éramos as não-fumadoras em reuniões de 12 pessoas que acendiam cada cigarro no anterior. Ao fim de uma hora, tínhamos que ir ao corredor 'respirar' e ao voltar a entrar para a segunda hora de reunião, nem se via quem estava na sala, tal era a nuvem ambiente. Assim como muitas vezes tive de saborear o meu belo linguado grelhado à mistura com o malboro que me chegava em cheio da mesa do lado...
Mas isso era quando os ventos sopravam do outro lado. Desta vez, acho que não se preparou nada, desde que se criou a lei e a sua entrada em acção. Tudo parece apanhado de surpresa, mesmo empresas muito grandes, e hotéis que ganham montes de massa. E, é evidente, que quem deseja perder o vício deveria ter uma forte comparticipação na solução desse problema. Porque é mesmo um problema! E não chega a "força de vontade", mesmo que ajude, é necessário um tratamento a sério.

cereja disse...

Ah, e uma coisa, já fui assinar a petição. Como se entende não fumo e desagrada-me sentir o fumo mas este extremismo é ridículo. Por outro lado, este caso dos aeroportos é uma ilustração do que disse - então durante estes quase 6 meses não tiveram mais que tempo para conceber um espaço no aeroporto onde quem precisasse fumasse o seu cigarro?

I. disse...

Aqui no bules ninguém perguntou nada a ninguém: afixou-se o dístico vermelho e já está. Os fumadores (e são muitos) lá têm que ir para a porta. Já se fala (iniciativa dos fumadores, claro) em criar umas salitas de fumo, mas não há locais, nas instalações, que correspondam às exigências legais, para tanto era preciso instalar sistemas de exaustão que não há dinheiro para comprar.
Concordo com a lei, mas não com a aplicação: se dá muito trabalho criar um espaço para fumadores, não se cria. E a gente que vá para a rua.Se pudermos, claro.

Vou assinar :)

(eu e uma colega criamos uma sala de fumo "à força": um pequeno corredor, de acesso reservado, com janelas. já testamos: o fumo não sai dali para espaços frequentados por outras pessoas.é a nossa escapadinha ;)

Claire-Françoise Fressynet disse...

Já há muito que passo em corrente de ar pelos espaços públicos, sou amante da dança do fumo. Assinei e vou divulgar, estou a procura de rapé ....

Maria Arvore disse...

Como subscrevo 100% o que escrevestes ( e muito bem, caramba!), já lá fui assinar.

Hipatia disse...

Nunca acertamos porque tentamos sempre pôr o remendo demasiado acima, em lugar de começar pelas fundações. Aliás, como na nossa conversa sobre a Educação Sexual, não é? Impossível permitir que as criancinhas aprendam qualquer coisa que as habilite para uma vida sexual saudável, mas, no entretanto, pode ser que alguém se lembre depois de as proibir de foder cada vez mais cedo. Ou, então, se engravidarem, podem sempre abortar (e sabes bem como defendi o referendo à IVG). Mas, porra!, e que tal se começassem por uma vez sem ser pelo telhado?

Hipatia disse...

Não me espanta que tenhas assinado a petição, Emiele. Como não me espanta que tenhas estado muitas vezes incomodada com o fumo dos outros. Até eu já fiquei e sou fumadora. Mas é muito mais do que isso: assusta-me, por exemplo, como já se anda a contornar a Lei; como me assusta a forma como, mais uma vez, ficou toda a gente à espera para ver no que dava antes de tomar uma decisão. É certo que eu falava em comparticipação, o que me faz estar a pedinchar ao meu sistema de saúde – para o qual dou dinheiro todos os meses – um mínimo de apoio. Mas os restaurantes e os bares ficaram todos à espera que alguém lhes pagasse os exaustores, não é? Que deram em troca? Nada! Agora que não se queixem se houver menos clientes. Mas de dentro de um aeroporto não se pode fugir para o tasco ao lado e isso faz toda a diferença!

De qualquer forma, eu devo estar melhor do que a grande maioria das pessoas: se até a vacina que previne o cancro do colo do útero o meu sistema de saúde se prepara para comparticipar, o mais provável é que também passe a comparticipar um dia destes os tratamentos contra a dependência tabagista. Mas não é por eu estar melhor que não vou deixar de pedir por todos os outros. Essa é, em grande parte, a minha noção de cidadania. E se é certo que andei poucas vezes de avião – à conta de férias e não de trabalho, note-se – não quer dizer que não me revolte por termos este tipo de legislador que restringe, sem educar, impõe, sem dar apoio. Ou todos os outros que, face ao texto da lei, poderiam ter agido mas não o fizeram, que podiam ter investido no bem-estar de todos e não apenas na cegueira da lei. Mas isso deveria dar muito trabalho num País que gosta de ser mandado. E que se exime de ter opinião ou sequer de como ainda é possível haver direitos e que há quem se dê ao trabalho de os defender, ainda que não sejam os seus direitos que estão a ser cerceados. Hoje por eles, amanhã por nós; ou ao contrário. É que, da maneira que isto vai, todos havemos de virar escravos do legislador. Desde que, claro, não se tenha um empregozito de nomeação política.

Hipatia disse...

Eu tenho a sorte de ter acesso a um terraço. É que o meu bules é igual ao teu: limitou-se a mandar colar o dístico e retirar os cinzeiros. E pronto! Todos dentro da Lei. E, se me lembrasse sequer de pegar no cigarrinho, houve logo uma colega que me informou que mandava chamar a polícia. Tão bonititinho conviver com os bufos que se escondem atrás da lei, não é?

Hipatia disse...

Essa do rapé está genial, Claire :))) E já vi que fizeste post e até que a família também foi assinar a petição ;-)

Hipatia disse...

Por algum lado teria de ser, não é Maria Árvore? Nem que seja por uma - muito provavelmente - nauseabunda sala para fumadores no aeroporto. Se não resistirmos ainda, um dia destes já não há nada a fazer:

Primeiro eles vieram pelos judeus
E eu não falei nada –
Porque não era judeu.

Depois vieram pelos comunistas
E eu não falei nada –
Porque não era comunista.

Depois vieram pelos sindicalistas
E eu não falei nada –
Porque não era sindicalista.

Então vieram por mim –
E não havia mais ninguém
Para falar por mim.


Martin Niemöller

Toze disse...

Desde que não nos proibam o sexo, está tudo bem :)))))

Hipatia disse...

Até ver...

Mas olha que um dia destes ainda descobrem que nos faz mal à saúde e, vai dai, só vais poder fazê-lo no meio da rua, que é para não contaminar espaços fechados :D

Unknown disse...

Assino por baixo! e na petição claro. ;-)
Beijo e bom ano

Hipatia disse...

Beijo e bom ano, desaparecida :)*

jp(JoanaPestana) disse...

Assinado.
pim!

Hipatia disse...

pim!

:)))