2025-12-15

Um milagre inexplicável

Em notícia de telejornal, informam-nos com sisudez que os acidentes com brinquedos estão a aumentar, mas só com os que são feitos fora da União Europeia. E ouvimos com a gravidade necessária. Coitadinhas das criancinhas!

Não importa que nós, os sobreviventes das décadas de 70 e 80, sejamos a prova viva de que o ser humano é praticamente indestrutível. Afinal, crescemos numa época em que os pais nos largavam de manhã com um "volta antes de escurecer" e só se preocupavam se não aparecêssemos para o jantar.

Brincávamos na rua sem capacete, joelheiras ou supervisão parental num raio de 5 quilômetros. Subíamos às árvores até alturas que fariam um pai moderno desmaiar. Caíamos, ralávamos os joelhos, e o tratamento médico consistia em cuspir na ferida e continuar a brincar. Em situações mais penosas, havia sempre o mercurocromo, que depois desapareceu porque tinha mercúrio. Também sobrevivemos ao mercúrio, já agora.

As nossas bicicletas não tinham travões decentes, mas tínhamos os nossos pés. Os carros não tinham airbags nem cadeirinhas e nós viajávamos à solta no banco de trás – quando não íamos na bagageira da carrinha do vizinho.

Bebíamos água da mangueira do jardim, comíamos terra ocasionalmente e o nosso sistema imunitário era forjado em batalha enquanto estávamos a jogar à bola. Não existiam toalhitas antibacterianas nem géis desinfetantes. Sobrevivemos.

Hoje, os pais rastreiam os filhos por GPS, esterilizam chupetas que caem no chão em vez de as meter na própria boca e organizam "playdates" agendadas com semanas de antecedência. As crianças usam capacete para andar de triciclo no quintal vedado.

Como é que sobrevivemos? Ninguém sabe. Somos um mistério médico. Uma geração forjada na negligência benigna, que cresceu para contar a história – e para se tornar, ironicamente, nos pais mais paranóicos da história da humanidade.

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