Podem me prender
Podem me bater
Podem, até deixar-me sem comer
Que eu não mudo de opinião
Zé Kéti – Opinião
Não tenho filhos. Aliás, nunca engravidei. E, se acontecesse, mesmo que não fosse planeado, duvido que alguma vez abortasse. Até porque sempre tive o privilégio de uma família estruturada, grande, capaz de prestar qualquer apoio, todo o apoio. E que, mesmo que não a tivesse, consideraria sempre outras hipóteses, até mesmo entregar a criança para adopção. Porque o aborto me parece assustadoramente definitivo. Porque eu sou assim. Não sei mesmo se faria um aborto. Acho que não o faria. Mas deve haver níveis de desespero que não chego sequer a imaginar...
Isto para dizer que sou pró-aborto. E esta frase, assim, parece-me demasiado obtusa. O aborto existe. Não será estar a favor dele. É antes estar contra a penalização do acto. É estar contra uma lei persecutória para a mulher, que a impede de decidir sobre o próprio corpo, com dignidade, sem medos, com tempo para ponderar todas as hipóteses e sem ter de dar um salto a correr a Espanha, a olhar por cima do ombro. É estar contra a hipocrisia que acha que só por ser crime não é cometido. É estar contra uma lei que esquece o homem, mesmo que um filho precise dos dois para ser gerado. Uma lei que não tem em conta, muitas vezes, a forma como é exactamente o gajo que pressiona – e paga – o aborto em si. Mas, depois do "bem-bom", parece que retiram o macho da equação e, por conseguinte, o isentam de qualquer culpa.
É óbvio que não defendo a possibilidade de cessar uma gravidez de forma aligeirada, até ao nono mês, inclusive. Defendo uma legislação cuidada, à semelhança da existente na vizinha Espanha, com datas precisas. Defendo também um rigoroso acompanhamento de cada caso. Isto permitiria, por uma lado, um acompanhamento médico e psicológico da mulher, um apresentar de alternativas, um acompanhamento social, individualizando e integrando o indivíduo, em lugar da cegueira generalista do "é crime". O acto, não mais crime, poderia ser finalmente compreendido, talvez evitado, porque livremente debatido, sem dar aso a todo um cenário burlesco, com lavagem de podres em praça pública, na qual incluo a sanha inquiridora dos media.
Dentro desta minha lógica, defendo também qualquer coisa semelhante a um "cadastro" para mulheres que recorressem ao aborto. Para que este não virasse o anti-concepcional das idiotas ou das preguiçosas. Para essas, talvez houvesse lugar a manter alguma forma de penalização, que não aceito que o aborto se transforme num acto sistemático, sem ponderação.
Haveria, pois, que implicar acompanhamento médico, psicológico e social da mulher, da sua família, dos índices económicos e de literacia, das violências várias a que muitas estão sujeitas – e não falo apenas de violações e incestos, como é óbvio. É que abortar não deve, não pode ser, a primeira opção. Mas pode – e deve – ser uma opção que, face a uma análise abrangente de cada caso em concreto, permitisse uma validação de um acto médico. E esse acto médico e essa opção da mulher, não deveriam, portanto, ser crime em parte alguma deste País.
Mas é mesmo tudo uma questão de hipocrisias. E a maior parece ganhar sempre. Os resultados são funestos, como é óbvio. E cheira-me que todo e qualquer debate será rapidamente esquecido, mal passe esta sede de votos no preto ou no branco e sem cambiantes que tudo deixa prometer. Daí que até gostasse de saber quantas mulheres de políticos recorreram a abortos aqui ou acolá. E quantas amantes, como é óbvio. Porque isto da moralidade sempre foi uma questão de maior ou menor jeito para criar e manter fachadas e, dos podres íntimos, a hipocrisia reinante não dá acordo, desde que haja forma de os segredos continuarem a ser silenciados, ou trocados por interesses ainda mais escusos.