Finalmente Descobrimos o Problema! Depois de décadas de mistério insondável, de noites sem dormir a tentar perceber o que se passa com os serviços públicos em Portugal, surge a luz ao fundo do túnel. O Ministro da Educação, Fernando Alexandre, numa demonstração de perspicácia merecedora de um Nobel, identificou o verdadeiro culpado da deterioração dos serviços públicos: os pobres. Sim, leram bem. Os pobres. Quem diria?
Durante todo este tempo, nós, simples mortais de intelecto limitado, pensávamos que os problemas nos serviços públicos se deviam a coisas banais como subfinanciamento crónico, má gestão, falta de investimento, salários baixos que afastam profissionais qualificados, burocracia excessiva... Que ingenuidade a nossa! Afinal, o problema são mesmo os utilizadores. Especialmente os pobres. Que atrevimento o deles, usarem serviços que, tecnicamente, são para eles!
É uma lógica brilhante, quando se pensa bem. Os hospitais públicos estão sobrelotados? Culpa dos pobres que insistem em ficar doentes. As escolas públicas têm problemas? Obviamente, culpa das crianças de famílias desfavorecidas que teimam em querer educação. Se calhar deviam ter nascido ricos, não? Era tão mais simples para toda a gente.
Imaginem a audácia destas pessoas: pagam impostos toda a vida e depois ainda querem usar os serviços públicos! O descaramento! Não percebem que os serviços públicos são para estar ali, bonitinhos, intocados, pristinos, como peças de museu? São para admirar, não para usar!
A solução é óbvia: se queremos serviços públicos de qualidade, temos de impedir os pobres de os usar. Podemos até criar um sistema de porta giratória que só deixa entrar quem apresentar três extractos bancários robustos. Ou então, numa abordagem mais moderna, um leitor de cartões gold ou platina à entrada de cada hospital e escola. "Desculpe, o seu rendimento está abaixo do limiar. Tente a urgência privada ou então não fique doente."
E que tal aplicarmos esta filosofia revolucionária a outras áreas? Os transportes públicos estão cheios? Culpa de quem não tem carro! As bibliotecas municipais têm falta de livros? Culpa de quem não pode comprar a coleção completa da Bertrand! Os jardins públicos estão degradados? Culpa de quem não tem quintal privado!
Mas há que dar crédito onde crédito é devido: é precisa muita coragem para, enquanto Ministro da Educação, demonstrar tão publicamente que nunca abriu um livro de sociologia, economia política, ou mesmo de história básica sobre o propósito dos serviços públicos. É uma masterclass em ironia involuntária.
Porque, vejam bem, num país onde a desigualdade continua a ser um problema estrutural, onde milhares de crianças dependem da escola pública para ter uma refeição decente por dia, onde o SNS é a única tábua de salvação para quem não pode pagar seguros privados caríssimos, nada diz "tenho a solução" como culpar as vítimas do sistema.
Bravo, Senhor Ministro. Numa única declaração, conseguiu resumir décadas de políticas neoliberais disfarçadas de pragmatismo. "Os serviços públicos são péssimos porque há gente pobre a usá-los" é a versão 2025 do clássico "que comam brioches" da Maria Antonieta. Com uma diferença: ela pelo menos tinha a desculpa de viver no século XVIII.
Entretanto, no mundo real, professores continuam a sair do sistema, médicos emigram aos magotes, infraestruturas apodrecem, e o fosso entre o público e o privado alarga-se. Mas claro, o problema são os pobres. Sempre os pobres. Se ao menos tivessem a decência de desaparecer, tudo funcionaria na perfeição.
É claro que os problemas dos serviços públicos nunca foram, não são, e nunca serão os seus utilizadores, sejam eles ricos ou pobres. São escolhas políticas, prioridades orçamentais e décadas de desinvestimento estratégico. Mas isso dava muito trabalho a resolver, não é, Sr. Ministro?
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