Ah, caros concidadãos. Que época magnífica para se estar vivo, empregado e ligeiramente desesperado em Portugal. O ar está carregado de promessa. Não a promessa de um futuro melhor, mas aquela promessa pesada e húmida que precede uma trovoada — neste caso, uma greve geral. E no centro desta tempestade perfeita, ergue-se, como um monumento à sagacidade burocrática, o nosso flamante Novo Código do Trabalho.
Os arautos do progresso, aqueles que usam fatos de linho em reuniões com ar condicionado, batizaram-no de "Moderno". "Flexível". "Competitivo". Palavras tão reluzentes e ocas como os prédios de vidro onde são proferidas. A modernidade, claro, não está em garantir que um trabalhador consiga pagar uma renda e comer algo mais sofisticado que atum de lata no mesmo mês. Não, senhor. A modernidade está na sublime arte de transformar direitos adquiridos com suor e protesto em meras "sugestões" negociáveis.
Olhe para a joia da coroa: o tal "banco de horas anualizado". Uma invenção tão brilhante que só podia ter sido concebida por alguém cuja maior fadiga laboral é carregar o cartão de crédito corporativo. A ideia é simples e bela na sua perversidade: as horas extra não são para pagar, são para "gerir". Trabalha 60 horas numa semana a apagar fogos? Excelente! Na semana seguinte, folga uma tarde. Chama-se "equilíbrio". Eu chamo-lhe a versão laboral de "fiado". É a uberização do emprego estável: você é o seu próprio mini-empresário, sempre à beira da falência de energia física.
E depois temos a facilitação dos despedimentos. Outro triunfo da linguística orwelliana. "Facilitação" soa tão bem, tão fluida. Como "facilitar o fluxo do trânsito" ou "facilitar a digestão". O que se está a facilitar, meus amigos, é o passe do patrão para lhe mostrar a porta com um custo que deixou de ser proibitivo para se tornar um mero inconveniente contabilístico. A mensagem subliminar é clara: "Sorria, seja produtivo e não aborreça, senão facilitamos a sua transição para o estatuto de ex-colaborador."
E, claro, a desregulamentação dos horários de trabalho. Adeus, tetos rígidos de horas por dia! Olá, "adaptabilidade"! Porque o que o trabalhador português, já especialista em fazer milagres com um salário mínimo, realmente queria era a nobre incerteza de não saber se hoje sai às 18h ou à meia-noite. É uma injeção de adrenalina na rotina! Quem precisa de planear uma vida familiar, de ir ao ginásio, ou simplesmente de desligar, quando se pode viver na emocionante expectativa de um email do chefe às 21h?
Perante este festival de boa-vontade patronal, a resposta sindical era inevitável: uma Greve Geral. Aquela tradição portuguesa tão nossa, tão bela no seu caos coreografado. Os mesmos profetas do apocalipse económico que nos venderam o Código como a salvação, agora torcem as mãos e lamentam a "intransigência" e o "atraso". É de uma ironia deliciosa. Esperavam o quê? Que oferecessemos rosas e bolos a esta reforma que cheira a velha receita de espremer até à última gota? A greve é o soluço seco de um país que já engoliu muitos sapos e se apercebeu de que este vem com um fato de três peças e uma calculadora.
No fim, o espetáculo é perfeito. De um lado, o Governo e os seus apóstolos, a falar de "atrair investimento" com a doçura salivar de quem vende um país-usado. Do outro, os sindicatos, a berrar "Atentado social!" com a fúria ritual de quem sabe que está sempre a perder terreno, mas não pode admiti-lo. E no meio, nós, a plebe assalariada, a tentar decifrar se esta "flexibilidade" toda é a corda que nos vai safar do poço ou a que vão usar para nos amarrar melhor.
O futuro promete. Promete cansaço. Promete instabilidade. Promete aquele brilho especial no olho do patrão quando se lembrar que, tecnicamente, você agora pertence à empresa 24 horas por dia, sete dias por semana. Se tudo correr como planeado, seremos a força de trabalho mais "moderna" e "flexível" da Europa.
Completamente exaustos, mas moderníssimos.
E pronto. Afinal, como dizia o outro, o trabalho liberta. Agora, literalmente, até das suas próprias horas de descanso.
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