2005-02-21

Asas

To live for an eternity and to be present all the time. To live with the essence of things - not to be able to raise a cup of coffee and drink it, or really touch somebody.

Wim Wenders e Peter Handke – As Asas do Desejo


Este é o problema dos anjos de Wenders: eles podem viver para sempre e, no entanto, nunca viver realmente.

No filme, a cara de Bruno Ganz, o actor que representa Damiel, reflecte isso mesmo: estar consciente de tudo, sendo um perpétuo outsider, tanto que prefere partilhar o sofrimento de Marion, mais ainda do que pôr-lhe um fim.

Numa belíssima fotografia a preto e branco, vemos Damiel apenas a atravessar pontes vazias de uma cidade insubstancial... a olhar através de janelas... a sentar-se numa livraria e observar...

A esterilidade da existência de Damiel quase nos faz compreender a escolha de Lúcifer, ao renunciar ao Paraíso: no Inferno, pelo menos podia sofrer e, portanto, estar vivo.

Isto recorda-me também a capa do Imortalidade de Milan Kundera (pelo menos a versão que eu tenho), onde se vêem dois anjos: um masculino e um feminino, porque parece que afinal os anjos têm sexo. É uma imagem de alguma violência, já que o anjo masculino parece empurrar o anjo feminino para o abismo, como se o quisesse expulsar do paraíso, ou da sua vida, ou de qualquer contacto, ou mesmo de qualquer possível envolvimento amoroso. Mas penso que, depois desse acto de violência, as asas desse anjo iriam desaparecer, já que ele passaria a ser um anjo caído pelas tentações que são tão humanas.

A verdade é que a vida dos anjos pode ser extraordinariamente limitada, enclausurados que ficam na rotina da pureza, no dogma da perfeição. Mil vezes o amor, a dor, a experiência de estar vivo, este viver na corda bamba, que é a realidade de todos nós. Quem desejaria verdadeiramente ser um anjo? No fim, não se revelaria mais uma vez que tudo o que escolhemos e apreciamos pela sua leveza acaba por se revelar um fardo insuportável?

No filme de Wenders, Damiel, no mais romântico dos gestos, renuncia à imortalidade e aceita a vida humana com todas as suas limitações e defeitos. Cassiel – o outro anjo – não faz a renuncia. Corre, portanto, o risco de se aborrecer por toda a eternidade.




anjos Posted by Hello



(...e não me falem sequer no City of Angels: uma americanice agri-doce sem sentido para fazer dinheiro...)

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