Acho que quase não te percebi a ti. Quase! É que, algures, a música diz qualquer coisa como "quis um sonho muito diferente do inferno que vivo" (ou algo parecido). E ali estava uma matrona de sobrancelhas hirsutas, duplo queixo e um vestidinho e cabelo de tia solteirona. Que o é: a mais nova de 9 irmãos que, após um parto difícil, ficou com sequelas, nomeadamente dificuldades de aprendizagem. Consigo imaginá-la como o alvo predilecto de todas as brincadeiras incrivelmente ferozes na escola; consigo imaginar uma auto-estima baixíssima, a tal que a fez esperar até estar quase nos cinquenta anos para tentar o seu sonho enquanto vivia com a mãe e o gato; e a depressão depois da morte da mãe ao ver o seu pequeno mundo desmoronar-se; consigo até imaginá-la no seu coro da igreja, muito plain, muito miss qualquer coisa de romance de Agatha Christie onde as meninas são de qualquer idade, desde que convenientemente matronas. E estes programas esperam gente jovem e bonita e têm um júri a condizer, de caras gaiatas e palavra em riste, para destruir qualquer sonho que não lhe caia no goto. Até admito que possa ter havido ali algum efabular da história por parte da produção do programa, que sabia bem que a senhora seria facilmente alvo de chacota só por parecer "aquilo" que chegou ao palco, esperando depois pela surpresa para contabilizar share. E foi "aquilo" que toda a gente viu e "daquilo" que todos quiseram rir-se. Mas a miss plain, a matrona, abriu a boca de onde saiu uma voz do outro mundo. E há sempre algo em nós, mesmo quando nos predispomos a rir com a figura de terceiros, que prefere antes ver o underdog ter sucesso. Eu percebo o espanto e a forma como se espalhou como fogo em palha seca: são os nossos preconceitos postos a nu num mundinho que vai deificando a beleza padronizada (e a juventude) e também as nossas esperanças de que um dia, um qualquer dia, faremos quem tentou rir-se de nós engolir em golfadas de surpresa cada esgar.
4 comentários:
Não me entendas mal: eu adoro ver quem se ri dos feios a engolir o riso, a língua, o esófago, a traqueia. Porque é muito bem feita.
Mas acho uma hipocrisia o coro dos lindos, magros e bonitos, os mesmos que se riram dela, a tecer-lhe agora louvaminhas e a confessarem-se comovidos. Filhos da puta! Grandes filhos da puta!
Porque são os mesmos que me troçaram toda a vida e agora, vendo-me bem (não estou mal, não) em termos de carreira, massas, e conforto/bem estar pessoal, me fazem os sorrisinhos e dão palmadinhas nas costas... mas pelas costas ainda devem fazer caretas e revirar os olhos, e dizer "quem diria, esta coisinha desenxabida. e continua com peso a mais!"
A desgraça da Susan foi nunca lhe terem prestado atenção por ser... feia. Que não acredito que uma voz daquelas passe desapercebida, nem num parabéns a você!
E tenho medo pela Senhora, que tem realmente um dom: que a fama a mastigue e deite fora como já fez a tanta gente. Arrisca-se (com a devida distância) a ser o Zá Maria britânico.
Menina, uma coisa eu sei – que também fui caixa d’óculos, nunca consegui ser magra, até tenho um dente meio torto e nunca consegui caber direito na roupinha da maioria das lojas à conta da forma do meu corpo – e é que mesmo aqueles que supões que nunca tiveram inseguranças também devem estar minados delas. A não ser que nem um Tico e um Teco preguiçosos tenham debaixo do couro cabeludo e, para esses, nem sequer me ponho na fila para o peditório. Dão-se é ares. Muitos ares. Tu és um mulherão. Onde está a dúvida? Provavelmente, foste sempre um mulherão, mesmo quando olhavas para o espelho e só vias defeitos. Sabes bem que também não deixas de te rir dos tais dos neurónios inexistentes, tal como eu faço. Olhas e vês a pose, as roupinhas de marca, aquela treta do aspecto ser tudo e fica-te na cara um esgar de pena misturado com riso. A beleza padronizada acaba por ser um bocadinho isso também: se está fora dos moldes, vai sempre haver quem desdenha. E, no entanto, penso que a maioria ficou sinceramente surpreendida. Tão surpreendida que chegou a constranger-se com a facilidade com que se predispôs a rir da senhora. É como somos e, quando alguém se põe a jeito – e a Miss Susan pôs-se, concorrente aquele tipo de concurso com aquela idade (nada contra, acho muito bem que o tenha feito, a questão é mesmo quanto ao tipo de concurso) – e penso que tinha consciência de que ia surpreender. Sujeitou-se ao riso porque, naquela idade e depois de uma vida escondida, talvez tenha achado que era a hora dela. E dos muitos que se predispunham a rir apenas da figura, quase todos acabaram rendidos. Não por filha da putice, antes porque foram realmente surpreendidos. E também porque até aqueles que aparentemente entram em todos os perfis de bonitinhos, jeitosinhos e bem acabadinho, há dias em que se olham ao espelho e só vêem um monte de merda. Depois há os montes de merda verdadeiros, aqueles que só têm imagem e acham realmente que isso basta. Esses não contam: a burrice e a vacuidade são muito mais feias do que um duplo queixo ou qualquer corpo de cinquenta anos. Claro que, depois deste destaque todo, será de esperar que, para a próxima, as sobrancelhas da Miss Susan já apareçam menos hirsutas, o cabelinho mais composto e a roupinha mais de acordo com o padrão. Esperemos que isso não estrague a senhora, que tem um ar delicioso na sua aparente modéstia. Esperemos também que lhe bastem a idade e a experiência de a depreciarem para que não se deixe converter num qualquer Zé Maria. E que tenha muita sorte, muitos cds comprados, que não há idade para fazer cumprir os sonhos e, isso, decididamente foi o que mais me encantou nesta história.
Numa coisa concordamos: a sôdona Susan canta que se farta e é uma mulher com eles no sítio, que não é qualquer um que tem a coragem que ela teve.
Mas também deve saber bem o que vale: não basta ter boa voz, é preciso saber cantar, e ela sabe, que não falhou uma nota, uma colocação de voz, nicles. Aquilo é menina que já se fartou de abrir a goela. E continua a chatear-me que só agora tenham reparado nela, pelas razões que se adivinham. E não se chegasse á frente, morria anónima lá no lugarejo onde vive, privando-nos de apreciar o seu dom. Espero que cumpra o seu sonho, como tem direito ;)
(e obrigadas pelo elogio, não me considero um mulherão, mas que as pessoas que importam o achem, isso é que me vale pela vida. a sério. e tu também és um mulherão! quilo a mais ou a menos - nem dei conta que tinhas um dente torto, eu tenho mais - és gira que te fartas, e não falo da embalagem mas do todo, percebes. dos olhos e olhar, da boca e o falar, do corpo com o teu jeito. e agora vou acabar que ainda vem alguém p'rá aí sugerir que a gente vá arranjar um quarto ;P)
LOL! Já não vem aqui ninguém ler-nos. Que tal se, nos dias mais fodidos, instituíssemos destas massagens ao ego mútuas desmarcadas numa qq caixa de comentários perdida? ;)
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