2006-01-16

Eu quero é ir para “a terra”!


Pisão = pedra embrulhada num pano. Uma brincadeira de Carnaval. Tem um esquema para ser atada e controlada de longe. Os brincalhões escondem-se e simulam o bater COM MUITA FORÇA na porta da vítima (por vezes deixa grandes mossas nas portas....). Escolhem-se altas horas da noite para esta brincadeira, que hoje em dia ainda tem lugar, no meio de muita risada, pois a vítima é escolhida pelo seu mau feitio. A vítima, ou vocifera e vai buscar a caçadeira, ou tem um belo "fair play" e convida os foliões para beber um copo...


No final de cada semana de aulas, habitualmente sexta-feira, Daniel escutava sempre a mesma frase dita por João, seu colega de carteira:

- Amanhã vou para "a terra"!

E "a terra" de João era longe, Canas, Canas de Senhorim, de que ele falava muitas vezes, até nas composições que a professora pedia na sala de aula. Assim, chegado o fim de semana, lá partia João com os pais rumo ao norte…

Daniel pensava então:

- E a minha terra? Se nasci aqui em Lisboa ...então sou daqui.

A cada segunda-feira, no regresso de João, Daniel sorvia com avidez as narrativas e descrições do seu amigo, passadas lá em Canas: Falava-lhe do Carnaval com os seus divertidos pisões, terminando a festa em despique bravo nas "quatro esquinas". Da sua avó sábia, mestre na arte do queijo, que sempre arranjava um momento para cozer magníficos bolos que ele comia regalado nas tardes chuvosas. Ou daquela história divertida da porca preta que resolveu fugir mesmo no dia da "matança" e, embora perseguida por uma família inteira através dos quintais, ganhara a sua liberdade. Talvez viva, ainda, lá para os lados do Mondego com um simpático javali. E aquela serra, todinha, vestida de branco…

Ainda por cima, Canas tinha um Rossio, algo muito familiar para Daniel, menino Lisboeta.

Daniel ficava a pensar em Lisboa, com as suas praças e avenidas apressadas, com uma expressão triste de quem não pertence a lugar nenhum.

Havia aquela coisa estranha, de que todos os Lisboetas eram sempre de outro lugar.

E Canas? Uma ideia começou a germinar na cabeça de Daniel:

- Quando for grande, quero é ir a Canas!

Até sonhou com aquela Canas imaginária.

Um dia, chegava o pai vindo do trabalho, Daniel perguntou-lhe:

- Pai, porque é que nós não "vamos à terra"?

- Porque a nossa terra é aqui. Respondeu o pai.

- Mas esta cidade parece não me pertencer...

- Vou-te contar um segredo… A nossa terra é onde está o nosso coração e, o nosso coração, sabe sempre o seu lugar.



Uma coisa Daniel não sabe, mas eu sei, como contador desta história, e vocês leitores também, porque a estão a ler: Um dia, Daniel irá finalmente a Canas. Lá conhecerá a irmã de João, Inês, encontrando o amor naquela bela rapariga nascida ali mesmo na Póvoa. O seu coração fará uma escolha, descobrindo finalmente a terra porque tanto ansiara.

Pois, como seu pai tinha dito:


- O Coração conhece bem o seu lugar.



Gaivina

1 comentário:

Hipatia disse...

On : 1/16/2006 1:17:56 PM Folha de Chá (www) said:

A nossa casa é onde está o nosso coração, sempre gostei destas palavras. E o Daniel que de despache, que a Inês está à espera.


On : 1/16/2006 4:18:06 PM deep (www) said:

Por aqui, aqueles que vivemos em meios um pouco mais urbanos, costumamos dizer: "Vou à aldeia.".


On : 1/16/2006 4:33:26 PM maria arvore (www) said:

Mal li o título, vi que era Gaivina.

Tocou-me a história porque nascida alfacinha, sempre tive a nostalgia das férias em que ia "à terra" dos avós maternos ou dos paternos.

E cada vez mais me convenço que não somos de uma única terra mas dos lugares onde deixamos pedaços do nosso coração.


On : 1/16/2006 5:25:34 PM Gaivina (www) said:

Maria, tenho um estilo assim tão marcado?


On : 1/17/2006 8:11:45 AM Gaivina (www) said:

Folha de chá:
Em crioulo diz-se "Lugar da coraçon, coraçon ta conxê"
A primeira vez que escutei a frase foi na ilha de Santigo....isso originou este texto, a par de episódios da minha vida que me ligaram profundamente à Beira Alta.

Maria, eu sou alfacinha de origem....


On : 1/17/2006 4:59:11 PM maria arvore (www) said:

Gaivina,
sempre que aqui te li, o ambiente é "campestre" , bucólico e usas bastas vezes nos diálogos, expressões da província, que são mesmo as que ali jogam bem. É por isso que é o teu estilo!

(curiosamente, a "minha terra" pelo lado materno era na Beira Litoral, onde agora se fazem uns encontros de "motards" e, pelo lado paterno, era aquela terra juntinha ao Porto, onde o Rui Veloso fez um baile da paróquia)


On : 1/17/2006 5:06:43 PM Hipatia (www) said:

Lá para os lados de Valbom? Sua (quase) tripeira!


On : 1/17/2006 5:46:29 PM Gaivina (www) said:

Mas não sou sempre assim, Maria, este último grupo de textos têm esse sabor por um passado recente
Um destes dias publico outra coisa, noutro registo


On : 1/18/2006 2:18:03 PM maria arvore (www) said:

Hipatia Ludovina,
Balbom é a terra da minha abó Bina.

Gaivina,
fico à espera do teu outro estilo. Aliás, quando contáste a história da modelo, o registo foi diferente. De qualquer forma, julgo que a "impressão digital escrita" é prova da arte que se tem.


On : 1/18/2006 5:52:21 PM Gaivina (www) said:

Gosto das coisas que tu dizes, maria


On : 1/18/2006 8:06:43 PM Hipatia (www) said:

(hoje andei por lá )


On : 1/19/2006 8:45:08 AM nuno albuquerque vaz (www) said:

estao todos convidados...apareçam pela minha terrinha no carnaval...grande post gaivina


On : 1/19/2006 1:09:27 PM Gaivina (www) said:

Nuno, é um Post nosso, Canense....
propósito, não sei se vou pelo Rossio se pelo Paço ( Conversa privada sobre o magnífico carnaval Canas de Senhorim...das coisas mais divertidas e fortes que assisti em Portugal: genuino!)


On : 1/19/2006 1:14:38 PM Hipatia (www) said:

Era bem giro...


On : 1/19/2006 7:43:19 PM Gaivina (www) said:

Para mim era complicado voltar aquela terra, agora....


On : 2/1/2006 1:05:14 PM Hipatia (www) said:

Mais Vozes

Muito bonito!
SoNosCredita | 01.16.06 - 4:30 pm | #

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Bem vinda à Voz, SoNosCredita
Hipatia | Homepage | 01.16.06 - 6:45 pm | #

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Passa por cá mais vezes....
Gaivina | 01.17.06 - 2:12 pm | #